- Dezenas de empregadores de grande porte estão tentando preencher as lacunas cobrindo as despesas das funcionárias que precisam cruzar as fronteiras estaduais para um aborto legal
- A maioria dos pacientes paga do próprio bolso, descobriu a pesquisa, em grande parte porque seu seguro saúde não cobre o procedimento
- O Medicaid, programa de saúde pública em grande parte para famílias de baixa renda que é administrado pelos estados, é financiado por dinheiro federal e estadual. Mesmo antes da decisão do caso Dobbs v. Jackson, a lei federal – conhecida como emenda Hyde – não permitia que verbas federais pagassem por abortos
(Tara Siegel Bernard, do New York Times) – Mesmo antes de o direito constitucional ao aborto ser revogado no mês passado nos Estados Unidos, a cobertura do seguro de saúde para o procedimento era desigual. Ela dependia em grande parte de onde a mulher vivia ou para quem trabalhava.
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Esses fatores se tornaram ainda mais cruciais agora que a Suprema Corte americana deixou nas mãos dos estados a regulamentação do aborto.
O emaranhado existente da cobertura pelos seguros provavelmente se tornará mais restritivo, e o abismo aumentará entre os estados que já proibiam os serviços relacionados ao aborto e aqueles que exigiam a cobertura do procedimento.
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Dezenas de empregadores de grande porte estão tentando preencher as lacunas cobrindo as despesas das funcionárias que precisam cruzar as fronteiras estaduais para um aborto legal, embora ainda restem dúvidas sobre quanto risco as empresas estão assumindo e até onde um estado antiaborto – ou um promotor hostil – poderia ir para detê-las.
Para as mulheres sem esse apoio ou cobertura extra, os novos desafios logísticos e os custos adicionais talvez sejam impossíveis de superar.
“As pessoas com recursos financeiros vão encontrar maneiras de ter o tratamento que desejam ou precisam”, disse Susan M. Nash, advogada e sócia do escritório de advocacia especializado em cuidados de saúde Winston & Strawn. “Mas as pessoas que não podem viajar ou têm meios limitados para ter acesso ao tratamento fora da cobertura do seguro saúde serão prejudicadas.”
Veja como a decisão do caso Dobbs v. Jackson pode afetar a cobertura de seguro saúde em todo os EUA:
Quanto custa um aborto?
O custo médio para uma paciente que passa por um aborto farmacológico – que envolve dois medicamentos, geralmente tomados entre a 10ª e 12ª semanas de gravidez – era de US$ 560 em 2020, de acordo com um estudo recente do programa de saúde reprodutiva da Universidade da Califórnia, em São Francisco.
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Um procedimento de aborto custava US$ 575 durante o primeiro trimestre e US$ 895 no segundo trimestre daquele ano.
O valor não inclui gastos com deslocamento e outras despesas, como cuidados de crianças e tempo de afastamento do trabalho, que serão cada vez mais necessários para as mulheres em um número crescente de estados. E os valores variam bastante em cada região.
A maioria dos pacientes paga do próprio bolso, descobriu a pesquisa, em grande parte porque seu seguro saúde não cobre o procedimento.
Mesmo antes da decisão do caso Dobbs v. Jackson, 11 estados restringiam o tipo de cobertura para aborto que os planos privados de seguro saúde poderiam oferecer, e 26 estados proibiam todos os planos de seguro saúde mais acessíveis devido ao subsídios do governo de cobrir o aborto, descobriram os pesquisadores.
O programa de saúde pública cobrirá o aborto?
Assim como antes da decisão, isso depende muito de onde se vive.
