- Preston Johnson, um milionário das criptomoedas, convenceu seus parceiros a comprar o time de futebol Crawley, comparando a aquisição à comédia Ted Lasso
- Para os críticos, a invasão cripto nos esportes parece estratégia oportunista de atrair jovens para o ramo dos investimentos especulativos
- Johnson insiste que seu projeto de futebol é diferente: em vez de vender criptoativos para os fãs do Crawley, vende o Crawley para os fãs de criptos
Preston Johnson, um milionário do universo das criptomoedas, de fala mansa e com uma longa e emaranhada barba castanha, inclinou-se para frente em seu assento, com os punhos cerrados, inspecionando seu império. Ele não estava confortável em seu megaiate, nem desfrutando de nenhum outro privilégio ostentoso da riqueza cripto. As instalações eram mais humildes: um pequeno estádio de futebol em uma cidade cerca de 50 quilômetros ao sul de Londres, onde o time pior colocado nas ligas profissionais da Inglaterra lutava por sua sobrevivência.
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Em um sábado ensolarado de meados de outubro, Johnson, de 35 anos, sentou-se em um camarote alinhado ao centro do campo, assistindo o Crawley Town enfrentar o visitante Newport County, um clube do sul do País de Gales. Esforçando-se para ser ouvido sobre os gritos de “Chuta essa bola”, Johnson explicou que o rabisco em arco-íris gravado nas novas camisas Adidas do Crawley foi retirado de um “NFT historicamente importante”. Algum dia, afirmou ele, um registro imersivo desse tipo de partida desimportante de futebol poderá atrair espectadores no metaverso.
No mundo físico, o Crawley tinha problemas mais imediatos: o placar eletrônico do estádio estava quebrado. E, com uma vitória em suas primeiras 12 partidas, o time estava em último lugar na Liga 2, a mais inferior das divisões totalmente profissionais do futebol inglês, encarando um possível rebaixamento.
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Não era essa a visão de êxtase esportivo inspirado na blockchain que Johnson tinha vislumbrado seis meses antes, quando ele e um grupo de outros empreendedores americanos do ramo das criptomoedas captaram US$ 18 milhões para comprar o Crawley, um time de futebol que compete três divisões abaixo da estrelada Premier League.
Com floreios e bravatas peculiares à indústria da tecnologia, os donos do clube prometeram transformar o modesto Crawley no “time da internet”. Eles tinham o objetivo de construir uma torcida global, formada por entusiastas dos criptoativos, e propelir o clube à grandeza — ou pelo menos fazê-lo subir da quarta para a terceira divisão. Johnson convenceu seus parceiros de negócio a comprar o time de futebol comparando a aquisição à comédia relaxante de TV “Ted Lasso” — mas injetada com “criptococaína”.
Os torcedores do Crawley ficaram instintivamente desconfiados em relação aos americanos. Mas Johnson e seus coinvestidores logo conquistaram alguma boa vontade: ao longo do verão, eles levantaram US$ 4,8 milhões com a venda de uma linha de NFTs — os singulares colecionáveis digitais, cuja popularidade explodiu no ano passado — com temática futebolística.
Os proprietários do clube usaram os lucros — que corresponderam a cerca de sete vezes os ganhos do time na temporada anterior — para investir agressivamente na equipe, contratando analistas de vídeo e recrutando um atacante famoso. Eles também reduziram os preços dos ingressos dos jogos da temporada e prometeram envolver os torcedores nas tomadas de decisão do clube, com um estilo de administração transparente e horizontal, que eles definiram como um reflexo dos princípios utópicos do universo cripto.
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Mas os resultados em campo foram desastrosos: na semana anterior à partida contra o Newport, o Crawley perdeu de 3 a 0 para o Grimsby Town, o que levou Johnson a demitir o treinador que havia contratado no verão. “Profissionalizamos o clube enormemente”, explicou Johnson a um conhecido que se juntou a ele na arquibancada para assistir à partida contra o Newport. “Só que não conseguimos vencer.”
Conforme as moedas digitais ganharam ampla popularidade no ano passado, anúncios de plataformas de corretagem de criptoativos tornaram-se onipresentes no mundo dos esportes. Um comercial da Coinbase foi exibido durante o Super Bowl. A casa de câmbio de criptomoedas FTX, do bilionário Sam Bankman-Fried, comprou o direito ao nome da arena do Miami Heat.
