Mente sã em bolso são

Ana Paula Hornos é psicóloga clínica, autora e comunicadora. Como especialista no despertar do potencial humano, do individual ao coletivo, dedica-se a ajudar pessoas na busca do bem-estar integral, unindo propósito, carreira, saúde financeira e atitudes conscientes para melhores resultados. Professora, mestre em psicologia e engenheira pela USP, com MBA em finanças pelo INSPER e especializações pela FGV e IMD, possui mais de 20 anos de experiência como executiva e empresária. Foi diretora de grandes empresas nacionais como o Grupo Pão de Açúcar e membro de Conselho de Administração da Essencis Ambiental. No E-Investidor, fala sobre finanças, comportamento, vida profissional e atitude ESG.

@anapaulahornos

Escreve às segundas-feiras, a cada 15 dias.

Ana Paula Hornos

Apostas on-line: uma tragédia financeira iminente

Tenho visto, com tristeza, o crescimento do problema em meu consultório

Apostas esportivas são entretenimento, mas exigem cautela. (Foto: Felipe Rau/Estadão)
  • Os jogos de aposta preferidos entre os jovens brasileiros são as apostas esportivas on-line, que, diferentemente de outras formas de jogo, são mais viciantes
  • Estudos da psicologia comportamental mostram que a redução no atraso entre risco e recompensa, característicos das apostas de jogos ao vivo, provoca aumento na velocidade e frequência do apostar
  • O tema está contaminando a juventude brasileira, com potencial catastroficamente danoso para a saúde financeira e mental da população

“Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria.” Se Machado de Assis expressou tamanho sentimento negativo no livro “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881), o que ele diria hoje, sobre a vida, cenário e o legado a deixar aos jovens nos tempos atuais?

Pais se preocupam com o desenvolvimento e bem-estar de seus filhos, assim como líderes precisam estar atentos à saúde física e mental de suas equipes. Temas como desempenho acadêmico, produtividade, envolvimento com drogas, álcool, comportamento sexual irresponsável, bullying, assédio e questões envolvendo estresse, ansiedade e burnout demandam atenção de pais e líderes atualmente.

Mas há outro grande problema tomando corpo, capturando na surdina nossos jovens adolescentes e jovens adultos de forma silenciosa e voraz: os jogos de apostas online.

No mundo

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estimou, em 2016, que apostadores perdem US$ 400 bilhões por ano no mundo. Uma pesquisa Associação Nacional de Administradores para Serviços de Jogo Desordenado feita em 2020 apontou 5,7 milhões de americanos com transtorno de jogo.

No Reino Unido, a Comissão de Jogos estimou, em 2021, a prevalência do distúrbio do jogo compulsivo em 1% da população economicamente ativa, o que está mobilizando o governo inglês a promover uma grande reforma das leis de jogos de azar para proteger usuários vulneráveis, entre eles os jovens até 24 anos que, segundo as evidências, correm maior risco de sofrerem danos.

O problema cresce na era dos telefones celulares, uma vez que a tecnologia possibilita apostar 24 horas por dia, 7 dias por semana, por meio de “cassinos virtuais móveis”. Embora muitas pessoas façam uso apenas recreativo da atividade, cresce o número de casos de dependência, com relatos de trágicas perdas financeiras e até mesmo suicídio.

As taxas de jogo problemático são mais altas em quem frequenta cassino on-line do que para aqueles que jogam em salas de bingo ou cassinos presenciais.

No Brasil

Desde 1946, cassinos físicos são proibidos no Brasil, mas a lei não se aplica aos cassinos on-line.

Se o jogador tiver mais de 18 anos e o cassino online não estiver sediado no país, é permitido o jogo. Dessa forma, cresce no Brasil o número de jovens apostadores, incluindo menores de 18 anos.

Tenho visto, com tristeza, o crescimento do problema em meu consultório, tanto em número de clientes quanto em valores apostados. O que no início era indicado pelos jovens clientes como uma atividade de lazer e com percentual baixo de alocação saiu da percepção da categoria de despesa para receita. Isso ocorre mesmo que não haja ganhos líquidos e as perdas sejam crescentes, muitas vezes comprometendo 100% dos recursos mensais e até endividamento entre pares adolescentes.