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O Medicaid, programa de saúde pública em grande parte para famílias de baixa renda que é administrado pelos estados, é financiado por dinheiro federal e estadual. Mesmo antes da decisão do caso Dobbs v. Jackson, a lei federal – conhecida como emenda Hyde – não permitia que verbas federais pagassem por abortos, exceto em casos excepcionais: se a gravidez fosse resultado de estupro, incesto ou provocasse um quadro de saúde que colocasse em risco a vida da mulher. Os estados podiam escolher usar seu próprio dinheiro para pagar por abortos não contemplados por essas exceções, e 16 estados tinham essa política no ano passado, de acordo com a Fundação Kaiser Family (embora nove tenham sido ordenados pelos tribunais a adotá-las).
A grande maioria dos estados não paga por nada além daqueles casos excepcionais – e a Dakota do Sul, em violação da lei federal, cobre abortos apenas em caso de risco de morte, de acordo com um estudo de 2019 do Government Accountability Office, agência responsável por serviços de auditoria para o Congresso americano.
Assim como a Dakota do Sul, uma lista crescente de estados que proíbem o aborto – incluindo Alabama, Arkansas, Louisiana e Missouri – abre exceções apenas quando a vida da mulher está ameaçada. Isso os coloca em conflito com a lei federal que também exige cobertura de aborto em casos de estupro ou incesto.
Os Centros de Serviços Medicare e Medicaid disseram que notificariam os estados quando eles se recusassem a cumprir as normas federais e acrescentaram que o Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA estava tomando medidas para expandir o acesso ao aborto farmacológico naqueles casos excepcionais. As informações a respeito de como isso vai acontecer ainda são vagas.
E quanto aos planos de seguro saúde privados mais acessíveis devido aos subsídios do governo?
Os planos de seguro saúde mais acessíveis criados sob a Lei de Proteção e Cuidado Acessível ao Paciente tem restrições semelhantes. Não é exigido deles a cobertura ao aborto, e a verba federal – inclusive os subsídios pagos na forma de créditos fiscais – não pode ser usada para pagar por eles. Nesse caso, também, há exceções para estupro, incesto e risco de morte, mas elas não são universais.
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Existem 26 estados que proíbem a cobertura de abortos por esses planos, disse Alina Salganicoff, diretora de política de saúde da mulher da Fundação Kaiser Family. Mas alguns estados não abrem exceções para estupro ou incesto, e outros não fazem qualquer tipo de exceção, acrescentou.
Em contrapartida, as seguradoras em sete estados são obrigadas a incluir a cobertura do aborto em todos os planos disponíveis no mercado, de acordo com a Fundação Kaiser Family, mas nenhum dólar federal é usado.
Por exemplo, em estados como Nova York, onde o aborto é legal sob a lei estadual, os segurados com planos acessíveis subsidiados têm US$ 1 de sua contribuição mensal mantido separadamente para ser usado para aborto e outros serviços.
Mas se um indivíduo com um desses planos vive em um estado onde o aborto é proibido, é provável que a política do serviço não forneça cobertura em seu próprio estado ou ao cruzar as fronteiras estaduais.
Uso o seguro saúde oferecido pelo meu empregador. Os serviços a que tenho direito vão mudar?
Isso vai depender de onde você vive, o tipo de plano de seguro que seu empregador contrata e a posição dele quanto aos serviços cobertos.
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Basicamente, se uma empresa paga pelos cuidados de saúde de seus funcionários com os próprios recursos, os trabalhadores, mesmo aqueles em estados onde o aborto é ilegal, talvez tenham um acesso maior aos serviços oferecidos. Mas os empregadores que compram apólices de seguro para os trabalhadores podem se tornar ainda mais limitados.
Os empregadores de grande porte costumam ter um seguro saúde próprio, o que significa que eles recolhem uma parte das contribuições de seus trabalhadores e pagam por seus cuidados de saúde (embora uma seguradora ou administrador geralmente peça mais informações para reembolsar ou não parte ou todos os gastos solicitados). Esses planos costumam seguir as normas federais sob a Lei de Segurança de Renda de Aposentadoria do Empregado de 1974, conhecida como ERISA, que oferece ampla flexibilidade na criação de um plano de saúde.