Na Europa, uma empresa chamada Socios negocia “fan tokens” futebolísticos, moedas digitais especiais associadas a times como Barcelona e Manchester City. Para os críticos, a invasão da indústria cripto no marketing dos esportes pareceu uma estratégia oportunista de atrair homens jovens para o ramo dos investimentos especulativos; quando o mercado cripto ruiu, no primeiro semestre, perdendo US$ 2 trilhões em valor, muitos desses negociantes amadores perderam tudo.
Johnson insiste que esse projeto de futebol é diferente. Em vez de vender criptoativos para os fãs do Crawley, afirmou ele, o grupo proprietário está tentando vender o Crawley para os fãs do cripto — e desta maneira criar novas fontes de renda para o clube. Com o ceticismo em relação ao setor crescendo após o mercado cripto despencar, o projeto é um esforço quixotesco para provar que a tecnologia cripto tem alguma utilidade no mundo real, enquanto veículo para captar dinheiro e engajar os fãs em um projeto comum.
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O investimento no Crawley é também uma jogada de limpeza da reputação. A grande crise do cripto de 2022 foi em parte o fracasso da ambição, conforme empresas que haviam crescido além da conta, convencidas de que a maré boa continuaria, subitamente perderam tudo. Os novos donos do Crawley almejam respeitabilidade. Eles querem mostrar que a elite nova rica da blockchain é capaz de zelar por uma instituição comunitária. Mas assim como o restante da indústria, eles viram suas ambições extravagantes colidir contra a realidade.
No início da temporada do Crawley, entusiastas dos criptoativos americanos reuniram-se de manhã cedo, em Nova York e na Califórnia, para assistir as partidas do time. Os eventos se tornaram oportunidades singulares de networking para pessoas trabalhando na Web3 — termo genérico que define a nova internet construída sobe a tecnologia cripto.
Mas a trajetória de derrotas do Crawley arrefeceu parte do entusiasmo. Torcedores locais começaram a reclamar, e tuítes sinceros de criptoinvestidores (“Seja gentil de verdade com alguém hoje”, pedia um deles) foram respondidos com raiva e pedidos de demissão do treinador.
Uma aquisição improvável
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O grande plano de transformar um pequeno time inglês de futebol em símbolo da influência global dos criptoativos começou a milhares de quilômetros do Crawley, no Nobu de Malibu, na Califórnia. No outono do ano passado, Johnson compareceu a um jantar no restaurante à beira-mar, onde um grupo de entusiastas de NFTs havia se reunido para desfrutar de sua fortuna recém-adquirida. Ele estava muito à vontade: ex-analistas de apostas da ESPN, Johnson havia enriquecido com criptoativos e possuía NFTs avaliados em até US$ 18 milhões quando o mercado alcançou o pico no ano passado.
No jantar, ele foi abordado por Eben Smith, outro criptoempreendedor, que logo quis convencê-lo a respeito de uma colaboração: um time esportivo para a comunidade cripto.
Ao longo dos meses seguintes, Johnson e Smith cimentaram um grupo de cerca de 35 criptoempreendedores, incluindo Gary Vaynerchuk, um investidor em NFTs, e Daryl Morey, um entusiasta da blockchain que é também presidente de operações esportivas do time de basquete Philadelphia 76ers. Eles estabeleceram uma empresa, WAGMI United. Pronunciada “wag me” em língua inglesa, a expressão é um acrônimo da frase “We’re all gonna make it” (Vamos todos sobreviver), um lema popular nos círculos cripto.
Crawley, uma grande cidade industrial nas proximidades do Aeroporto de Gatwick, não é uma usina esportiva; em entrevista, um membro do projeto WAGMI descreveu a área como “tipo uma Newark da Inglaterra”. Mas o time local estava à venda por um preço relativamente acessível, de 4 a 5 milhões de libras — cerca de um terço do que o grupo WAGMI havia levantado.
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A aquisição pelos criptoempreendedores trouxe um nível incomum de atenção ao Crawley, o que deixou jogadores e funcionários meio desconcertados. No início da temporada, uma equipe de documentaristas mesclou-se ao time para filmar sequências de bastidores. Mas as câmeras desapareceram depois de poucos dias, e a equipe não voltou mais. “Não sabemos se eles revisaram as filmagens e pensaram: ‘Que lixo’”, afirmou Tom Nichols, um dos atacantes do Crawley.
