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Desde 2009, a China tornou-se o maior parceiro comercial do Brasil, respondendo em 2023 por cerca de 31% das exportações brasileiras e 23% das importações. Esse crescimento exponencial refletiu, de um lado, o boom das commodities na década de 2000 e o apetite chinês por matérias-primas; de outro, a inundação do mercado brasileiro por produtos manufaturados chineses baratos, principalmente a partir dos anos 1990 com a estabilização do real atrelado ao dólar.
Hoje, o Brasil exporta principalmente meia dúzia de produtos primários para a China – notadamente soja, petróleo bruto, minério de ferro e carnes – enquanto importa uma ampla gama de bens industrializados e de alta tecnologia. Em 2023, três produtos (soja, petróleo e minério de ferro) responderam por cerca de 75% das vendas brasileiras à China.
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A China, por sua vez, domina categorias inteiras das importações brasileiras, de componentes eletrônicos a equipamentos de telecomunicações. Esse desequilíbrio estrutural tornou-se a marca registrada da parceria: o Brasil consolidou-se como fornecedor de commodities, enquanto a China é o fornecedora de manufaturados, gerando preocupações sobre desindustrialização e vulnerabilidade econômica a longo prazo.
No agronegócio, a China exerce uma influência sem precedentes. Aproximadamente 73% a 75% da soja exportada pelo Brasil tem a China como destino, fazendo do gigante asiático o principal comprador de soja, carne bovina, celulose e diversos produtos agrícolas brasileiros. Esse mercado impulsionou a expansão da produção nacional de grãos e proteínas – a capacidade produtiva de soja, carnes e minério de ferro cresceu em grande parte “única e exclusivamente” para atender à demanda chinesa. Os ganhos foram enormes: em 2023, as exportações recordes de soja contribuíram para um superávit comercial brasileiro de US$ 88,8 bilhões.
Entretanto, essa dependência traz riscos claros. E se a China reduzir suas compras? Estudos chineses já reconheceram o perigo de confiar excessivamente no Brasil e exploram alternativas, como estimular (ainda que de forma limitada) a produção doméstica de soja ou investir em plantações na África Oriental. Até o Partido Comunista Chinês avalia formas de diluir a dependência da soja brasileira, pois entende que depender demais de um só fornecedor é estratégico e politicamente arriscado.
Para o Brasil, isso significa que o atual “monopólio” chinês como comprador pode não durar para sempre. Uma diversificação dos compradores seria saudável: outros países asiáticos, europeus e do Oriente Médio já importam nossos produtos agrícolas, mas em volumes modestos se comparados à China. O agronegócio brasileiro precisa estar preparado para oscilações na demanda chinesa – seja por competição de outros fornecedores, mudanças na dieta chinesa ou desaceleração econômica lá.
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Enquanto o campo brasileiro prospera com as vendas à China, a indústria de transformação nacional enfrenta desafios. A participação do Brasil nas exportações globais de manufaturados caiu para apenas 0,8%, ocupando a 31ª posição mundial, ao passo que a China lidera com 18,4%. Essa disparidade espelha-se internamente: 244 tipos de produtos compõem a pauta exportadora do Brasil para a China, contra 784 produtos diferentes exportados pela China ao Brasil.
E mais: somente 14 produtos brasileiros vendidos à China podem ser classificados como de alta tecnologia, contra 80 produtos chineses de alta tecnologia entrando no mercado brasileiro. O resultado é uma balança comercial setorial preocupante: o Brasil sustenta superávits vendendo commodities, mas registra déficits crônicos na indústria, importando de máquinas a eletrônicos.
Parte desse desequilíbrio se deve a práticas comerciais agressivas. Concorrentes chineses muitas vezes operam com custos inferiores – seja por escala, subsídios ou menores padrões regulatórios – e conseguem oferecer preços com os quais a indústria local não consegue competir.
Em certos casos, há indícios claros de dumping, quando produtos chineses são vendidos aqui abaixo do custo. O Brasil tem reagido com instrumentos de defesa comercial: atualmente, aplica 131 medidas antidumping contra importados de diversos países, sendo a China um dos principais alvos dessas ações . Itens como aço, calçados, brinquedos e têxteis chineses já sofreram sobretaxas por aqui para neutralizar práticas desleais.