Outros empregadores compram seguro saúde em nome de seus trabalhadores e a seguradora é responsável pelos custos. As seguradoras de saúde são reguladas pelos estados e devem seguir as regras estaduais – se o aborto for proibido lá, é pouco provável que se receba qualquer cobertura, mesmo que se viaje para fora do estado.
Muitos empregadores maiores estão se oferecendo para arcar com as despesas de deslocamento das trabalhadoras que precisarem cruzar as fronteiras estaduais para se submeter a um aborto. Isso costuma ser uma extensão das políticas existentes. Normalmente, esses planos oferecem benefícios de deslocamento para pessoas em busca de tratamentos contra câncer, transplantes ou outras terapias especializadas às quais não é possível ter acesso em seu estado ou é preciso viajar um certo número de quilômetros para ter acesso a eles, disseram os advogados especialistas em seguros saúde.
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Mas ainda há preocupações em relação à responsabilidade criminal e civil dos empregadores, sobretudo nos estados com leis que levariam a um processo criminal contra qualquer pessoa no estado que “ajude e incentive” um aborto, mesmo que ele ocorra em outro estado onde o procedimento é legal.
Os planos de saúde regidos pelas normas federais da ERISA talvez tenham proteções adicionais contra ações legais acionadas sob a lei estadual, disseram os especialistas, desde que os serviços sejam legais no estado onde foram prestados. Os advogados também chamam a atenção para a própria decisão judicial do juiz Brett Kavanaugh no caso Dobbs v. Jackson, na qual ele disse que os estados com a proibição do aborto não poderiam impedir as mulheres de buscar o procedimento em outro lugar. Mas, embora as normas da ERISA muitas vezes prevaleçam sobre as leis estaduais que talvez sejam aplicadas aos planos, isso não se estende às leis criminais estaduais.
“Esta questão provavelmente será objeto de litígios e debates contínuos”, de acordo com a força-tarefa para direitos reprodutivos do Morgan Lewis, escritório de advocacia em Washington.
A cobertura oferecida pelo meu empregador vai funcionar de forma diferente se eu viajar para fora do estado?
Isso depende do seu plano.
Mas quando um segurado viaja para fora do estado onde vive para ter acesso a um aborto ou à medicação relacionada, é mais provável que as clínicas estejam foram da rede de cobertura do plano, o que costuma pesar no bolso do segurado ou significa que haverá uma porcentagem menor de reembolso, disse Sarah Raaii, do escritório de advocacia McDermott, Will & Emery. Alguns empregadores podem decidir aliviar esse fardo compensando a diferença e cobrindo certos procedimentos e serviços fora da rede de serviços oferecidos pelo plano contratado, acrescentou ela.
O que a decisão significa para a cobertura de serviços por telemedicina?
As mulheres em estados onde o aborto é proibido talvez considerem a possibilidade de solicitar prescrições de medicamentos relacionados ao procedimento por meio de uma consulta por telemedicina com um profissional que atende em um estado onde o aborto é permitido.
Isso pode não ser tão simples. Mesmo antes da decisão do caso Dobbs v. Jackson, alguns estados proibiam as consultas por telemedicina para prescrever medicamentos que induzem ao aborto ou tinham outras regras que limitavam a viabilidade de consultas remotas de qualquer maneira. E seis estados tinham leis que proibiam o envio de medicamentos abortivos, de acordo com a Fundação Kaiser Family.
Com proibições mais amplas de aborto, as normas no que diz respeito às consultas por telemedicina e cobertura de seguro saúde podem se tornar mais complicadas. Entretanto, um aspecto é relativamente claro: a localização do paciente durante a consulta por telemedicina determinará se é legal prescrever medicamentos para aborto naquele momento, disse Marshall E. Jackson Jr., sócio do McDermott Will & Emery e especialista em cuidados de saúde digitais.
