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- O Fed realmente pode ter se visto forçado a impulsionar a economia, e pode até ter se saído bem por ora
- No segundo trimestre do ano o índice S&P 500 subiu 20% – mesmo com a pandemia longe de acabar, com lucros em queda, com o aumento da dívida pública e com a taxa de desemprego batendo recordes
Conrad de Aenlle (The New York Times) – Pense na seguinte oportunidade: investir agora num mercado acionário supervalorizado, que no ano que vem estará só um pouquinho supervalorizado desde que uma porção de coisas boas aconteçam – e isso num momento em que as notícias são bem negativas.
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Este não é um experimento hipotético. Qualquer pessoa que invista em ações hoje estará aceitando essas condições, segundo vários analistas e gestores de fundos. A julgar pelo desempenho do mercado, a proposta tem atraído bastante gente.
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No segundo trimestre do ano o índice S&P 500 subiu 20% – mesmo com a pandemia longe de acabar, com lucros em queda, com o aumento da dívida pública, com a taxa de desemprego batendo recordes históricos e com uma economia que mal consegue se manter de pé.
Já era esperado que indicadores econômicos e as ações voltassem a subir em algum momento, considerando o tamanho da queda sofrida por causa da crise do coronavírus. Os céticos, porém, afirmam que a probabilidade de novos avanços nessas duas frentes é extremamente baixa.
“Já tivemos algum aumento, mas a coisa foi longe demais”, diz Tobias Levkovich, estrategista-chefe de mercado acionário do Citi Research nos Estados Unidos. “O que vai acontecer com as dezenas de milhões de pessoas que perderam seu trabalho? O varejo está fechando inúmeras lojas. Para onde vão esses empregos?”
Levkovich acredita que talvez essas perguntas só sejam respondidas depois da eleição presidencial americana de novembro, quando o rumo das políticas públicas ficará mais claro. Até lá, pode ser que os bancos hesitem em conceder crédito – e as empresas hesitem em contratar.
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“A incerteza é grande, e inclui o resultado das eleições e a saída da pandemia”, prossegue ele.
Diretora do departamento de ações da Nuveen, Saira Malik concorda: “há um descompasso entre o mercado acionário e a economia”.
Segundo ela, as boas novas do setor podem acabar se mostrando fugazes se os recentes picos de casos de covid-19 levarem a um aumento nas internações e mortes – e se os consumidores estiverem menos propensos a gastar diante de um panorama de desemprego
e da perspectiva do fim do auxílio do governo.
Mesmo assim, a fé generalizada no Federal Reserve (ou Fed, o banco central americano) deixou o mercado animado. Em março a instituição interveio, adotando uma política monetária complacente e comprando ativos financeiros com recursos que surgiram do nada. Diversos estrategistas aplaudiram as medidas imediatas, mas estão preocupados com os impactos de longo prazo.
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“Naquela situação, eles não tinham outra alternativa”, afirma Steve Kane, gestor de um fundo de títulos na TCW. O Fed já sinalizou que a taxa de juros de curto prazo vai continuar próxima de zero por pelo menos dois anos, e prometeu também comprar uma quantidade praticamente ilimitada de dívida – seja na forma de títulos do tesouro americano ou de fundos high-yield (de “alto retorno”, mas também de alto risco) negociados em bolsa.
O Fed realmente pode ter se visto forçado a impulsionar a economia, e pode até ter se saído bem por ora. Mas, para Kane, essas medidas provavelmente “terão um custo”.
“Quando o banco central impede que o setor privado precifique o risco, ele acaba prolongando a vida de empresas em estado terminal. Isso reduz a eficiência da economia e freia o crescimento. E mais: se o desemprego estrutural seguir alto e o governo continuar gastando, a consequência pode ser inflação”.
Outra fonte de esperança vem da disposição em ignorar a grave desaceleração e olhar apenas para “o outro lado do vale”, conforme a expressão da moda. Isso significa considerar as perspectivas de investimento com base num colorido cenário pós-pandemia.
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No final de junho, o S&P 500 era negociado 24,4 vezes acima do que os analistas esperam que seja a receita deste ano das empresas que compõem o índice. O cálculo está numa avaliação da FactSet Research, segundo a qual essa relação foi de 18,8 vezes na média das duas últimas décadas. Usando a previsão para 2021, que exige um aumento de quase 30% nas receitas, o índice estava sendo negociado a 19 vezes a receita das companhias.
Essa avaliação relativa a 2021 seria só um pouco mais cara do que a média das duas últimas décadas – mas uma previsão é só isso: uma previsão. Com efeito, a receita das empresas pode se recuperar em relação ao nível atual, que foi pressionado pela interrupção obrigatória na atividade econômica. Mas quem garante que isso vai acontecer?
Independentemente de qual será a avaliação desse valor a médio e longo prazo, no momento essa avaliação sem dúvida parece alta – e nem chegou a ficar totalmente baixa, mesmo quando todo mundo saiu vendendo no primeiro trimestre.
“Em março, quando chegamos ao fundo do poço, as avaliações ainda estavam mais altas do que em todos os outros mergulhos da economia nos últimos 55 anos”, escreveu James Stack, editor da newsletter InvesTech Research, numa edição recente do boletim. “E a retomada que se seguiu exacerbou ainda mais as distorções nessa avaliação de valores”.