O Estádio Broadfield, que pertence ao time, não é nada parecido com as grandes arenas da Premier League: é possível ver árvores atrás das arquibancadas, que raramente enchem, e muitos dos patrocinadores do clube são negócios locais, incluindo uma empresa de processamento de lixo cujo logo fica estampado abaixo do camarote reservado para os proprietários.
Antes das partidas, os torcedores se reúnem em um bar de temática esportiva próximo ao estádio para beber cerveja e recordar dos fugidios momentos de glória do clube, como sua valorosa derrota por 1 a 0 contra o Manchester United, em 2011. “É disso que a gente gosta”, afirmou diante do bar, em um fim de semana recente, Scott Anscomb, torcedor do Crawley, de 49 anos. “Sonhos e memórias.”
Torcedores antigos afirmam ter se impressionado com a transparência e a proximidade dos proprietários cripto. Johnson vive no sul da Califórnia, mas viajou seis vezes a Crawley em 2022; em agosto, dias depois do nascimento de sua filha, ele apareceu para ajudar o clube a contratar novos jogadores. “É muito legal — a gente vai aos jogos, cumprimenta as pessoas, conversa”, afirmou a torcedora Carol Bates, que acompanha as partidas do time jogando em casa e em estádios de adversários.
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O precedente anterior era fácil de superar. O grupo WAGMI comprou o clube de um magnata turco da siderurgia que raramente interagia com os torcedores. Um proprietário anterior, Mohammed Azwar Majeed, foi preso por fraude fiscal. Talvez com esse histórico em mente alguns torcedores estejam preocupados com a possibilidade dos criptoinvestidores forasteiros desaparecerem tão subitamente quanto apareceram. “Meu medo é os caras se entediarem com o clube”, afirmou Peter Frake, dono de uma empresa de segurança local que patrocinava os abrigos do time.
Mas, acima de tudo, os torcedores começaram a duvidar que Johnson, Smith e seus colaboradores tenham expertise futebolístico suficiente para construir um time bem-sucedido. A decisão mais importante que qualquer proprietário de clube de futebol faz é contratar um treinador. Quando os criptoempreendedores compraram o Crawley, o time era comandado por John Yems, um veterano de ligas menores que logo foi demitido, após os jogadores o acusarem de racismo. Para substituir Yems, o grupo WAGMI contratou Kevin Betsy, um jovem treinador que trabalhava no Arsenal e nunca havia liderado um time de ligas menores.
A contratação foi uma catástrofe. Betsy tentou aplicar uma tática de futebol que investia em habilidade e precisão, o que se revelou incompatível com as ligas menores. Ele foi demitido no início de outubro, depois de uma série de cinco derrotas consecutivas.
Blockchain Jorge
Em uma noite recente, em Broadfield, o capitão do Crawley, George Francomb, sentou-se nas arquibancadas com Hunter Orrell, um dos novos proprietários do clube. Corretor de criptomoedas americano, Orrell, de 28 anos, tem uma página no TikTok dedicada ao Crawley, o que fez dele uma semicelebridade entre os torcedores adolescentes, que fazem fila para tirar selfies com ele. Mas Francomb não estava interessado em saber do TikTok, nem em conversar a respeito do perfume favorito de Orrell, que é objeto de fascinação entre um segmento de jovens da região. Ele queria falar de NFTs.
Na insular comunidade das ligas menores de futebol, Francomb é conhecido como um profissional experiente e versátil, com habilidade para jogar em várias posições. No Twitter, contudo, ele interage sob o pseudônimo “Blockchain Jorge”, postando memes cripto e intercambiando dicas com seus 143 seguidores. Ele é provavelmente um dos poucos jogadores na divisão com uma opinião informada a respeito da complexa atualização de software cripto conhecida como Merge. Às vezes, explicou Francomb durante entrevista, lhe perguntam se ele entende completamente os riscos dos criptoativos. “Eu entendo os riscos de manter dinheiro em libras esterlinas”, afirmou ele. “É isso o que digo.”
