Um estudo científico publicado em 2000 na revista Archives of Neurology, conduzido pelo neurologista Daniel Marson e sua equipe, demonstrou que pacientes com Alzheimer, mesmo em estágios iniciais, já apresentavam prejuízo significativo na capacidade de tomar decisões financeiras. O comprometimento aparecia antes mesmo de outros sintomas cognitivos mais evidentes — como a perda de memória.
Esse declínio — que não ocorre apenas em casos de Alzheimer, mas também por quadros de demência variados ou pelo rebaixamento cognitivo natural do envelhecimento — é muitas vezes invisível à família. Ele se manifesta em atos compulsivos, confiança excessiva, desconfiança injustificada, avareza extrema ou doações inconsequentes. Ninguém sabe para que lado sua mente vai inclinar.
É comum que filhos relatem: “Meu pai sempre foi firme com dinheiro, mas agora está desconfiado de todos”. Ou então: “Minha mãe está dando tudo para estranhos que a bajulam”. Há também os que entram em loop de compras pela internet, fazem apostas online ou respondem a ataques cibernéticos com dados bancários por ingenuidade ou carência.
E não se trata apenas de golpes tecnológicos. Segundo dados do Ministério dos Direitos Humanos, o Disque 100 registrou mais de 47 mil denúncias envolvendo idosos nos cinco primeiros meses de 2023, com cerca de 282 mil violações de direitos, incluindo 15,2 mil casos de violência financeira — um aumento de 73% em relação ao mesmo período do ano anterior.
A Organização Mundial da Saúde estima que 1 em cada 6 idosos sofre algum tipo de abuso, e que até 60% desses abusos financeiros são cometidos por pessoas próximas — como filhos, cuidadores ou familiares.
Como psicóloga e educadora financeira, tenho visto o mesmo padrão se repetir: a velhice financeira não é feita só de números, mas de memória, personalidade e emoção. E a proteção não pode ser apenas externa (contra estelionatários), mas também interna: contra as distorções que surgem dentro da própria psique.
É preciso sabedoria. E, mais do que isso, preparo. Aqui vão algumas recomendações práticas, mas profundamente humanas:
1. Antecipe a conversa
Não espere a fragilidade chegar. Discuta ainda lúcido com pessoas de confiança: quais serão os limites de autonomia? Quem poderá te ajudar? Que sinais indicarão a hora de intervir?
2. Formalize com clareza
Em vez de esperar uma possível perda de lucidez para resolver tudo no susto, é possível se antecipar com um documento chamado procuração preventiva ou mandato duradouro. Nele, a pessoa escolhe — ainda em plena capacidade — alguém de confiança para cuidar das suas finanças ou decisões importantes caso venha a ter algum tipo de comprometimento cognitivo no futuro.
Esse tipo de instrumento pode evitar disputas familiares, decisões precipitadas e até processos longos e dolorosos na Justiça, como a curatela. É uma forma de garantir que a sua vontade será respeitada, mesmo se a sua mente já não estiver tão clara.
Um advogado de família pode orientar sobre as melhores cláusulas, como, por exemplo, só ativar essa procuração com laudo médico que comprove o rebaixamento cognitivo. Assim, você protege seu patrimônio, sua dignidade — e quem você ama.
3. Adote uma ‘governança pessoal’
Estabeleça uma rotina de prestação de contas leve e transparente com alguém de confiança — um filho, irmão ou profissional. Não para tirar seu poder, mas para dividir responsabilidades quando o mundo interno começar a falhar.
4. Educação financeira também prepara para cuidar de quem cuidou
Educar financeiramente os filhos é um presente que vai muito além de prepará-los para gerir seus próprios recursos. É também um gesto de futuro compartilhado, que contribui para formar adultos mais conscientes, empáticos e preparados para cuidar — inclusive de quem um dia cuidou deles.
Quando falamos sobre finanças em família com naturalidade, criamos um ambiente onde há mais confiança, diálogo e senso de responsabilidade mútua. Em algum momento, pode ser que você precise de apoio para lidar com questões patrimoniais ou decisões importantes. E será muito mais fácil confiar em quem cresceu aprendendo que o dinheiro é, antes de tudo, um instrumento de cuidado, valores e respeito.
Não se trata de depender dos filhos. Mas de cultivar vínculos que permitam contar com eles — se e quando for preciso.
5. Use tecnologia com sabedoria
Crie barreiras a favor de si mesmo: limites diários de movimentação; alerta automático para familiares em caso de transações atípicas; lista de favorecidos autorizados; contas diferentes: uma operacional, outra guardada.
6. Invista em vínculos, não em bajuladores
O maior risco não é o golpe. É a solidão. Quando o afeto se esgota, muitos tentam comprá-lo com dinheiro. E acabam, ironicamente, mais pobres — de recursos e de dignidade.
7. Treine a flexibilidade
Às vezes, a mente envelhece para o excesso de controle. Outras vezes, para a entrega total. Nem sempre há demência: há manias que ganham força, traços que se cristalizam. E, nesse espelho distorcido, o dinheiro vira ou escudo, ou oferenda.
8. Atualize o plano com frequência
O que serve aos 60 talvez não funcione aos 80. A velhice não é um ponto fixo, mas um processo. E o plano precisa acompanhar.
9. Cuide da mente como cuida do bolso
Check-ups cognitivos periódicos. Estímulo intelectual constante. Terapia, conversas significativas, desafios novos. Manter a mente ativa é também um investimento. E dos mais rentáveis.
Por que o maior risco é o invisível
O idoso que um dia foi referência de sabedoria pode se tornar alvo da própria fragilidade. E não há proteção financeira sem encarar esse fato com coragem e compaixão. Negar a possibilidade do declínio é abrir espaço para o desastre — familiar, afetivo e patrimonial.
Falar disso em vida lúcida é um presente para si mesmo e para quem fica. Não como um ato de desconfiança, mas como um último gesto de autonomia. Proteger-se de si mesmo é, no fim das contas, um ato profundo de amor-próprio. Afinal, lucidez também é legado.