- A disputa entre um colecionador de tigres e o responsável pela proteção de animais mostra que se preocupar com a concorrência é importante, mas não é tudo em um negócio
- Tiger King também indica como é importante combinar uma necessidade de mercado com uma atividade com a qual o empreendedor se identifique
- Por fim, A Máfia dos Tigres deixa claro que é preciso se planejar para não cair numa cilada e tomar decisões afobadas a fim de salvar o negócio
(Murilo Basso, especial para o E-Investidor) – A série “A Máfia dos Tigres”, ou simplesmente “Tiger King” da Netflix alcançou um número invejável. Entre 20 de março até o fim de abril, 64 milhões de assinantes do serviço de streaming assistiram à série documental. Mais do que algumas horas de entretenimento ao lado de Joe Exotic, Carole Baskin e uma série de outras figuras excêntricas, para dizer o mínimo, um olhar mais atento percebe que a produção é capaz de transmitir lições valiosas sobre negócios.
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Porém, o zoológico que ficou tão famoso fechou as portas recentemente e o principal motivo para isso foi justamente a grande exposição que a atração teve. “Participar da série nos tornou um alvo dos malucos dos direitos dos animais do mundo, mas estamos preparados. A partir de hoje, 19 de agosto, decidimos fechar o antigo zoológico com efeito imediato”, disse Exotic, em postagem no Facebook.
Localizado em Oklahoma, no centro-sul dos estados Unidos, o Greater Wynnewood Exotic Animal Park, encerrou suas atividades por pressão de organizações em prol dos direitos dos animais.
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Atenção: contém spoilers
Lançada em março de 2020, a série trata da intrincada rede formada por colecionadores de grandes felinos e ativistas que lutam em prol desses animais nos Estados Unidos. A trama principal de “Tiger King” consiste na rivalidade entre Exotic, colecionador e então responsável pelo Greater Wynnewood Exotic Animal Park (chamado também de G. W. Zoo), e Baskin, conservacionista à frente do santuário Big Cat Rescue, na Flórida, que acusa Joe Exotic de maus tratos contra animais. Daqui, inclusive, já é possível extrair a primeira lição trazida pela série: preocupar-se com a concorrência é importante, mas não é tudo em um negócio.
Na série, Exotic fica obcecado em destruir Baskin. Ele a enxerga como concorrente e como uma “pedra no sapato” para a continuidade do G. W. Zoo, e chega a encomendar o assassinato da rival. O crime acabou frustrado, mas a atitude fez com que Joe Exotic fosse parar atrás das grades, após ser condenado a 22 anos de reclusão. A série mostra, obviamente, uma medida extrema e desesperada, mas a lição de que focar demais na concorrência pode trazer efeitos adversos é válida.
Ficar obcecado com a concorrência pode deixar o empresário “bitolado” e impedir que ele cresça e inove, além de transformar todos os seus negócios em cópias, sem diferenciais para os clientes. Professor em cursos de pós-graduação na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), Alexandre Marquesi explica que, ao contrário do que ocorria no passado, a concorrência não deve mais ser encarada como inimiga, mas deve ser vista como uma referência para que o empreendedor compreenda onde pode e precisa melhorar.
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“A concorrência hoje é vista como algo saudável, que faz o negócio crescer. A Coca-Cola não quer destruir a Pepsi, a Fiat não quer destruir a General Motors. Pensar de forma oposta a isso é um raciocínio errado: não existe ‘matar, aniquilar a concorrência’, mas sim aprender com ela, sem cair na ingenuidade. Na verdade, você quer crescer a ponto de conseguir absorvê-la, comprá-la. Além do mais, atualmente há oportunidade para todos os negócios, em diversos segmentos”, afirma.
Fazer o que se ama é importante, mas não é tudo
Costuma-se falar que se você escolhe um trabalho que ama não terá de trabalhar um dia sequer na vida. E se tem uma coisa que fica clara em “Tiger King” é que Joe Exotic é apaixonado pelo que faz. Mas será que seguir essa lógica é garantia de um negócio bem-sucedido?
