Donald Trump ergue a placa no “Liberation Day”. Marco simbólico do tarifaço. Foto: The White House
No dia 2 de abril de 2025, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, ergueu uma placa confusa num dos jardins da Casa Branca. Nela, o mandatário demonstrava o que seria o seu tarifaço, um pacote de tarifas “recíprocas” sobre dezenas de países, inclusive a China, nação que ele já vinha impondo taxas desde fevereiro. Foi o marco da escalada de sua guerra comercial.
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A fúria tarifária incluiu também parceiros próximos, como Canadá e México, desde os primeiros dias de seu segundo mandato. A imagem de Trump e sua placa marcou o dia batizado por ele de Liberation Day (dia da libertação), uma data que não só redefiniu o comércio internacional, como passou a reposicionar as forças do tabuleiro geopolítico.
A reação dos mercados foi imediata. As Bolsas globais despencaram com a crise de confiança. Nos EUA, o índice S&P 500 caiu cerca de 4,8 % e o Dow Jones Industrial Average registrou uma queda de cerca de 1.679 pontos no dia 3 de abril de 2025. Foram perdidos mais de US$ 3 trilhões em valor de mercado global naquelas 24 horas. Tudo sob o argumento de “reindustrializar os EUA” e “corrigir décadas de exploração comercial”.
O movimento também enfraqueceu o dólar no mundo e desvalorizou os títulos do tesouro americano (Treasuries). O capital passou a procurar outros “portos seguros”, os EUA não pareciam mais ser o que sempre foram.
O cenário de perda de confiança se agravou ao longo dos meses, com as críticas de Trump ao Federal Reserve e a sua independência. O banco central dos EUA mantém os juros elevados para cumprir seu mandato de controle inflacionário, mas deu início ao ciclo de corte em setembro. As pressões de Trump trouxeram prejuízo à credibilidade daquele país, visto desde sempre como o berço institucional no mundo.
Em resposta à instabilidade causada pelo Liberation Day, em 9 de abril foi anunciado que as tarifas acima da alíquota base seriam suspensas por 90 dias, mantendo-se apenas a taxa mínima de 10% para a maioria dos países, incluindo o Brasil.
Política tarifária errática
Esse foi apenas mais um dos “recuos” de Trump na sua errática política tarifária, mas o suficiente para fazer o mercado entender a estratégia, reverter as perdas e voltar a renovar as máximas ao longo do ano, puxado pelos setores de tecnologia e o boom da inteligência artificial (IA).
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Japão, Coreia do Sul, países do Sudeste Asiático, União Europeia, iniciaram conversas com Donald Trump. “A possibilidade de novos acordos trouxe um alívio para os mercados”, comenta o economista-chefe da Suno Research, Gustavo Sung.
Para os analistas, a reação estridente do mercado foi natural. “Os Estados Unidos estão se baseando numa visão um pouco ultrapassada, mercantilista da economia. Não é mais uma visão moderna. Foram eles próprios que construíram essa dinâmica, na qual eles acabaram tendo déficits comerciais, mas, em contrapartida, os recursos voltavam para os Estados Unidos na conta financeira”, explica Matheus Spiess, da Empiricus Research.
A avaliação de Spiess reflete o sentimento de que a guinada protecionista foi a primeira ruptura no modelo de hiperglobalização do comércio internacional dos últimos 30 anos, que teve origem há 80 anos no cenário de pós-Segunda Guerra.
Tarifaço de Trump chega à Suprema Corte
Nos EUA, o protecionismo de Trump terminou nos tribunais. Invocando leis como a Seção 232 (segurança nacional) e a Lei de Poderes Econômicos de Emergência Internacional (IEEPA), suas interpretações podem ser revistas, num processo que chegou à Suprema Corte dos EUA no dia 5 de novembro. O mundo está à espera dessa decisão, que deverá ser proferida em janeiro de 2026 e poderá redefinir os caminhos da política tarifária do Executivo.
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Enquanto o presidente americano busca novos caminhos jurídicos para impor suas taxas, o mundo entrou em uma fase de reorganização multipolar, marcada pela fragmentação das cadeias produtivas e pelo avanço do que Spiess chama de “nova Guerra Fria”. “Não é a mesma lógica bipolar do século XX, mas um ambiente em que os blocos americano, europeu e chinês passam a operar com dinâmicas próprias”, observa.
Mudança no comércio e na geopolítica
Essa mudança de paradigma tem consequências diretas para a economia real. A substituição do princípio da eficiência pelo da segurança nas cadeias de suprimentos — o chamado reshoring, também conhecido como nearshoring ou friendshoring — tende a elevar custos, pressionar a inflação e consolidar um novo patamar estrutural de juros.
“O mundo está trocando o ‘produzir onde é mais barato’ pelo ‘produzir onde é mais seguro’. Isso é inflacionário por natureza”, afirma Spiess.
Apesar da pressão inflacionária, Tiago Feitosa, CEO e fundador da T2 Educação, observa que o Fed iniciou a redução da taxa de juros americana, trazendo-a para o menor nível desde novembro de 2022, no intervalo entre 3,75% e 4% ao ano.