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Pequim também não hesita em retaliar quando lhe convém – um exemplo pouco conhecido foi a tarifa antidumping chinesa sobre a carne de frango brasileira, que vigorou até fevereiro de 2024. Esses embates pontuais mostram a necessidade do Brasil proteger setores estratégicos da manufatura sem escalar conflitos: usar os mecanismos da OMC e negociações bilaterais para coibir dumping, mas sempre com base técnica sólida. Afinal, uma indústria nacional forte é questão de segurança econômica.
No setor de energia, a relação é de cooperação intensa, porém desigual em controle. A China tem investido massivamente no Brasil: entre 2007 e 2022, empresas chinesas destinaram cerca de US$ 71,6 bilhões em projetos no país, dos quais 45,5% foram para o setor de eletricidade e 30,4% para a extração de petróleo. Graças a isso, gigantes estatais como State Grid e China Three Gorges (CTG) hoje controlam ativos importantes – a State Grid adquiriu a CPFL Energia (CPFE3), uma das maiores empresas elétricas do Brasil, e a CTG opera grandes usinas hidrelétricas, como Jupiá e Ilha Solteira.
Por um lado, esses investimentos trouxeram capital e tecnologia, ajudando a expandir a infraestrutura de transmissão e geração. A parceria sino-brasileira em energia renovável também abre oportunidades, como projetos conjuntos em energia solar, eólica e até transição para veículos elétricos.
Por outro lado, cresce o debate sobre a dependência de capital e tecnologia chinesa em áreas estratégicas. Ter uma fatia significativa do setor elétrico nacional nas mãos de empresas estrangeiras – ainda que de um país parceiro – acende um alerta em termos de soberania energética. O mesmo vale para a exportação de petróleo bruto: a China é uma das maiores compradoras do óleo brasileiro do pré-sal, reforçando novamente nosso papel de fornecedor de matéria-prima e deles, de processador (refino) e distribuidor de valor agregado.
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O Brasil precisa equilibrar esse jogo aproveitando a parceria, mas evitando entregar o controle total de cadeias críticas. Isso significa exigir contrapartidas quando do investimento estrangeiro: transferência de tecnologia, associação com empresas nacionais e respeito à regulação brasileira.
Setores como energia, telecomunicações e minerais estratégicos (terras raras, lítio, etc.) exigem vigilância do Estado, tal como potências ocidentais fazem, para que o engajamento chinês ocorra de forma benéfica e não vulnerabilize nossa segurança econômica no longo prazo.
O Brasil não é o único a enfrentar o dilema de como engajar a potência chinesa de forma vantajosa. Outras nações têm ajustado suas políticas e fornecem lições valiosas:
Estados Unidos
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Optaram por um enfrentamento direto desde 2018, lançando uma guerra comercial contra a China. Washington impôs tarifas sobre centenas de bilhões de dólares em produtos chineses, atingindo alíquotas de até 25%–30% em diversas categorias.
Em resposta, Pequim retaliou na mesma moeda. Essa escalada tarifária perdura (com altos e baixos) até hoje e levou os EUA a adotarem uma estratégia de “decoupling” (desacoplamento) em setores sensíveis – semicondutores, 5G, Inteligência Artificial (IA) etc.
Além das tarifas, os americanos aprovaram leis de incentivo à produção interna, como o CHIPS Act (destinando US$ 52 bilhões para fabricação doméstica de chips) e o Inflation Reduction Act (subsidiando veículos elétricos e baterias produzidos fora da China). A mensagem é clara: reduzir dependência de insumos críticos chineses e proteger tecnologia nacional.
No entanto, essa abordagem agressiva tem custos, inclusive para empresas e consumidores americanos (que arcam com preços mais altos). A lição ao Brasil é que medidas protecionistas drásticas só devem ser adotadas com critério – confrontos abertos podem provocar retaliações e volatilidade, exigindo poder de fogo econômico e político que nem sempre possuímos.
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Em vez disso, podemos nos inspirar na assertividade dos EUA em identificar setores estratégicos e fomentar sua competitividade por meio de investimento e inovação.
União Europeia
Os europeus adotam uma linha de “de-risking”, ou seja, redução de riscos, sem um rompimento total. A Comissão Europeia lançou, em 2023, um plano para desenvolver uma economia mais resiliente e menos dependente da China em tecnologias essenciais. Entre as medidas estão o monitoramento mais rigoroso de investimentos estrangeiros (visando evitar aquisições chinesas indesejadas em setores sensíveis), controle de exportações de itens de uso dual (civil e militar) e iniciativas para reforçar cadeias locais em baterias, chips e matérias-primas críticas.