Obviamente, o sucesso de um empreendimento não depende de um único fator. Diretor de desenvolvimento da central Sicredi PR/SP/RJ, Adilson Felix de Sá diz que a paixão pelo trabalho, por si só, não basta. O ideal, segundo ele, é combinar um desejo, uma necessidade de mercado com uma atividade com a qual o empreendedor se identifique.
“Se você conseguir conciliar um trabalho ou projeto com aquilo que você ama, gosta e tem aptidão, é um bom começo. Não é uma garantia, contudo, de que esse negócio vá ser um sucesso. Às vezes, as pessoas pensam em abrir uma empresa relacionada a algo que elas gostam muito, são apaixonadas, mas o mercado não tem tamanho suficiente para suportar o crescimento dessa empresa. Se eu tenho hoje aptidão para determinada área, não quer dizer, necessariamente, que o mercado lá fora vá consumir meu serviço ou produto. E aí vem a frustração. Ter afinidade com o negócio é importante, mas também é preciso saber identificar problemas”, orienta.
Negócio de família
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) indicam que cerca de 90% das empresas brasileiras ainda são familiares. Isso mostra a predileção dos empreendedores por trabalhar com quem já se conhece e sabe que possui os mesmos princípios e valores. Mais uma vez, entretanto, o sucesso do negócio não é certo se for considerado esse único fator.
Ao acompanhar as peripécias de Joe Exotic, o telespectador fica sabendo que, durante um tempo, seus dois maridos (isso mesmo, dois) trabalhavam com ele no G. W. Zoo, levando muitas vezes Joe a deixar o negócio de lado para lidar com crises pessoais no próprio ambiente de trabalho. Nesses casos, deve-se estabelecer limites bem claros entre “casa” e “trabalho”, para que cada envolvido consiga manter sua identidade e, principalmente, sua individualidade.
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Mas a mistura de vida pessoal com negócios de Joe Exotic não se resume a trabalhar com seus companheiros amorosos. A certa altura do programa, fica-se sabendo que a mãe de Joe, Shirley Schreibvogel, usa a economia de uma vida inteira para tentar salvar o negócio do filho, que ia mal das pernas. Adilson Felix de Sá afirma que misturar finanças pessoais com negócios é mais comum do que se imagina, sendo a falta de planejamento a principal culpada por tal situação.
“É preciso fazer um planejamento de forma bastante consciente e evitar que a paixão pelo negócio lhe deixe cego em relação ao futuro. Deve-se fazer projeções, verificar o que é necessário em termos de capital de giro, de valor inicial. O empresário também precisa ter em mente que nos primeiros anos de negócio, talvez não sejam alcançados grandes níveis de venda por exemplo. Quando o empreendedor não tem um bom planejamento, começa a misturar as contas da empresa com as finanças pessoais, compromete reservas financeiras que às vezes levou anos para formar e coloca dinheiro num negócio que, muitas vezes, não tem futuro”, alerta Felix da Sá.
O especialista diz que, no Brasil, outra prática comum dos empresários que não fazem – e seguem – um planejamento financeiro consistente é buscar créditos rápidos e “fáceis”, que costumam ser os mais caros disponíveis ao empreendedor. É preciso se planejar, portanto, para não cair numa cilada e tomar decisões afobadas a fim de salvar o negócio.
Estrela do marketing
Um bom marketing é essencial para um negócio de sucesso. O professor Alexandre Marquesi, da ESPM, explica que o primeiro passo é definir qual é o posicionamento de mercado da marca. “Sem isso, você não consegue fazer nada. E quando você tem seu posicionamento definido, colocar o planejamento de marketing para andar não é um problema. Lógico, ele vai depender do serviço ou produto que é oferecido. Por fim, é preciso comunicar quem você é, encontrar formas de passar essa mensagem”, afirma.
