- Presidente russo tem a percepção de que se não surgisse uma liderança firme, a Rússia pós-União Soviética se esfacelaria em pequenos grupos de interesse
- Ver a Ucrânia ingressar na OTAN, ou até mesmo na União Europeia, representa muito mais do que perder um país para outra esfera de influência, ou uma ameaça à segurança nacional. Significa também abrir mão e apagar parte da história russa
Ao longo dos últimos meses, o temor de uma invasão da Rússia à Ucrânia tomou conta do noticiário. Cidadãos de várias partes do mundo, empresários e investidores estão cada vez mais preocupados em relação aos impactos que essa invasão poderia acarretar. Vemos muitas análises e opiniões baseadas no “sim” ou “não” em relação a ela. Para entendermos um pouco mais, temos de avaliar a forma como o presidente russo Vladimir Putin vem agindo ao longo das últimas décadas e também conhecer um pouco mais sobre o passado desse líder.
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Putin não esconde de ninguém que é bastante saudoso da União Soviética e do poder que o país emanava. Como oficial da KGB estacionado na Alemanha Oriental, via sua trajetória mesclada com a própria trajetória futura do imenso país. Quando a URSS derreteu, em 1991, Putin trabalhava como assessor internacional na prefeitura de São Petersburgo.
A partir daí, entre 1994 e 1996, acompanhamos uma caminhada fulminante. Passou de diretor do comitê de Relações Exteriores de São Petersburgo para a posição influente de Diretor de Gabinete do então Presidente Boris Yeltsin.
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Pouco mais de um ano depois, ele se tornaria Chefe de Gabinete de Yeltsin, ganhando uma influência invejável ao lidar com diversos oligarcas do país. Adquire a percepção de que se não surgisse uma liderança firme a nova Rússia se esfacelaria em pequenos grupos de interesse.
Para Putin, Yeltsin falhou em diversas frentes. A começar pelo processo de não aproximação da Ucrânia quando, no início dos anos 1990, algumas tratativas e negociações cogitaram a formação de uma “mini URSS”, incluindo Ucrânia e Belarus. Naquela época, no entanto, o povo ucraniano estava determinado a se afastar de vez de Moscou. Em 1991, mais de 90% da população votou pela independência. Em 1992, o presidente ucraniano Leonid Kravchuk visitou a sede da OTAN em Bruxelas. Para Moscou e para Putin, em particular, esse movimento foi considerado imperdoável.
A Ucrânia tem uma importância ímpar na história do povo russo. É considerada como o berço da “mãe Rússia”, pois foi, em seu território, no século IX, que imigrantes escandinavos conhecidos como “Rus” se instalaram às margens do rio Dnipro. Kiev foi a principal cidade da “civilização russa” até ser destruída pelos mongóis no século XIII. Assim, o centro do poder saiu da Ucrânia e se consolidou em Moscou.
Esse aspecto histórico tem um peso no processo de tomada de decisões para Putin que talvez não faça muito sentido para os líderes ocidentais. Ver a Ucrânia ingressar na OTAN, ou até mesmo na União Europeia, representa muito mais do que perder um país para outra esfera de influência, ou uma ameaça à segurança nacional. Significa também abrir mão e apagar parte da história russa.
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A concentração de tropas na fronteira com a Ucrânia e em Belarus representa não só um momento específico de insatisfação com as movimentações da OTAN em relação à Ucrânia. Representa uma resposta a todo o “conjunto da obra”, ou seja, a todas as “agressões” que Putin considera estarem sendo coordenadas por parte das potências ocidentais lideradas pelos EUA.
As tropas são, obviamente, uma resposta aos diálogos entre Volodymyr Zelensky, presidente ucraniano, e a OTAN, mas também são uma forma de dar uma resposta definitiva (seja pela guerra psicológica, ao usá-las como forma de pressão ou ainda se forem à guerra convencional) aos posicionamentos ocidentais em relação a violações de direitos humanos, à perseguição contra Alexei Navalny, às sanções contra empresários específicos, à escalada na guerra cibernética, à tentativa de os EUA de oferecer uma alternativa ao gás russo por meio de gás natural liquefeito, entre outras.
Quando Putin se alinha “carnalmente” à China (algo anunciado durante as Olimpíadas de Inverno em Pequim), ele está apenas complementando um pacote maior de elaboração de dois eixos no mundo. Se a Rússia não possui mais a envergadura da União Soviética, nem uma fração da economia chinesa, Moscou ainda possui capacidades que nem EUA, nem UE e China possuem: liderança firme de um presidente capaz de suprimir divergências internas (nem Xi tem essa capacidade tão forte quanto Putin), um serviço de inteligência ativo e experiente em operações cibernéticas e de desinformação, controle relevante da fonte energética europeia e ausência de medo.
Assim, se Putin não consegue resgatar a Rússia para voltar a ter uma envergadura similar à do passado, ao se alinhar à China passa a ser um sócio minoritário em uma aliança que, de fato, pode confrontar o Ocidente, ignorar sanções e estancar o que ele considera agressões verbais.
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Conforme o mundo vive dificuldades econômicas, alguns líderes perpétuos ganham ímpeto para deixar um legado para a História. O legado de Putin para a história russa não é percebido fora das fronteiras do país. Quando se tem pouco a perder, o medo se torna relativo e as ambições subjetivas tendem a ganhar força.
Com uma economia menor do que a da Itália, Putin enxerga que uma aproximação cada vez maior com a China (incluindo um acordo de 120 bi de dólares para exportação de gás, petróleo, lítio, alumínio, fertilizantes etc) o que tornaria o peso da arma predileta usada pelo Ocidente, as sanções, mais frágil para ser sustentado.