Ainda vejo um deslocamento de outras atividades destinadas a lazer, como cinema, lanchonetes e shows, para uso exclusivo em jogos, com privação de outras formas de diversão e interação social. Tais evidências orçamentárias e comportamentais são fortes indicadores da necessidade de intervenção clínica e acompanhamento psicoterapêutico.

Os jogos de aposta preferidos entre os jovens brasileiros são as apostas esportivas on-line, que, diferentemente de outras formas de jogo, são mais viciantes.

Dada a cultura brasileira muito ligada ao esporte, e em especial ao futebol, muitas vezes as apostas esportivas fogem do radar de risco dos apostadores e familiares, por serem consideradas mais seguras. Na crença de serem guiados mais por seus próprios conhecimentos e habilidades e menos pela sorte, apostadores esportivos apresentam uma falsa ilusão de controle.

Não raro, a própria família é incentivadora quando acredita erroneamente haver similaridade entre competências de performance dos apostadores esportivos com as competências dos investidores em renda variável.

Gatilhos emocionais

Estudos da psicologia comportamental mostram que a redução no atraso entre risco e recompensa, característicos das apostas de jogos ao vivo, provoca aumento na velocidade e frequência do apostar.

Também a alternância entre perder e ganhar, chamada tecnicamente de reforçamento intermitente, estimula o forte estabelecimento do padrão de comportamento e grande dificuldade em extingui-lo. Funcionam como reforçadores, além do dinheiro (que exerce papel importante na satisfação generalizada de necessidades, inclusive em continuar jogando), o incentivo em pertencer a um grupo social que participa ativamente do jogar e, não menos impactante, os atraentes recursos sonoros e visuais que os aplicativos ‘gamificados’ de apostas oferecem.

O jogo de azar é um grande problema quando se torna patológico. A quinta revisão do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais , DSM-V, incluiu o diagnóstico do Jogo Patológico na classificação de Transtornos Relacionados a Substâncias e Outros Vícios, pela semelhança comportamental com a dependência química.

Quando devo me preocupar?

Fique atento se em você ou em uma pessoa conhecida são identificados pelo menos cinco dos padrões comportamentais a seguir. Eles indicariam potencial diagnóstico do jogo patológico e a necessidade de buscar acompanhamento psiquiátrico e psicoterapêutico.

1. Ocupa grande parte do seu pensamento com o jogar (planeja o próximo episódio e modos
de adquirir dinheiro para jogar)
2. Sente necessidade de aumentar valor e frequência das apostas para obter a mesma
satisfação;
3. Fracassa repetidamente nas tentativas de controlar, diminuir ou parar de jogar;
4. Apresenta alterações de humor quando tenta reduzir ou deixar de jogar;
5. Usa o jogo como fuga dos problemas ou alívio emocional;
6. Retorna muitas vezes ao jogo para recuperar as perdas;
7. Mente para esconder a extensão do envolvimento com o jogo;
8. Endivida-se ou comete atos ilegais como falsificação, fraude ou desfalque para jogar mais;
9. Coloca em risco ou prejudica relações afetivas, empregos, oportunidades acadêmicas ou de
trabalho, devido ao comportamento de jogar;
10. Tenta solucionar situações financeiras deficitárias do jogo, pressionando pessoas próximas

Uma questão que exige cuidado

O jogo patológico é uma doença que traz grandes prejuízos para os próprios jogadores, contaminando a saúde das famílias envolvidas e das empresas, cujas equipes tenham colaboradores adoecidos.

Recentemente, o Estadão obteve registros que identificaram quadrilha de apostas que manipulava o resultado de partidas subornando os atletas envolvidos. O assunto é tão amplo que a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) tem considerado o envolvimento da Interpol – The International Criminal Police Organization – nas investigações.

Quem sabe esse evento criminoso possa, pelo menos, incentivar o despertar de um olhar mais apurado, profundo e sério sobre o problema. Faz-se necessária uma mobilização das famílias, das empresas e do governo, tanto do ponto de vista de prevenção e cuidado como legal e de políticas públicas.

O tema está contaminando a juventude brasileira, com potencial catastroficamente danoso para a saúde financeira e mental da população.