Países como Alemanha e França também aumentaram o escrutínio sobre projetos chineses de infraestrutura – portos, redes de 5G, energia – para garantir que interesses nacionais não sejam comprometidos.
Ao mesmo tempo, a UE busca diversificar fornecedores (por exemplo, projeto Global Gateway para investir em alternativas ao Belt and Road chinês) e manter diálogo diplomático. Ao Brasil, a UE sinaliza a importância de políticas industriais robustas: investir em P&D, qualificar a mão de obra e incentivar a produção local de bens estratégicos (da agricultura de precisão a fármacos), para reduzir vulnerabilidades sem fechar o mercado.
Austrália
Caso emblemático de parceiro comercial da China que precisou recalibrar a relação. Extremamente dependente das exportações de minério de ferro, carvão, carne e vinho para a China, a Austrália viu-se em crise quando se desentendeu politicamente com Pequim em 2020. O governo chinês retaliou impondo tarifas de 80% sobre a cevada e de até 200% sobre vinhos australianos, além de barrar importações de carne e carvão.
Esses embargos afetaram duramente setores inteiros na Austrália, servindo de alerta sobre os riscos de apostar todas as fichas em um só mercado. A resposta australiana foi buscar novos mercados e alianças: firmou um amplo acordo comercial com a Índia, reaproximou-se de parceiros tradicionais (Japão, Coreia do Sul, EUA) e investiu na promoção de seus produtos em países do Sudeste Asiático.
Diversificar tornou-se palavra de ordem. Com o tempo, e uma mudança de governo, as tensões arrefeceram; em 2023 a China suspendeu as tarifas sobre a cevada australiana, por exemplo, indicando uma retomada mais equilibrada do diálogo.
Para o Brasil, fica a lição clara: diplomacia consistente e expansão de mercados são seguros contra intempéries. É preciso estar pronto para redirecionar exportações se o vento mudar em Pequim, mantendo sempre canais de conversa abertos para evitar mal-entendidos que virem retaliações econômicas.
Diante desse cenário multifacetado – oportunidades gigantes e desafios igualmente grandes – o Brasil deve redefinir sua estratégia comercial com a China de forma inteligente e assertiva. Seguem algumas ações concretas que podem ser consideradas:
Não podemos mais agir de forma errática ou fragmentada – é hora de ter uma política de Estado clara para a relação com a China, independentemente de governos.
O Brasil deve usar sem hesitação os instrumentos de defesa comercial previstos nas regras internacionais para combater práticas desleais. Medidas antidumping, salvaguardas e exigências de conteúdo local são ferramentas legítimas. É importante dotar a Secretaria de Comércio Exterior (Secex) de recursos técnicos para investigar rapidamente importações predatórias e aplicar sobretaxas quando necessário.
Ao mesmo tempo, é preciso revigorar a indústria doméstica através de incentivos. Retomar e aprimorar programas de financiamento (via BNDES, por exemplo) para parques industriais em setores como máquinas agrícolas, eletrônicos, fertilizantes, fármacos e equipamentos de energia renovável.
Uma política industrial moderna – alinhada com sustentabilidade e Indústria 4.0 – pode ajudar nossas empresas a competir de igual para igual, inclusive atraindo investimentos chineses para fábricas em solo brasileiro. Ou seja, incentivar empresas da China a produzir aqui, gerando empregos locais, em vez de apenas exportarem para nós. Isso diminui o déficit na balança de manufaturados e transfere conhecimento.
A neoindustrialização anunciada em 2023 precisa sair do papel com ações concretas, e a parceria com a China pode ser canalizada para isso, desde que bem negociada.
A melhor salvaguarda contra a dependência é diluir o risco. O Brasil deve buscar novos acordos comerciais e fortalecer os existentes para reduzir o peso relativo da China no nosso comércio. Concluir o acordo Mercosul – União Europeia, por exemplo, abriria mercados importantes para produtos agroindustriais e manufaturados de maior valor agregado, diminuindo a concentração das exportações em um só destino.
Ampliar parcerias com outros países da Ásia (Índia, ASEAN, Japão, Coreia) também é estratégico – isso inclui negociar barreiras, participar de feiras internacionais e missões comerciais para promover nossos produtos.