O fascínio de Francomb pelos criptoativos antecede a aquisição do grupo WAGMI. Mas mesmo depois do Crawley se tornar uma marca cripto, seus esforços de proselitismo nos vestiários têm dado pouco resultado. Nichols, o atacante do time, disse que certa vez gastou US$ 600 em um NFT com o desenho de um macaco usando uma bandana branca. O valor da imagem acabou caindo para cerca de US$ 20. “Recomendação de George”, recordou-se ele fazendo cara feia.
Francomb encontrou mais apreciação em Orrell, que dirige a Futureproof, uma firma de investimentos em criptoativos. Quando seus colegas entraram em campo em Broadfield, para uma partida no meio da semana contra o time jovem do Aston Villa, Francomb deu seu telefone para Orrell, para mostrar-lhe sua coleção de NFTs, antes de detalhar o histórico de preços dos Rangas, uma linha de colecionáveis cripto que recentemente saltou de valor. Orrell escutou educadamente e depois compartilhou algumas de suas impressões a partir da perspectiva de sua própria carreira nos negócios cripto.
“Meu NFT mais lucrativo, eu estava de cueca quando o comprei”, afirmou Orrell. “Eu saía do chuveiro para comprar aquelas coisas.”
Francomb e Orrell estão envolvidos profundamente na “criptificação” do Crawley. Durante o verão, o time lançou um novo abrigo estampado com o “rabisco cromático”, um design em arco-íris que aparece em uma coleção popular de NFTs. “Esse rabisco é muito importante para mim”, afirmou Orrell. Francomb organizou pessoalmente uma outra promoção cripto: ele conectou Johnson com um amigo que dirige a plataforma cripto XCAD Network, e pouco depois o logo da XCAD apareceu nas mangas dos abrigos do Crawley.
Mas as iniciativas cripto mais ambiciosas do clube revolveram em torno da venda de NFTs. Qualquer um que tenha comprado um NFT Crawley tem poder de voto em certas decisões do clube; uma votação recente ajudou a determinar as prioridades do time na janela de transferências de jogadores. Johnson também prometeu dar aos compradores de ingressos para a temporada e donos de NFTs a chance de votar por sua saída da liderança do Crawley caso o clube não suba para alguma divisão mais importante até 2024 (talvez Francomb não se qualifique para participar desse referendo; ele não participou da venda de NFTs Crawley. “Eu não tinha muito ETH disponível”, afirmou ele, usando a sigla que define uma criptomoeda popular. “Os preços que eles definiram excluíram o próprio capitão de seu time”).
‘Ele não fede’
A partida contra o Newport County ocorreu no fim de uma semana tumultuada em Broadfield. Alguns dias antes, Johnson tinha chegado à Inglaterra para conversar com os jogadores um a um; Betsy foi prontamente demitido, e Lewis Young, um popular técnico-assistente, assumiu temporariamente a equipe. Muito estava em jogo: outra derrota poderia deixar o Crawley perigosamente na zona de rebaixamento.
Quando um gol salvador concedeu 2 a 0 ao Crawley, pouco após o início do segundo tempo, Johnson saltou da cadeira, com as mãos para o alto em celebração. O time selou sua vitória, e Johnson correu para dentro do campo, onde abraçou Nichols e Francomb. Então Johnson checou seu telefone e suspirou em frustração: mesmo com o resultado da partida, o Crawley ainda estava na zona de rebaixamento, arriscando cair para uma divisão ainda menor.
Mas o humor em torno do estádio melhorou. No estacionamento, Johnson posou para foto com duas crianças usando camisetas do Crawley, enquanto a mulher que cuidava delas os orientava. “Chegue mais perto”, instruiu ela, gesticulando freneticamente. “Ele não fede.”
Como analista de apostas na ESPN, Johnson já se sentiu uma “semicelebridade” em Las Vegas, onde telespectadores às vezes o saudavam como “Sports Cheetah” (guepardo dos esportes), seu apelido on-line. Atualmente, ele é uma semicelebridade em Crawley. “Queremos que você seja bem-sucedido”, disse-lhe um torcedor diante do estádio.
Johnson sorriu. Ele continua comprometido em transformar um modesto clube inglês de futebol no time da internet, com uma rede global de abastados criptoempreendedores o sustentando. E quando o torcedor lhe deu um tapinha no ombro, em apoio, Johnson se maravilhou com a exibição de gentileza, especialmente notável após meses de abusos no Twitter. Todos em Crawley, afirmou ele, são pessoas muito mais gentis ao vivo.
*Tradução de Augusto Calil