Dada a natureza dinâmica das relações entre países, em um ambiente geopolítico altamente imprevisível, falar sobre neutralidade nas relações internacionais torna-se ainda mais complexo — e com impactos de curto, médio e longo prazos.
Leia também
Há alguns anos, eu estava em Viena, em conversa com um diplomata europeu que trabalhava nas negociações entre o P5+1 (os cinco membros do Conselho de Segurança da ONU e a Alemanha) e o Irã. As negociações eram voltadas para paralisar a produção iraniana de urânio enriquecido, afim de liberar reservas iranianas congeladas em bancos ocidentais.
Estávamos em um bar, falando sobre as dificuldades das negociações e sua percepção de todo o processo de negociação. “O volume de informações que precisamos ter em mente, conhecimento cultural do outro lado, análise histórica de tudo que já foi tentado, conhecimento profundo sobre o que o outro lado deseja, faz dessa negociação algo lento e extremamente difícil”. No dia seguinte, eu iria tomar um chá com um diplomata iraniano, também baseado em Viena, afim de compreender o lado dele.
Publicidade
Os dois (o europeu e o iraniano) eram amigos e almoçavam juntos sempre que possível. No entanto, estavam em lados opostos, trabalhando incessantemente para buscar uma solução que fosse vista como justa pelos dois lados. Na conversa, o iraniano foi categórico: “o maior problema, Thiago, é a barreira cultural e o peso da história nas decisões tomadas de cada lado. Mesmo as visões equivocadas do P5+1, eu respeito, pois os aspectos históricos do lado deles contaminam o processo de tomada de decisões, assim como devem contaminar o nosso também”.
No fim, um acordo foi feito. Durou até o ex-presidente Trump, unilateralmente, abandoná-lo (alegando que era injusto), e jogar o Irã para os braços de Pequim — garantindo assim não só o aumento no enriquecimento de urânio iraniano, mas também ampliando a zona de influência chinesa no Médio Oriente.
A construção do acordo foi difícil e envolveu um enorme volume de conhecimento (dos dois lados). Só quem viu de perto tem noção dos calhamaços de documentos e análises lidas e relidas diariamente por anos. Bastou um ato de Trump, com profundo desconhecimento das relações internacionais, para que o Irã (e logo depois a Arábia Saudita, em outro erro crasso do ex-presidente americano) caísse nos braços da China.
Assim como no ambiente de trabalho e na vida em geral, meter-se de cabeça naquilo que não se compreende tende a gerar resultados desastrosos. O movimento do governo brasileiro para mediar a guerra na Ucrânia é um desses momentos.
Publicidade
O Brasil não precisa buscar desesperadamente envolvimento nos grandes problemas globais para poder ganhar respeito internacional. Se por um lado, a política externa do governo Lula supera qualquer coisa feita durante o apagão diplomático dos anos Ernesto Araújo, a tentativa de mediar Ucrânia e Rússia mais parece um movimento “à la Ernesto” do que qualquer outra coisa. Por mais esdrúxula que seja a ideia do Brasil se colocar como um mediador confiável e efetivo entre Rússia e Ucrânia, os recentes atos e posicionamentos confirmam a tese de que não há conhecimento profundo sobre o que realmente está em jogo.
Primeiro, se o Brasil deseja tornar-se um ator confiável, uma visita surpresa de Celso Amorim, assessor internacional de Lula, à Moscou não é a melhor das ideias. O fato de ter sido uma viagem surpresa já indica que não havia conforto em anunciá-la com antecedência. Se a razão fosse apenas para garantir o fornecimento de fertilizantes, então a visita de Amorim não passa de uma repetição da mesma narrativa usada por Bolsonaro quando visitou Moscou há um ano. Será que uma visita surpresa à Kiev não seria melhor?
Segundo, se o Brasil quer demonstrar para a comunidade internacional que é um mediador confiável e técnico, não parece ser uma boa ideia buscar o apoio da Rússia e da China para o processo de mediação. Se um lado (a Rússia), que ao mesmo tempo é o agressor, adora a ideia de o Brasil mediar, algo de errado aconteceu. Já a China, aliada pragmática da Rússia, naturalmente apoiaria o Brasil nessa jornada.
Terceiro, se o Brasil quer ser visto como um mediador neutro e técnico, falar o menos possível publicamente seria o comportamento esperado de Celso Amorim e de Lula. Quando o Presidente diz publicamente que os territórios invadidos pela Rússia não deveriam ser devolvidos à Ucrânia num processo de pacificação, cria-se uma falsa equivalência entre os dois lados que colocam em risco a visão e o posicionamento brasileiro em relação à soberania territorial como um todo. Não há equivalência entre um agressor e o agredido.
Publicidade
Lula tem a faca e o queijo na mão para executar uma excelente política externa. No entanto, Lula, Celso Amorim, e outros membros do governo devem saber que existem áreas nas quais o Brasil é relevante e outras em que não. Diplomacia Ambiental deveria ser o carro-chefe de Lula na política externa. Falar sobre a Amazônia, sobre direitos das minorias, isso sim são áreas que Lula pode abordar com autoridade e seu carisma certamente ajudará.
Por outro lado, “mediar” uma guerra sobre a qual nada se sabe, escolhendo um lado para defender, argumentando publicamente que o país que foi invadido deve permanecer assim, mostra um amadorismo que, de tão chocante, confunde. Não duvido que Lula logo mais voltará sua atenção para uma “mediação” entre China e Taiwan. Isso não é demonstrar preocupação com os temas quentes do mundo, mais parece uma busca incessante por palco.