Por mais erros que Joe Exotic tenha cometido à frente do G. W. Zoo, não se pode negar que ele sabia usar o marketing a seu favor e de forma consistente. Exotic criou uma verdadeira persona. Ele desenvolveu um estilo bastante peculiar para si próprio, com corte de cabelo com “mullets” e roupas extravagantes, que se tornou uma espécie de marca registrada do colecionador de grandes felinos. Ele ainda fazia questão de marcar presença na mídia, participando de maior número de entrevistas que conseguisse. Por fim, mantinha um show online sempre às 18h, a fim de estreitar os laços com seus fãs.
Um sócio nem sempre é a saída
Em 2015, Joe Exotic conheceu Jeff Lowe, que se apresentou como um investidor de Las Vegas ao visitar o G. W. Zoo com o objetivo de adquirir um filhote de tigre. Desesperado por auxílio financeiro e obcecado em salvar seu negócio, Joe aceitou firmar uma parceria com o forasteiro, uma pessoa que ele mal conhecia. Foi o início de sua derrocada.
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Como “estratégia legal” para proteger o G. W. Zoo de um processo judicial travado na esfera cível entre Joe Exotic e Carole Baskins, antes da tentativa de assassinato, Lowe convence Exotic a passar o zoológico para seu nome. Não precisa ser muito esperto para concluir que o “investidor” acabou ficando com o parque só para ele. A busca por sócios ou investidores, alerta Adilson Felix de Sá, deve ocorrer num momento onde não há crise, no qual o empreendedor não esteja “desesperado” por uma salvação.
“Eu digo isso porque geralmente as pessoas aceitam ou buscam um sócio ou investidor quando há problemas dentro da empresa. Muitas vezes, você acaba atraindo para o empreendimento pessoas que também não têm aptidão para o negócio. Além disso, será que só a injeção de dinheiro é suficiente para salvar uma empresa?”, questiona Felix de Sá.
O executivo complementa que uma característica bastante significativa do empreendedor brasileiro é a dificuldade em admitir que, muitas vezes, a única opção viável é o encerramento do negócio. Não é incomum que a pessoa se apaixone tanto pelo trabalho que vá até às últimas consequências para mantê-lo de pé. No fim, acaba se endividando ou negociando com sócios ou investidores que acabam gerando mais problemas.
O que nos atrai em “Tiger King”?
Personagens excêntricos, animais perigosos, uma rivalidade que culmina em encomenda de assassinato. Esses são alguns dos ingredientes que compõem “Tiger King”, cuja popularidade, em termos de audiência na Netflix, é comparável à do seriado “Stranger Things”, um dos principais títulos do serviço de streaming.
Docente no curso de Publicidade e Propaganda da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), Andrea Mello explica que, por se tratar de uma história real, o documentário já suscita uma curiosidade natural. Segundo ela, o telespectador se projeta tanto para o bem quanto para o mal em um personagem, e assistir a um documentário o leva a refletir sobre como agiria naquela situação.
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“A gente se projeta em algo que sabemos estar fora do universo imaginário. Não é uma ficção. O documentário também lança luz a muitos questionamentos e debates, nos faz refletir enquanto pessoa e enquanto integrante da sociedade. A arte como um todo faz esse movimento, mas o documentário, por estar alicerçado em algo que realmente ocorreu, provoca ainda mais essa reflexão”, diz.
Andrea também lembra que “Tiger King” foi lançado num momento em que as pessoas estão consumindo mais os serviços de streaming, por conta do isolamento social provocado pela crise do coronavírus.
“Ao mesmo tempo, vivemos um momento na sociedade, antes mesmo do Covid-19, em que as discussões estão muito polarizadas em relação a vários assuntos, e a narrativa em ‘Tiger King’ está muito alicerçada em cima de uma polarização [no caso, os conservacionistas versus colecionadores de grandes felinos]. Acho que essa questão também favoreceu o sucesso da série”, conclui.