Na América Latina e África, o Brasil pode recuperar terreno como fornecedor de bens industrializados (máquinas, alimentos processados, serviços de engenharia), campos em que a concorrência chinesa avançou.
Diversificar também vale para importações: fomentar, sempre que possível, fornecedores alternativos (ou produção local) para insumos críticos hoje comprados da China – seja em componentes eletrônicos, defensivos agrícolas ou equipamentos médicos. Essa distribuição de parceiros aumenta nossa resiliência em caso de choques geopolíticos.
Em vez de temer ou banir investimentos chineses, o Brasil deve orientá-los para áreas de interesse nacional. Por exemplo, propor à China parcerias em ferrovias e portos – infraestrutura crucial para reduzir nossos custos logísticos.
Conforme apontado por especialistas, só a China tem o know-how e capital para, eventualmente, ajudar-nos a construir dezenas de milhares de quilômetros de ferrovias de forma rápida. Isso seria revolucionário para o escoamento de grãos e minérios, aumentando a competitividade brasileira e reduzindo custos que hoje nos tiram mercados.
Mas tais projetos devem vir com acordos claros: uso de aço e materiais brasileiros, treinamento de mão de obra local e governança transparente para evitar dependência tecnológica.
O mesmo vale para tecnologia de ponta: podemos cooperar com os chineses em energia limpa (como baterias e carros elétricos), telecomunicações 5G/6G e inteligência artificial, mas assegurando proteção de dados e integração de empresas brasileiras nessas cadeias. A palavra-chave é “ganha-ganha”: acolher investimentos e conhecimento chineses que ajudem no desenvolvimento doméstico, e não apenas reforcem nosso papel de exportador de básicos.
Por fim, uma relação comercial saudável requer comunicação constante e franca. Brasil e China já possuem uma Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível (Cosban); é preciso utilizá-la efetivamente para tratar de temas sensíveis – desde barreiras sanitárias que afetam nossas exportações (como embargos temporários à carne bovina) até preocupações brasileiras com práticas comerciais chinesas. Negociar diretamente soluções antes de partir para medidas punitivas evita atritos desnecessários.
Ademais, coordenar posições em fóruns multilaterais pode ser útil: se China e Brasil se comprometem, por exemplo, com regras mais rígidas sobre subsídios industriais na OMC, isso beneficia a previsibilidade mútua. Investir em diplomacia comercial profissional (adidos agrícolas, escritórios de promoção comercial na China, intercâmbio entre reguladores) ajuda o Brasil a navegar a complexidade do mercado chinês e defender seus interesses com propriedade. Em suma, engajar a China com respeito e firmeza, sem ingenuidade.
Os laços econômicos entre as duas nações são profundos, entrelaçando a fome chinesa por recursos e o apetite brasileiro por investimento e bens de consumo. No entanto, como vimos, essa relação apresenta desequilíbrios históricos que não podem ser ignorados. Redefinir a relação comercial não significa romper os laços – longe disso. Significa, na verdade, amadurecer a parceria: torná-la mais simétrica, mais resiliente e alinhada aos interesses de desenvolvimento do Brasil.
O momento é oportuno. Com 50 anos de relações diplomáticas completados recentemente e um contexto global em mudança (guerra na Ucrânia, rearranjos nas cadeias produtivas, transição energética mundial, Trump), o Brasil tem espaço para repensar seu papel.
Adotar uma postura assertiva e inteligente significa diversificar riscos, agregar valor à nossa pauta exportadora e proteger nossos setores-chave, tudo isso sem perder de vista a importância da China como aliada comercial. É um balanço delicado – exige refinamento de estratégias, investimento em inteligência de mercado e coordenação entre governo e iniciativa privada. Mas os ganhos potenciais são enormes: um Brasil menos vulnerável a choques externos, com indústria revigorada e ainda capaz de aproveitar o melhor da complementaridade com a China.
Em suma, é hora de o Brasil sair da posição reativa e assumir uma abordagem proativa na relação com a potência asiática. Aprendendo com os erros e acertos de outros países e com nossa própria experiência histórica, podemos redefinir os termos do engajamento.
O objetivo final deve ser uma relação saudável e sustentável, em que crescimento econômico e soberania caminhem juntos. Com confiança, elegância diplomática e dados em mãos, o Brasil pode – e deve – buscar um novo patamar de parceria com a China: mais equilibrado, benéfico e estratégico para as próximas décadas.
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