

Nas entrelinhas do tarifaço de Donald Trump sobre as exportações para os Estados Unidos e as oscilações cambiais, está em curso uma disputa histórica: a reconfiguração do sistema monetário e financeiro global.
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Nas entrelinhas do tarifaço de Donald Trump sobre as exportações para os Estados Unidos e as oscilações cambiais, está em curso uma disputa histórica: a reconfiguração do sistema monetário e financeiro global.
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O que à primeira vista parece ser uma questão pontual, a elevação de tarifas americanas sobre produtos brasileiros é, na verdade, mais um capítulo da luta pela sobrevivência do dólar como principal instrumento de poder global dos Estados Unidos.
O dólar tornou-se moeda de referência global desde Bretton Woods (1944), dando aos Estados Unidos o que, nos anos de 1960, Valéry Giscard d’Estaing chamou de “privilégio exorbitante” de poder emitir a moeda mais usada no mundo.
Em 2022, quando os EUA congelaram cerca de US$ 300 bilhões em reservas da Rússia e a baniram do sistema SWIFT, algo fundamental se explicitou: muito mais do que uma moeda, o dólar americano é uma ferramenta de coerção geopolítica.
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Ao reforçar a centralidade do dólar, demonstrando sua capacidade de excluir países inteiros do sistema financeiro global, neste ato de 2022, os Estados Unidos despertaram um alerta global quanto ao perigoso privilégio tão bem nomeado décadas antes por Giscard d’Estaing.
Concordo com as análises que vêm apontando que a política de tarifas iniciada por Donald Trump não visa apenas proteger a indústria americana. Trata-se de uma estratégia para reverter décadas de desindustrialização e manter a atratividade dos EUA como centro produtivo e monetário.
De acordo com o Bureau of Economic Analysis (BEA), a participação da indústria de transformação no Produto Interno Bruto (PIB) americano caiu de 16,1% (1997) para 10% (2024). Assim, não é errônea a interpretação de que a guerra de tarifas de Trump opera como choque corretivo e como alerta global: ou aceitam as regras americanas, ou arcam com o custo.
A verdade é que desde a crise do subprime em 2008, vem ganhando espaço um processo, ainda que relativamente lento e difícil, de “desdolarização”. A China, por exemplo, reduziu em 40% sua exposição a títulos do Tesouro dos EUA desde 2013.
Nesse contexto, um movimento importante ganhou destaque recentemente: a China passou a liquidar parte significativa de seu comércio com os países da Ásia diretamente em renminbi (RMB), utilizando seu próprio sistema de pagamentos e evitando o SWIFT, que é dominado pelo dólar.
Trata-se de uma iniciativa robusta de fortalecimento da moeda chinesa nas transações internacionais, e que se soma à tendência observada entre os bancos centrais: a participação do dólar nas reservas cambiais globais, que girava em torno de 70% em meados da década passada, caiu para cerca de 58% em 2024.
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Paralelamente, entre 2022 e 2024, os bancos centrais compraram mais de mil toneladas de ouro por ano, o dobro da média histórica, sinalizando que o metal volta a ser reserva de valor diante do medo de sanções ou congelamentos.
A direção do movimento é clara: a busca por alternativas ao dólar como reserva e meio de pagamento cresce, ainda que lentamente, em meio ao avanço de acordos bilaterais, uso regionalizado de moedas locais e adoção progressiva de mecanismos de compensação fora do eixo dominado pelos Estados Unidos.
Para o Brasil, as consequências são concretas. O aumento das tarifas americanas cria um ambiente de incerteza. Investidores não conseguem precificar risco de forma muito precisa, o que aumenta a volatilidade cambial e pressiona o real, com a taxa de câmbio se tornando refém do movimento especulativo.
E como você bem sabe, o mercado não gosta de imprevisibilidade, com isso, a tendência é continuarmos vendo movimentos de grandes fundos retirando capital do país, fortalecendo o dólar frente ao real.
A questão é que reduzir a dependência da moeda hegemônica demanda uma ação coordenada internacional de grande porte, o que nunca é simples. Sistemas alternativos ao SWIFT como o CIPS (China) e o SPFS (Rússia) vêm ganhando espaço, assim como moedas digitais soberanas emitidas por bancos centrais.
No início de julho, no encontro da Cúpula do Brics (sigla que representa o bloco de países formados por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) no Rio de Janeiro, reafirmou-se o que já estava presente no documento final da cúpula de 2024, quanto à “importância do uso de moedas locais em transações financeiras entre os países do Brics e seus parceiros comerciais”.
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Toda essa movimentação é a gênese geopolítica do tarifaço de Trump, demonstrando que, como é de se esperar em uma guerra de poder dessa magnitude, ele vai “cair atirando” sem poupar ninguém.
Como afirmou David Harvey em seu livro Os Limites do Capital, a supremacia do dólar foi imposta junto com a militar, e o dólar saiu da II Guerra reinando supremo. Contudo, uma das bases da força do dólar está há anos sendo minada por uma transformação estrutural: o modelo de acumulação dos EUA deslocou-se da indústria para as finanças.
Desde 2008, o país depende cada vez mais da financeirização da economia e do complexo industrial-militar. Enquanto isso, a China torna-se a maior potência industrial do mundo, com exportações 73% maiores que as dos EUA em 2024.
Hoje, China e Rússia aumentam seus gastos militares e tecnológicos, questionando essa supremacia do dólar. Em 2024, os dois países juntos responderam por quase metade do gasto militar dos EUA. Ou seja, mais do que armamentista, a corrida é por influência monetária.
A conclusão é que a luta pela hegemonia do dólar é também a luta pela forma como o poder global será distribuído. O tarifaço de Trump é mais um gesto de uma superpotência tentando manter seu lugar no topo, ainda que isso custe a estabilidade do sistema que ela mesma criou.
O que está em jogo, portanto, não é apenas o preço da carne, do café ou do milho, mas a arquitetura do sistema internacional de trocas. E o Brasil, como elo importante do agronegócio global e país exportador, precisa escolher: ser espectador ou articulador de seu destino.
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Investir em diplomacia econômica, diversificar mercados e fortalecer alianças para proteger seus interesses, mais do que nunca significa pensar além das commodities e enxergar o futuro das relações comerciais como uma oportunidade de reposicionamento e liderança. Resta saber até onde temos peças suficientes para jogar nesse tabuleiro.
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