O que este conteúdo fez por você?
- JP Morgan acusa a fundadora de uma empresa de planejamento financeiro universitário de ter falsificado uma longa lista de clientes para enganar o banco
- Charlie Javice, criadora de uma série de startups que ajudavam estudantes a pagar sua universidade, chegou a ser considerada pela Forbes como uma das pessoas com até 30 anos que revolucionaram os negócios em 2019
- O JP Morgan, buscando um canal direto com jovens adultos, comprou a Frank, empresa de Charlie, e logo abriu uma investigação para averiguar se os clientes e investidores apontados pela jovem eram, de fato, reais
Quando o JP Morgan Chase pagou US$ 175 milhões para adquirir uma empresa de planejamento financeiro universitário chamada Frank em setembro de 2021, ele anunciou a “oportunidade única para um envolvimento maior” com os cinco milhões de universitários com quem a Frank trabalhava em parceria com mais de seis mil instituições americanas de ensino superior.
Então, no mês passado, o maior banco dos Estados Unidos fez algo extraordinário: disse que tinha sido enganado.
Em uma ação judicial, o JPMorgan alegou que a jovem fundadora da Frank, Charlie Javice, tinha se envolvido num esquema elaborado para preencher essa lista de cinco milhões de clientes com informações falsas.
“Para ganhar dinheiro, Charlie decidiu mentir”, dizia o processo. “Inclusive mentir sobre o sucesso da Frank, o tamanho da empresa e a profundidade da penetração de mercado dela.” Charlie, por meio de seu advogado, disse que as alegações do banco são falsas.
O processo do JPMorgan parece uma obra de não-ficção folhetinesca, com acusações de fazer cair o queixo. Entre elas: Charlie e Olivier Amar, diretor de crescimento e aquisição da Frank, falsificaram a lista de clientes da empresa e contrataram um professor de ciência de dados para ajudar a jogar poeira nos olhos da equipe de devida diligência do banco.
No entanto, o que o JP Morgan deixou em grande parte de fora, foi a história de como Charlie acabou envolvida em uma negociação de nove dígitos, para começo de história.
Quando a Frank surgiu, em 2016, Charlie tinha 24 anos, demonstrava bom conhecimento dos meios de comunicação e afirmava ter experiência no mundo real com ajuda financeira e as dificuldades para pagar a faculdade. “É extenuante, mexe com nosso emocional”, ela disse ao Daily Pennsylvanian, um jornal universitário da Universidade da Pensilvânia, acrescentando que a própria mãe chorava com frequência enquanto conversava com funcionários de escritórios de assistência financeira.
A história pessoal de Charlie – e sua promessa de cortar caminho nos penosos e confusos formulários do governo, jargões e regulamentos em torno do processo de ajuda – deve ter proporcionado uma impressão convincente para os investidores-anjo e capitalistas de risco. Principalmente aqueles com pouco conhecimento prévio de como funciona a assistência financeira.
Ao prometer ajudar os consumidores a preencher formulários para ajuda financeira de forma mais rápida e simples – e entregar bilhões em poupanças aos adolescentes que precisavam do auxílio –, o plano de negócios dela dava a sensação de ser um sucesso ao mesmo tempo em que faria algo bom. E seu site acabou ganhando um domínio “org” por reconhecimento à iniciativa positiva.
“Pensava que ia ser uma organização ativista”, disse Carly Gillis, que foi diretora de conteúdo e comunidade da Frank durante vários meses em 2018. “Uma verdadeira história de Davi contra Golias.”
A cem pessoas mais criativas
A carreira de Charlie ajudando os outros começou, segundo ela mesma, na fronteira entre a Tailândia e Mianmar. Ela passou um tempo lá como voluntária, entre os semestres de aulas na escola particular onde estudava no Condado de Westchester, no estado de Nova York.
O trabalho a inspirou a criar a PoverUp, uma organização que promovia o microcrédito e ajudava outros estudantes a aprender sobre a redução da pobreza por meio dos negócios. Cerca de 50 escolas estavam se associando à sua rede todos os meses ou a cada 45 dias, disse ela em um podcast em 2011.
Charlie dizia que ela mesma tinha precisado de ajuda financeira enquanto estudava na Wharton School, na Universidade da Pensilvânia, onde rapidamente chamou a atenção por aparecer na lista de 2011 da revista Fast Company com as cem pessoas mais criativas no mundo dos negócios.
