O Imposto de Renda da Pessoa Física sempre repercutiu a evolução da economia. Quando os fundos de investimento começaram a se popularizar, a Receita criou códigos específicos; o mesmo aconteceu com os planos de previdência privada, os imóveis adquiridos no exterior e, mais recentemente, com os criptoativos, reforçando o controle fiscal.
Mas a velocidade da transformação tecnológica impôs novos dilemas: como declarar moedas virtuais, tokens não fungíveis (NFTs) e outros ativos digitais? E, mais ainda, como lidar com a chamada “herança digital”, que vai muito além das senhas de redes sociais e pode envolver patrimônio milionário?
Desde 2019, corretoras nacionais de criptomoedas (as chamadas ‘exchanges’) são obrigadas a reportar todas as operações de seus clientes. Quem opera em plataformas estrangeiras ou mantém as chamadas “carteiras próprias” também deve informar os saldos no IRPF, sob pena de multa e malha fina.
Nos últimos anos, a Receita Federal passou a exigir que contribuintes informem, na ficha de “Bens e Direitos”, qualquer criptoativo — de ‘bitcoin’ a ‘stablecoins’, passando por ‘altcoins’ e ‘NFTs’. O objetivo é claro: aumentar a transparência e reduzir a evasão. A omissão pode levar o contribuinte à malha fina e até gerar questionamentos criminais por sonegação.
Quem opera em corretoras estrangeiras ou por meio de carteiras digitais (“wallets”) também precisa informar os saldos, sob pena de multa elevada. Na prática, a Receita acompanha cada vez mais de perto essa fronteira digital.
O desafio não se limita à declaração em vida. Quando alguém falece deixando criptomoedas, surge um problema jurídico ainda pouco explorado: como incluir tais ativos no inventário se os herdeiros não têm acesso às chaves privadas? Diferentemente de uma conta bancária, que pode ser desbloqueada por ordem judicial, as criptos são descentralizadas e intransferíveis sem senha. O mesmo vale para NFTs que representam obras de arte, músicas ou até itens de jogos eletrônicos.
Esse cenário tem levado famílias a enfrentar verdadeiros “buracos negros patrimoniais”. Há casos em que milhões de dólares em criptoativos simplesmente se perderam porque o falecido não compartilhou as credenciais. Do ponto de vista fiscal, a Receita entende que esses ativos integram o espólio e, portanto, devem ser inventariados e tributados pelo ITCMD (imposto estadual), além de gerar efeitos no próprio IRPF. O problema é que, sem acesso às carteiras, esse patrimônio se torna invisível.
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Para a Receita, os ativos existem e devem ser declarados; para a família, eles estão congelados em cofres virtuais inalcançáveis. O resultado é o risco de cobrar impostos sobre patrimônio que, na prática, jamais poderá ser aproveitado pelos herdeiros.
Não é à toa que especialistas em planejamento sucessório já falam na necessidade de testamentos digitais ou de diretrizes antecipadas de vontade específicas para ativos virtuais. Alguns países estudam legislações próprias para permitir que plataformas de custódia auxiliem na transferência aos herdeiros; no Brasil, ainda caminhamos no improviso, entre a obrigação fiscal e a dificuldade prática.
Testamentos digitais e diretrizes de vontade
É nesse ponto que o planejamento sucessório digital ganha relevância. Muitos países começam a discutir a necessidade de ‘testamentos digitais’, em que o titular especifica como e para quem devem ser entregues seus ativos virtuais, inclusive fornecendo meios de acesso. Nos Estados Unidos, há decisões judiciais que autorizam plataformas a entregar e-mails e dados digitais a familiares mediante apresentação de um testamento. No Reino Unido, empresas de custódia já oferecem planos de ‘transferência automática’ em caso de morte do titular.
No Brasil, ainda não há legislação específica. Mas já é possível e recomendável incluir cláusulas digitais em testamentos tradicionais, prevendo a existência de criptoativos e indicando a forma de acesso pelos herdeiros. Uma alternativa são as chamadas ‘Diretrizes Antecipadas de Vontade’ (DAV), mais conhecidas no campo da saúde, mas que podem ser adaptadas para o universo digital. Nelas, a pessoa pode registrar, em cartório, instruções para o destino de suas carteiras, chaves privadas, senhas e até NFTs.
Esse cuidado evita dois problemas sérios: a perda patrimonial pura e simples e o conflito entre herdeiros. Imagine irmãos que descobrem, durante o inventário, que o falecido possuía ativos digitais, mas sem deixar pistas de acesso; além da dor da perda, nasce uma batalha judicial e familiar em torno de bens que, no fim, podem jamais ser recuperados.
Conclusão
Mais do que preencher campos em um programa, o contribuinte é chamado a refletir sobre a proteção e transmissão de um patrimônio intangível, mas cada vez mais valioso. Afinal, quem não planeja em vida pode deixar aos herdeiros não apenas dívidas e burocracias, mas também cofres digitais trancados para sempre.
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O patrimônio digital deixou de ser exceção e se tornou rotina fiscal. Agora, falta o passo mais importante: transformar essa obrigação de declarar em uma garantia efetiva de transmissão. ‘Testamentos digitais’ e ‘diretrizes antecipadas de vontade’ já são alternativas práticas que devem ser incorporadas à rotina de quem acumula criptoativos; mas sem uma legislação clara, continuaremos reféns de improvisos.