Para quem acompanha ativamente a indústria de investimentos em nível global, é difícil acreditar que o Brasil nunca tenha tido um fundo de investimentos focado em financiar projetos liderados por negros; ou, nem mesmo, fundos de investimentos que avaliam empresas investidas de acordo com seu impacto na redução das desigualdades raciais. O empreendedorismo e as pequenas empresas geram riqueza e emprego no Brasil. Portanto, melhorar o acesso ao capital entre os empresários negros é mais do que uma questão social; é um imperativo econômico.
No entanto, empreendimentos viáveis continuam sendo ignorados e a indústria de investimentos segue demonstrando sua falta de diversidade, apesar de o desempenho dos gestores negros ser igual ou superior ao de outros gestores. Um estudo liderado pelo professor Josh Lerner, de Harvard, sobre os retornos dos Fundos de Investimentos de Private Equity nos Estados Unidos mostra melhor desempenho das gestoras (26% maiores retornos) e dos gestores negros (29% melhor retorno).
A diversificação dos atores que atuam na gestão de ativos não é apenas ético, mas também inteligente, do ponto de vista puramente econômico. Dados da Small Business Administration, dos Estados Unidos, também sugerem que os gestores negros são mais propensos a investir em empresários negros. Além de estarem acostumados a contratar e treinar outros negros e serem os principais filantropos em suas respectivas comunidades. Se queremos redirecionar mais investimentos para projetos de alto impacto, precisamos mudar a cara daqueles que recebem as alocações de ativos.
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Contudo, existe uma falsa visão de que apoiar gestores negros ou fundos orientados a negros é fazer caridade ou um tema social. Um estudo da Universidade de Stanford de 2019 mostrou que os investidores tendem a discriminar gestores negros com credenciais competitivas (forte desempenho nas métricas como a taxa interna de retorno e saídas de fundos anteriores). Os resultados sugerem que, além das disparidades raciais na pipeline ou carteira de projetos, existem disparidades raciais sistêmicas na maneira como os investidores avaliam fundos e alocam dinheiro.
Apesar de ser um processo mais demorado, fomentar uma nova geração de gestores negros, que produzirão um efeito cascata em todo o mercado de capitais, é mais eficaz do que insistir para que os gestores atuais considerem a equidade racial. Isso não quer dizer que esses não devam descruzar os braços, pois existem muitas oportunidades de mudança em todo o ecossistema de investimentos, seja por parte dos gestores (quem compõe a carteira dos fundos), seja por parte dos alocadores de ativos (quem decide quem o administra).
Até hoje eu ouço frequentemente pelo menos três razões para a inexistência de fundos de private equity ou capital de risco no país que considerem a equidade racial como um objetivo a ser almejado. Primeiro, a falta de profissionais negros no mercado financeiro, e, principalmente, gestores de ativos autorizados pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Segundo, a falta de bons portfólios de empresários negros. E, terceiro, o preconceito, a desconfiança e falta de informação por parte dos investidores sobre a credibilidade dos gestores e dos projetos apresentados por negros.
Apesar de não existir dados a respeito do perfil demográfico dos gestores de fundos no Brasil, é evidente que a participação dos negros entre os profissionais que gerenciam ou administram os mais de R$ 3 trilhões de ativos sob custódia no país é absurdamente inexistente. Apenas como comparação, nos Estados Unidos somente as mulheres e os negros administram cerca de US$ 700 bilhões em ativos, o equivalente a quase a totalidade dos ativos da indústria de investimentos no Brasil. O resultado disso, obviamente, é ver todos os dias o surgimento de um novo fundo de investimento direcionado a mulheres ou negros, e, ainda, ver bilionários como o CEO da Netflix não terem nenhum problema em colocar seu patrimônio sob a custódia de gestores negros.
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Outro tema tem a ver com a aparente inexistência de uma carteira de projetos de negros passível de receber financiamento de private equity ou venture capital (PE/VC). O ponto de partida nessa discussão tem a ver com uma sutileza do racismo, que afeta a indústria de investimentos da mesma maneira que afeta qualquer outra indústria no Brasil. O que eu quero dizer é que, apesar de existirem mais de 12 milhões de empreendedores que crescem seus rendimentos e níveis educacionais a taxas muito mais altas do que o resto da população, particularmente no caso dos negros a indústria de investimentos parte do princípio de que não conseguirão encontrar bons projetos.
Não é por acaso que geralmente se diz que a senhora que vende acarajé na praia é uma empreendedora por “necessidade” e o recém-formado em medicina que quer abrir mais uma cervejaria artesanal, um empreendedor por “oportunidade”. As expectativas de sucesso são menores para os negros, mesmo que o negócio do acarajé obtenha 100% de retorno no investimento, e o negócio da cerveja artesanal, 8%, por exemplo.
Para que uma boa carteira de projeto exista, é necessário induzi-la com a oferta de capital e estruturá-la com pré-investimento. Os empreendedores brancos sabem disso e, ao antecipar a oferta de capital, empreendem esforços na estruturação de seus fundos. Além disso, projetos de investimento não são criados para ficar engavetados. Eles precisam de recurso e tempo e são estruturados quando existe uma oportunidade real e crível de investimento. Por exemplo, foi somente depois da política nacional de Empoderamento Econômico Negro de Base Ampla na África do Sul e das reformas nas políticas de alocação dos fundos de pensão nos Estados Unidos que se observou um aumento significativo no número de gestores negros, na quantidade de capital gerido por eles e no número de fundos de investimento priorizando equidade racial.
O Conselho do Sistema do FED, o banco central americano, por exemplo, estabeleceu seu Escritório de Diversidade e Inclusão (ODI) em janeiro de 2011 para promover a diversidade e a inclusão em toda a instituição e no mercado financeiro. A Associação Nacional de Capital de Risco dos Estados Unidos criou recentemente a organização Venture Forward, cuja missão é expandir as oportunidades para mulheres e negros no mercado de PE/VC com apoio financeiro de mais de 60 investidores individuais e corporações como a Silicon Valley Bank, Deloitte e Gunderson Dettmer. A Associação dos Profissionais Negros de Valores Mobiliários e Investimentos (Absip) da África do Sul deseja que o Código do Setor Financeiro seja alterado para que os fundos de pensão passem a alocar parte dos seus US$ 480 bilhões em gestores negros. Organizações como a Iniciativa para Gestores de Ativos Diversos (Dami), a Coalizão Rainbow Push, a Toigo Foundation, a Associação de Profissionais Latinos em Finanças e Contabilidade e a Garotas que Investem também têm o intuito de aumentar o número absoluto e a quantidade de ativos sob administração de gestores negros.
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Se o Brasil pretende mudar o cenário atual, serão necessárias políticas públicas e privadas para induzir o mercado e empoderar gestores negros. Será necessário um compromisso com a diversidade e práticas inclusivas na gestão de investimentos. Isso inclui a criação de políticas que levem em conta uma agenda permanente nas reuniões dos comitês de investimentos ou a definição de metas relativas à diversidade nas Declarações da Política de Investimentos. Não basta que os gestores negros tenham desempenho igual ou superior a qualquer outro, se o preconceito não for desafiado. Portanto, será preciso que os tomadores de decisões do mercado financeiro confrontem regularmente seus vieses inconscientes, paralelamente a seus esforços conscientes de promoção da equidade racial.