Publicidade

Colunista

Doações em vida: um caminho cheio de boas intenções e, por vezes, más consequências

Sucessão planejada exige estratégia, limites e a consciência de que quem doa também precisa estar protegido

Foto: Adobe Stock
Foto: Adobe Stock

No Brasil, a prática da doação de bens em vida vem ganhando cada vez mais adeptos. O objetivo é geralmente nobre: evitar o inventário e desarmonia na família, antecipar parte da herança aos filhos, além de reduzir custos tributários. Tudo isso com um ar de previsibilidade e organização. Mas por trás da aparente racionalidade patrimonial, muitas famílias escondem dramas silenciosos — alguns deles, irreversíveis.

CONTINUA APÓS A PUBLICIDADE

Na prática, a doação em vida pode, ao inverso do desejado, gerar conflitos familiares e, em casos extremos, deixar idosos desprotegidos — especialmente quando doam parcelas relevantes do patrimônio, sem reservar meios de subsistência.

Reserva de usufruto: solução parcial

O problema não está exatamente no instrumento jurídico. A doação com reserva de usufruto, por exemplo, é um caminho seguro e amplamente aceito, permitindo que o doador transfira a propriedade do bem, mas mantenha o uso e os frutos durante sua vida. No papel, tudo certo. O problema começa quando a lógica do contrato entra em conflito com a realidade das relações familiares.

Herdeiros despreparados podem sentir-se ‘premiados’ antecipadamente e deixar de respeitar o idoso, dificultando cuidados básicos.

Evite potenciais conflitos entre os herdeiros

Um dos erros mais comuns é a realização de doações desiguais entre os filhos, sem o devido cuidado de prever a colação — ou seja, a obrigatoriedade de que essas doações sejam levadas em conta na partilha futura. Sem isso, abre-se espaço para litígios entre irmãos (muitas vezes influenciados pelos ‘agregados’), acusações de favorecimento e até ações de anulação da doação.

Publicidade

Invista em oportunidades que combinam com seus objetivos. Abra sua conta na Ágora Investimentos

Além disso, há questões tributárias que precisam ser bem compreendidas. Sobre a doação incide o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD), com alíquotas que variam entre os estados.

O erro irreparável de doar tudo

Mas há um outro risco, bem menos jurídico e muito mais humano: a perda de autonomia do doador quando ele renuncia a todo o seu patrimônio – ou parte relevante – em vida. A situação, infelizmente, é recorrente em cartórios e escritórios de advocacia. Pais que, por generosidade ou pressão familiar, transferem todos os imóveis e ativos aos filhos — e depois se veem isolados, desrespeitados ou até negligenciados por aqueles que deveriam protegê-los.

Por isso, um ponto fundamental no planejamento sucessório, raramente debatido, é o seguinte: avaliar com parcimônia o que será doado; a economia tributária não é tudo. Manter uma parte relevante do patrimônio sob seu controle — não apenas para garantir renda, mas também para preservar o respeito e o espaço de decisão dentro da dinâmica familiar. Patrimônio não deve ser instrumento de chantagem, mas é, sim, uma forma de proteção da dignidade na terceira idade.

O dilema da transparência: quando contar aos filhos?

Outro ponto espinhoso — e cada vez mais discutido em famílias com patrimônio expressivo — é: em que momento os pais devem contar aos filhos que eles herdarão uma fortuna? A resposta, claro, não é simples. Há o receio (justificado) de que filhos desavisados passem a viver como herdeiros antes de serem adultos. Que abandonem seus projetos profissionais ou que se sintam donos de algo que ainda não lhes pertence. Que percam o ‘olho do tigre’.

Mas o silêncio total, por outro lado, pode ser igualmente danoso. A sucessão patrimonial não é apenas uma questão de transmissão de bens — é também transmissão de valores, de conceitos, de responsabilidade, de consciência sobre o que significa administrar, preservar e multiplicar um legado.

Por isso, famílias mais estruturadas têm optado por iniciar esse diálogo gradualmente. Um bom momento é quando os filhos entram na vida adulta, iniciam suas trajetórias profissionais e demonstram maturidade para compreender o que a herança representa. Em vez de apenas informar que “vocês vão herdar isso tudo”, o ideal é envolver os filhos em decisões da família, apresentar os bens, expor os desafios da gestão e, se possível, trabalhar com educação financeira e patrimonial desde cedo.

Conclusão: equilíbrio é tudo

Planejar a sucessão patrimonial vai muito além de firmar uma escritura ou registrar uma holding. Envolve conversar, instruir, avaliar contextos familiares, proteger o idoso — e principalmente, manter o equilíbrio entre o direito dos herdeiros e a dignidade de quem construiu o patrimônio.

Publicidade

Doar é um gesto bonito, mas é também um ato de responsabilidade. E como todo ato responsável, exige limites, prudência e, acima de tudo, respeito à própria história e compromisso com a própria subsistência.

No fim, a sucessão justa é aquela em que o patrimônio cumpre seu papel: preservar o bem-estar dos idosos e empoderar a próxima geração, sem renunciar à autonomia ou dignidade em nenhuma fase da vida.

Encontrou algum erro? Entre em contato

O que este conteúdo fez por você?