A decisão ocorre em meio ao enfraquecimento do mercado de trabalho e ao desgaste provocado pelo recente shutdown parcial do governo, que paralisou agências federais, atrasou dados econômicos e aumentou a incerteza fiscal. O banco central dos EUA, que tem mandato duplo, de estímulo ao emprego e controle da inflação, buscou calibrar a política monetária para evitar uma desaceleração mais acentuada.
Gustavo Sung, economista-chefe da Suno Research, lembra que a guerra comercial contra a China não é de agora. Vem desde a primeira passagem de Trump pela Casa Branca e não foi abandonada pela administração Joe Biden. Por essa razão, a China já estava preparada. “Hoje ela está conseguindo exportar bem mais de tecnologia, ela tem mais influência em outros mercados.”
Esse rearranjo também serviu para acordar a Europa. “Os europeus começaram a entender e começam a investir mais para, de fato, depender menos dos americanos. E aí estamos falando de infraestrutura, questões militares, busca por outros mercados”, enumera Sung.
Brasil chamou atenção e entrou no foco
O Brasil, que havia passado despercebido pelas sobretaxas, terminou entrando no radar de Trump. Em julho, durante a Cúpula dos Brics 2025 no Rio de Janeiro, o presidente Lula afirmou que o mundo precisaria encontrar novas formas de relações comerciais que não passassem pelo pelo dólar. Não era a primeira vez que o presidente brasileiro fazia essa crítica, mas era o único mandatário dos Brics a fazê-la.
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Naquele mesmo dia, Trump acusou o grupo de países, do qual o Brasil faz parte, de jogar contra a moeda americana. “Tudo bem se eles quiserem jogar esse jogo, eu também sei jogar”, disse. No final de julho, Trump anunciou a sobretaxa de 40% aos produtos brasileiros que foram somadas à tarifa básica de 10% anunciada desde abril para todos os países.
A sobretaxa brasileira — um país que tem déficit comercial, ou seja, importa mais do que exporta aos EUA — veio justificada por um contexto político, envolvendo decisões polêmicas do ministro Alexandre de Moraes, imposição da Lei Magnitsky e alegações de perseguição contra o ex-presidente Jair Bolsonaro.
O distanciamento de Lula do governo Trump foi interpretado por vários analistas como um erro. Até outubro, o presidente brasileiro não havia falado com Trump desde a posse em janeiro. Apesar de Lula colher frutos internos ao adotar o discurso da soberania nacional ao criticar o tarifaço, sua postura agressiva gerou críticas. “A gente não pode brigar com uma potência como os Estados Unidos”, resume Spiess.
O fato é que o quadro se inverteu após um breve encontro durante a Assembleia Geral das Organizações das Nações Unidas (ONU) em setembro, em Nova York, seguido de um telefonema do início de outubro e do encontro entre Lula e Trump em Kuala Lumpur no final daquele mês. A avaliação é que o Brasil, agora, se beneficia de uma reaproximação diplomática.
Negociações estão em andamento
A leitura é a de que o País pode sair fortalecido se mantiver o diálogo e explorar seu papel como fornecedor estratégico de energia, alimentos e minerais à maior potência mundial. “O Brasil tem uma posição importante por causa das reservas de terras-raras, que são críticas para a indústria tecnológica e bélica americana. Depois das restrições com a China, Washington precisa de novos fornecedores, e o Brasil volta a ser um parceiro prioritário”, explica Sung, da Suno.
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Para ele, o cenário atual representa um ponto de inflexão mais favorável ao Brasil do que nos primeiros meses do tarifaço. “Trump percebeu que os americanos estão pagando mais caro por carne e café brasileiros, e isso o forçou a reabrir o diálogo. O Brasil entra agora num jogo de interesses mútuos, mais pragmático do que ideológico”, diz.
Em novembro as negociações com o Brasil evoluíram. No dia 14, os americanos anunciaram a redução da tarifa geral de 10% para aproximadamente 200 itens, mas decidiram preservar a alíquota extra de 40% aplicada ao Brasil, inclusive para o café. Na visão dos cafeicultores, a decisão melhorou para os concorrentes e piorou para o Brasil, já que produtores de concorrentes como Colômbia e Vietnã, tiveram suas tarifas zeradas.
Quase uma semana depois, no dia 20, uma nova ordem executiva retirou a tarifa de 40% sobre mais de 200 itens brasileiros, incluindo café, carne, frutas, cacau e sucos. A pressão inflacionária nos EUA foi o principal motor para o alívio nas taxas de importação, mas a ordem cita o “progresso inicial nas negociações” com o Brasil. O governo brasileiro comemorou o avanço como “vitória da diplomacia”, mas as tarifas continuam sobre 74% das exportações para os EUA.
O que esperar para 2026
Ao fim de 2025, os efeitos do tarifaço são visíveis na economia global. O aumento nos custos de insumos — especialmente aço e alumínio — e de equipamentos importados elevou as despesas de produção e pressionou as margens de setores dependentes do comércio exterior. Parte desse encarecimento foi repassada ao consumidor, ampliando o desconforto inflacionário nas principais economias.
Para 2026, os especialistas ainda mantêm a previsão, mesmo que parcial, das tarifas impostas por Trump. Isso manterá a pressão de preços e a incerteza sobre o comércio global. Um respiro pode surgir à medida que decisões judiciais desfavoráveis à Casa Branca forcem recuos. “Caso isso ocorra, haverá alívio de preços e melhora do PIB global de curto prazo”, avalia Feitosa, da T2.