Ela recebia ajuda financeira, mas achava os formulários confusos. O mesmo acontecia com os pais dela, de acordo com uma entrevista dada por Charlie à revista Diversity Woman – inclusive o pai, Didier, que trabalhou em Wall Street durante mais de 35 anos, tendo passado 11 anos no Goldman Sachs e três no Merrill Lynch, segundo o perfil dele no LinkedIn. Ela, o pai e a mãe, Natalie Rosin, não responderam às perguntas relacionadas a como Charlie tinha se qualificado para receber ajuda financeira e as dificuldades para consegui-la.
De acordo com documentos legais do estado, Charlie registrou sua primeira empresa, a TAPD, em 2013. Não há nenhuma menção disso na página dela do LinkedIn, mas ela chegou a falar dessa startup anterior a Frank no passado.
Em uma entrevista publicada – e agora excluída- no Medium em 2020, ela falou da tentativa da TAPD de criar uma maneira melhor de avaliar a capacidade creditícia das pessoas que estão apenas começando na vida.
A pontuação de crédito envolve regulamentações estaduais e federais complexas e, depois de um ano e meio, Charlie percebeu que desenvolver um novo sistema e obedecer às regras seria não sairia barato. “Demiti todos os meus funcionários”, disse ela na entrevista do Medium. “Foi a pior coisa que já precisei fazer. Muitos deles eram meus amigos e não voltaram a falar comigo até hoje.”
De toda essa adversidade, nasceu outra startup. Em 2016, uma mensagem no site frankfafsa.com prometia “ajuda financeira máxima garantida”, além de “se não fizermos você economizar no mínimo US$ 1000 com as mensalidades, vamos reembolsá-lo. Tenha acesso premium pagando US$10 por mês. Cancele a qualquer momento.” Na parte inferior da página havia um convite para participar de uma lista de espera.
Nos bastidores, o Departamento de Educação dos EUA rapidamente ficou de olho. E nada satisfeito. A Free Application for Federal Student Aid (FAFSA) é uma marca registrada e o departamento não viu com bons olhos o uso que a Frank fez da sigla no domínio de seu site.
Em um acordo realizado em 2018, o qual um especialista em ajuda financeira, Mark Kantrowitz, descobriu por meio de uma solicitação via Lei de Liberdade de Informação, a Frank concordou em dar seu endereço de domínio “frankfasa.com” para o departamento.
Desde o começo, Charlie estava aparecendo nos meios de comunicação com frequência. Em dezembro de 2017, ela escreveu um artigo de opinião para o New York Times com o título “As oito coisas mais confusas a respeito da FAFSA”. O texto tinha tantos erros que precisou de uma correção com oito frases.
No entanto, nos dois anos seguintes, as publicações continuaram a enaltecê-la. Um artigo do site Business Insider de outubro de 2018 que foi publicado pelo Yahoo Finance tinha uma manchete que anunciava: “Fundadora de 26 anos tem uma solução para o que Bill Gates chama de ‘obstáculo desnecessário’ para o acesso à faculdade – e sua startup está ajudando universitários a economizarem horrores com as mensalidades”.
‘30 Under 30’
Os elogios em listas surgiam aos montes. Charlie apareceu na lista da Forbes daqueles com até 30 anos que revolucionam o mundo dos negócios em 2019 . Depois, passou a integrar a lista daqueles com até 40 anos do site Crain’s New York Business. “Charlie fez sua lição de casa”, dizia o artigo do Crain’s.
Nem todos concordavam. No ano seguinte, Wesley Whistle, que trabalhava no think tank New America na época, escreveu um post de blog criticando a Frank e Charlie por prometerem ajuda com o auxílio financeiro oferecido por conta da pandemia para os alunos, apesar da empresa não estar trabalhando diretamente com as faculdades e sua ferramenta não ter sido talvez de grande utilidade para muitos universitários.
Pouco tempo depois, a Comissão Federal de Comércio (FTC, na sigla em inglês) enviou uma carta de advertência para a Frank dizendo que sua “suposta assistência aos estudantes resumia-se basicamente a dar uma carta modelo que talvez não tivesse as informações que um aluno precisaria para solicitar uma das bolsas de sua faculdade”.
A empresa se esforçou bastante para adicionar cursos on-line às suas ofertas. Esse foi um elemento-chave de uma apresentação para um investidor em novembro de 2019, sinalizada com um carimbo de “provisório e confidencial”, cuja cópia foi verificada pelo Times. “Os universitários gastam US$ 400 bilhões com mensalidades, e atender eticamente esse mercado nos dá acesso a oportunidades extraordinárias”, dizia a apresentação.
De acordo com o documento, o canal direto com as faculdades interessadas em fazer negócios com a Frank estava “bombando”. Não havia nomes de universidades no conjunto de slides; uma pequena nota de rodapé em uma cor difícil de se ler dizia que a empresa estava impedida de divulgar nomes de “parceiros”. As referências, no entanto, estavam disponíveis mediante solicitação.