Por exemplo, uma paciente que vive no Missouri, onde o aborto é proibido, não poderia ter medicação para aborto prescrita durante uma consulta por telemedicina enquanto ela estiver no estado em que reside. Mas se a teleconsulta ocorreu quando ela estava trabalhando no escritório de seu empregador em Illinois – e a medicação foi enviada para lá – isso seria, de modo geral, permitido, disse ele.
O quanto eu tenho que me preocupar com privacidade na hora de usar o seguro saúde?
Isso também vai depender de onde você está.
“Se existe um estatuto criminal no estado em que você vive, é necessário se preocupar”, disse Amy M. Gordon, advogada e especialista em seguros saúde do Winston & Strawn. “Depende do quanto os promotores estejam sendo hostis nas acusações contra aqueles que estão fora de seu estado. Portanto, os riscos ainda não estão claros.”
Digamos que você viva em um estado onde o aborto é proibido, mas viajou para outro para conseguir uma prescrição para medicamentos que induzem ao aborto ou para se submeter ao procedimento. Quando os subsídios do plano são usados para pagar as despesas, essas informações geralmente são protegidas pela Lei de Portabilidade e Responsabilidade de Seguro Saúde, conhecida como HIPAA, a norma federal que rege a privacidade dos históricos de saúde de um paciente.
Mas os históricos médicos e os registros de cobranças que normalmente são mantidos em sigilo podem ser divulgados sem a permissão por escrito do paciente em resposta a um mandado ou a uma intimação.
“Um empregador que paga um plano de saúde para seus funcionários pode argumentar que são informações de saúde protegidas e, portanto, não devem ser entregues”, disse Amy. “No entanto, elas não estão completamente protegidas. Existem disposições na HIPAA que permitem a divulgação para a justiça na tentativa de fazer cumprir a lei.”
Existem meios de conseguir ajuda financeira para pessoas sem seguro saúde?
Sim. O governo americano está incentivando as pessoas a darem uma olhada no site reproductiverights.gov, que tem links para outros recursos que podem ajudar as pessoas a encontrarem clínicas de aborto e os chamados fundos para abortos, que podem oferecer assistência financeira.
De acordo com o Instituto Guttmacher, grupo de pesquisa em saúde reprodutiva que apoia o direito ao aborto, existem mais de 80 fundos para abortos que ajudam pacientes em busca do procedimento ou de medicação. Outros grupos, entre eles a Brigid Alliance, oferecem ajudas para deslocamentos, hospedagem e apoio logístico às pacientes.
A cobertura para tratamentos de infertilidade ou contraceptivos será afetada?
A cobertura para métodos contraceptivos não será afetada pela decisão. A maioria dos planos de saúde privados, até mesmo aqueles mais acessíveis devido ao subsídio do governo, deve cobrir métodos e contraceptivos e a orientação para o uso deles, inclusive contraceptivos de emergência, conforme prescrito por um profissional de saúde, de acordo com Ellen Montz, diretora do Centro de Informações ao Consumidor e Supervisão de Seguros no Centro de Serviços Medicare e Medicaid.
Esses planos devem cobrir esses serviços sem cobrar qualquer adicional quando eles forem oferecidos por um profissional credenciado – mesmo que não sejam passíveis de dedução, acrescentou.
Mas há temores de que alguns tipos de tratamentos para infertilidade, que são cada vez mais cobertos pelo seguro saúde oferecido pelo empregador, possam ser limitados, dependendo dos termos jurídicos presentes nas proibições ao aborto.
Especialistas jurídicos dizem que as novas regras não representam uma ameaça imediata para pacientes com infertilidade, os profissionais de saúde que as atendem e os embriões criados em laboratórios, mas isso pode mudar rapidamente, dependendo de como as novas proibições ao aborto são aplicadas.
“Essa poderia ser a próxima fronteira a ser atravessada pelos estados para tentar impor essas leis contra pacientes, profissionais de saúde, empregadores, contribuintes ou outros.”
Tradução de Romina Cácia