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Se há uma bolha em formação no mercado acionário, então ela cresceu consideravelmente no segundo trimestre – o que beneficia quem investe nesses fundos. Segundo a consultoria Morningstar, os veículos acionários domésticos americanos subiram em média impressionantes 21,7%, puxados por carteiras com papéis do setor industrial, de bens de consumo cíclicos, recursos naturais e sobretudo de tecnologia.
Por outro lado, quem investe em fundos acionários internacionais teve de se contentar com um ganho médio de 19,7%. O melhor desempenho veio dos especializados em América Latina e Ásia.
Tudo isso contribuiu para essa supervalorização que preocupa analistas. A angústia aumenta com a possibilidade de que o tal vale de crescimento econômico e receitas – aquele cujo “outro lado” está na mira dos otimistas – seja bem maior do que o esperado.
Um relatório escrito por economistas da Anderson School of Management, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, afirma que a pandemia “se transformou numa crise semelhante à uma depressão”. Segundo o estudo, no segundo trimestre a economia diminuiu a uma taxa anual de 42%, e o terreno perdido só será recuperado em 2023.
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Mas esses alertas não estão sendo ignorados apenas por quem investe em ações. Na média, os fundos de títulos subiram 6,5% no trimestre, impulsionados justamente pelos especializados em áreas de maior risco. Os fundos high-yield saltaram 9,4%, enquanto veículos com títulos de dívida de mercados emergentes aumentaram 13%. Já os fundos de títulos de longo prazo do governo permaneceram estáveis.
Quem investe na segurança dos papéis do governo não tem tido resultados maravilhosos – mas Kane acredita que as perspectivas futuras são melhores para essa turma.
Nos fundos high-yield com títulos de dívida, “ninguém está sendo remunerado pelo grau de risco que assume”, afirma ele. Por outro lado, os títulos do tesouro serão beneficiados “se o Fed fizer o que o mercado prevê”, prossegue o gestor da TCW: “não mexer nas taxas de juros por um bom tempo e apoiar a economia no curto prazo”, comprando títulos.
O problema é que o curto prazo não dura para sempre. À medida que a economia e o comércio voltarem mais ou menos ao normal, a pandemia e as medidas tomadas para reduzir seus impactos continuarão sendo sentidas por anos – talvez décadas. E as iniciativas extraordinárias do Fed não são a única fonte de inquietação vinda de Washington.
“O congresso americano está dividido, e o presidente não é nada convencional. Juntos, eles estão aprovando pacotes de estímulo fiscal numa escala capaz de criar déficit orçamentário – algo inconcebível para governos anteriores”, diz Chris Brightman, diretor de investimentos da Research Affiliates.
Brightman teme que a população – sobretudo as gerações mais jovens – comece a esperar do governo os altíssimos níveis de ajuda federal e de intervenção na economia vistos durante esta crise. “Vamos passar anos com déficits trilionários”, afirma ele.
Ainda de acordo com Brightman, tudo isso pode levar à alta dos impostos e dos preços ao consumidor – e à baixa no lucro das empresas nos próximos anos. Além disso, com a supervalorização das ações americanas em relação às bolsas de outros países, “abre-se uma oportunidade para quem quiser limitar o investimento em ações nos Estados Unidos” e aumentar a aposta fora do país.
Malik, da Nuveen, indica tanto ações americanas quanto de outros mercados – desde que sejam de empresas de alta qualidade.
“Companhias com fluxo de caixa sólido e balanços resistentes continuarão tendo desempenho superior”, prevê a especialista.
Entre suas recomendações estão empresas japonesas economicamente sensíveis, o setor de tecnologia nos Estados Unidos, organizações de crescimento lento porém estável (cujos dividendos estejam sempre aumentando) e negócios de todo o mundo com bons indicadores de sustentabilidade, responsabilidade social e governança.
Ela também aposta em ações de alta qualidade de economias emergentes que estavam se saindo bem antes da pandemia, como o Brasil. Encontrar esse tipo de ação, no entanto, pode ser difícil para investidores comuns. Por isso Malik sugere recorrer a fundos especializados com gestão ativa e um bom histórico de resultados.
Já Levkovich, do Citi Research, recomenda setores que se beneficiariam de um crescimento modesto, mas não espetacular. Ele acredita que bancos, empresas de saúde, de semicondutores e hardware podem ter bom desempenho, e aconselha pouca exposição na área de energia, por exemplo – que é mais sensível às oscilações da economia e tem tido resultados bastante bons (talvez até bons demais) nos últimos meses.
Kane também vê com bons olhos o setor de instituições financeiras. Neste momento em que os bancos trabalham para cicatrizar as feridas autoinfligidas durante a crise, sua força financeira faz com que esses papéis se tornem atraentes – assim como ações de áreas mais seguras, a exemplo de bens essenciais.
Para Kane, a alta qualidade das ações será útil no momento em que as empresas descobrirem que vão precisar de toda a ajuda possível quando o ciclo da pandemia e da recessão for chegando ao fim – mesmo que o movimento do mercado acionário não indique isso.
“Algumas empresas não conseguirão voltar ao ponto onde estavam antes da pandemia”, diz ele. “O desemprego vai continuar em alta, e isso tem um impacto no comportamento dos negócios, do consumo e da poupança. A economia vai frustrar suposições otimistas baseadas apenas no preço das ações”.
(Tradução: Beatriz Velloso)
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