Os concorrentes e os especialistas em ajuda financeira observavam tudo isso cada vez mais de orelha em pé. Mas eles ficaram chocados quando o JPMorgan anunciou em setembro de 2021 a aquisição da Frank.
“Hoje é meu primeiro dia como funcionária de outra pessoa”, disse Charlie à CNBC depois da notícia. “Quer dizer, ainda não tenho certeza, me belisque, isso é verdade mesmo?”
Os observadores não acreditavam que isso tivesse de fato acontecido. Mark Salisbury, cofundador do TuitionFit, serviço que ajuda as famílias a pesquisar o valor real das faculdades usando a concessão de auxílios financeiros de outros estudantes, fez algumas contas levando em consideração seu antigo concorrente.
Salisbury, ex-diretor de pesquisa e avaliação institucional do Augustana College, estima que dois milhões de estudantes entrem na faculdade a cada ano. Tendo recorrido à FAFSA no primeiro ano, ele pensou, a maioria das famílias não procuraria ajuda de uma empresa como a Frank nos anos seguintes. Então, se a Frank atendeu cinco milhões de pessoas em apenas cinco anos, ela teria conquistado uma parcela considerável dos novos universitários que precisavam de ajuda financeira
Ter alcance a todas essas pessoas durante um ano para que elas talvez procurem seus serviços, entretanto, não é uma tarefa simples. “Causar toda aquela repercussão na internet, isso é algo incrivelmente difícil de se fazer, e custa uma quantia insana de dinheiro para se conseguir”, disse Salisbury.
A promessa que não foi cumprida
Então, o que poderia ter chamado a atenção do JPMorgan na empresa?
Sem dúvidas, Charlie lhes caía bem. Na verdade, o banco planejava pagar um bônus de retenção de US$ 20 milhões caso ela permanecesse por um período após o fim da fusão.
Se o JPMorgan queria um canal direto com os jovens adultos prestes a iniciarem o ensino superior, estava pagando US$ 35 por nome – US$ 175 milhões divididos por aqueles cinco milhões de clientes. Para pagar tudo isso, o banco precisava estar muito seguro de que sua equipe de marketing conseguiria convencer os clientes da Frank a fazer negócio com a instituição e a continuar com ele durante décadas.
Pouco depois da fusão ser concluída, o banco fez sua primeira tentativa e entrou em contato com uma parte da lista de clientes da Frank. Dos 400 mil e-mails enviados, apenas 28% foram entregues com sucesso aos destinatários, em comparação com a taxa de entrega habitual de 99%. Além disso, apenas 103 deles clicaram no link que levava ao site da Frank. Foi, como o próprio banco expôs no documento da ação judicial, “um desastre”.
Em seguida veio uma investigação e o banco analisou minuciosamente a conta de e-mail da Frank de Charlie. Lá, encontrou uma fonte generosa de informações para uma ação judicial. As mensagens, de acordo com o banco, incluíam provas abundantes de que ela tinha contratado um professor de ciência de dados para criar informações falsas para comprovar ao banco que os milhões de clientes da Frank eram reais.
Nenhum dos investidores da Frank ou as pessoas que Charlie citou como mentores retornaram as mensagens ou fizeram comentários a respeito dela, e ela não mencionou outros nomes de pessoas para entrar em contato. Mas uma delas se posicionou por meio de um porta-voz.
Em uma entrevista de 2018 para o PopSugar, Charlie descreveu Bobby Turner, fundador de uma empresa de investimento, como “uma das pessoas com maior impacto na minha vida até agora”. Quando estava passando por maus bocados, ela disse à publicação que Turner, que era um investidor da Frank, a obrigava a prometer fazer três coisas todos os dias.
“E ele disse literalmente, ‘bem se precisar refletir, vá para academia ou faça sexo’”, afirmou na entrevista.
Randy James, porta-voz de Turner, disse que ele foi um grande benfeitor dos programas de impacto social da Wharton e trabalhou como mentor de muitos alunos e ex-alunos, entre eles Charlie. “Bobby compartilhou suas opiniões a respeito de uma série de temas relacionados com o mundo dos negócios e o equilíbrio entre vida profissional e pessoal, embora não tenha feito os comentários atribuídos por ela a ele em uma entrevista de 2018”, disse James.
“As alegações contra Charlie com relação a Frank são preocupantes”, acrescentou, “e, caso sejam verdadeiras, representariam uma quebra de confiança grave e violação da lei”.
(TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA)