“Colocar todo o crédito privado na mesma caixinha acaba sendo errado. Uma coisa é você operar Petrobras (PETR3; PETR4), que é um quase governo, cujo risco de crédito é muito semelhante ao de um título do Tesouro”, avalia Mario Markus, superintendente de renda fixa e crédito privado do banco Daycoval. “Outra coisa é operar uma linha de transmissão ou uma grande siderúrgica. Não são AAA igual a uma Petrobras, é outro nível de risco“, completa.
Mauro Orefice, gestor da B.Side, reforça essa distinção ao lembrar que nenhum emissor privado, por mais sólido que seja, pode ser considerado menos arriscado que o próprio Estado. “Em todos os países, o custo de emissão das empresas precisa ser maior do que o risco soberano. Aqui, porém, as isenções fiscais criaram uma distorção que faz alguns papéis corporativos captarem até mais barato que o governo”, afirma.
Para ele, nem mesmo companhias exportadoras e altamente capitalizadas, como a Vale (VALE3), escapam da exposição ao chamado “risco Brasil”, que permanece embutido em qualquer operação privada. “Tem umas teorias de que algumas empresas, como a Vale, teriam um risco melhor do que o Brasil porque são exportadoras e têm balanço forte lá fora. Mas, por mais que tenha receita dolarizada, ela está muito exposta ao País. Então, por mais sólida que seja, não vejo o risco corporativo como menor que o risco soberano.”
O que olhar antes de investir em crédito privado?
O investidor precisa ir além do rating (nota que representa o perigo de calote) para entender o risco real de um papel, afirma Fernando Siqueira, head de research da Eleven Financial. “O tamanho da empresa, o nível de endividamento e a consistência dos lucros são pontos fundamentais”, explica. Ele cita o exemplo de companhias como a Localiza (RENT3), que há anos mantém resultados positivos e baixo risco operacional, em contraste com empresas menores ou cíclicas, cujo desempenho oscila entre lucro e prejuízo.
Avaliar o histórico financeiro, a previsibilidade do setor e a capacidade de geração de caixa, segundo ele, é o caminho mais seguro para identificar quais emissores têm solidez suficiente para honrar suas dívidas, mesmo em períodos de estresse.
Na atual conjuntura de juros elevadíssimos, que deixa mais cara as operações das empresas, Siqueira diz que, ainda sim, o investidor pode tomar o risco de crédito com uma certa segurança. “O cenário é ruim, mas não é a questão principal”, diz. O especialista da Eleven diz que antes de se tornar credor é preciso saber o quanto a despesa de juros representa no resultado da empresa.
“Existem dois indicadores que a gente usa. Um vem do tamanho da dívida com relação ao lucro antes de juros, impostos, depreciação e amortização (Ebitda), que mostra o custo de caixa. E também tem a despesa de juros com relação ao seu Ebitda. Os dois são olhados”, diz referindo-se ao indicador que mostra o quanto uma empresa gera de dinheiro com a sua atividade principal, antes de descontar despesas financeiras, impostos e custos contábeis que não envolvem saída de caixa.
Siqueira reconhece que no cenário atual de juros há um risco maior, mas lembra que as empresas, os investidores e os profissionais que estruturam essas operações de crédito tentam sempre fazer cenários de estresse para que as contas caibam no orçamento da empresa.
Risco de crédito está sendo recompensado?
Apesar de toda essa engenharia de avaliação e controle de risco, Mauro Orefice, da B.Side, reforça que o mercado vive um momento de maior cuidado. O excesso de demanda por papéis isentos de Imposto de Renda (IR) fez o prêmio pago pelos emissores privados – o chamado spread de crédito – se estreitar a níveis historicamente baixos.
“O investidor pessoa física que compra um título isento hoje está correndo risco, mas recebendo um adicional de juros muito pequeno quando se olha historicamente”, afirma. Mesmo entre emissores de rating elevado, como os de categoria triple A, o ganho acima do Tesouro é reduzido, o que distorce a relação tradicional entre risco e retorno e exige atenção redobrada na escolha dos papéis.
Para Fernando Siqueira, o investidor hoje “aceita risco sem ser compensado o suficiente”, anestesiado por um longo período sem calotes relevantes, principalmente nas debêntures incentivadas. “O último caso conhecido de inadimplência é muito antigo, as pessoas vão aceitando e achando que nunca tem isso. A situação só vai mudar quando tiverem algumas perdas, ou pelo menos algum risco mais claro de que essas coisas podem dar errado.”
Os episódios de rebaixamento de rating de Ambipar (AMBP3) e Braskem (BRKM5) em outubro – veja a reportagem aqui – não têm potencial de contaminar o mercado, avalia o profissional. “São casos isolados”, diz, explicando que o colapso financeiro da primeira está concentrado em operações de Certificados de Operações Estruturadas (COEs) que expôs investidores a um risco sem proteção do Fundo Garantidor de Crédito (FGC).
Já a Braskem, que sinalizou dificuldades na renovação de dívidas, já era há muito tempo classificada como “high yield“, ou seja, investimento de alto risco.
Para investidor, ganho vem na isenção do Imposto de Renda
É válido lembrar que as debêntures incentivadas são títulos emitidos por empresas que financiam projetos de infraestrutura, como energia, saneamento e rodovias. Nestes casos, o investidor tem isenção de IR e a empresa capta recursos com custo menor. E como os juros Selic estão em 15% ao ano, produtos isentos se tornam muito mais atrativos porque potencializa o benefício fiscal.
Com uma alíquota de IR de 15% para investimentos de mais de dois anos, o investidor deixa 1,5% com o Leão sobre um papel que paga 10% de rentabilidade. Num ativo que paga 20%, a mordida é de 3%. “Só nessa conta de padeiro, o benefício da isenção é de 1,5% a 2% ao ano”, comenta Mario Markus do Daycoval.
Com o aumento da demanda pelos ativos isentos, o emissor consegue captar a taxas mais baixas, em alguns casos até menores do que o Tesouro Nacional, o que é uma anomalia na visão dos especialistas. “O emissor acaba se financiando mais barato que o governo, o que não é natural num mercado de crédito”, diz Siqueira.
Com isso, quem paga o ganho real do investidor é a isenção de imposto, já que o spread sobre o título é quase nulo. ” Se você olhar uma operação incentivada, ela te paga, por exemplo, um IPCA + 8%, enquanto um título do governo equivalente está pagando 8,1%. Aparentemente está negativo, mas um paga imposto e o outro não. Então, se você considerar a diferença de imposto, o spread é positivo.”
Fenômeno vem se espalhando para outros produtos
Esse fenômeno já se espalha para outros instrumentos, como os Certificados de Recebíveis Imobiliários e do Agronegócio (CRIs e CRAs) e as Letras de Crédito Imobiliário e do Agronegócio (LCIs e LCAs), que são igualmente beneficiados pela isenção de Imposto de Renda.
“O investidor olha só o ganho líquido e esquece que está assumindo risco de crédito privado sem que o spread compense adequadamente. Isso vale não só para as debêntures incentivadas, mas também para outros papéis com isenção fiscal”, comenta Orefice, da B. Side. “O spread é baixo e a percepção de risco também. Isso mostra como o benefício fiscal ainda guia o apetite por esses ativos, mais do que a análise de crédito em si”, comenta Siqueira.
CRI e CRA são títulos de renda fixa emitidos por companhias securitizadoras. Elas compram carteiras de crédito (imobiliário ou do agronegócio) de empresas ou bancos e as “transformam” em títulos vendidos a investidores. Pagam juros com base nos recebimentos, mas têm risco de crédito do devedor e baixa liquidez.
Já as LCIs e LCAs são títulos de renda fixa emitidos por bancos e têm a vantagem de serem garantidas pelo FGC até R$ 250 mil por CPF e instituição. Têm risco do emissor (o banco). Todos esses instrumentos têm baixa liquidez, o que significa que o investidor terá de levar o papel até o vencimento.