

As empregadas domésticas desempenham um papel fundamental não apenas no funcionamento de milhões de lares brasileiros, mas também como agentes ativos na economia popular por meio da prática da poupar e movimentar o ciclo do consumo.
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As empregadas domésticas desempenham um papel fundamental não apenas no funcionamento de milhões de lares brasileiros, mas também como agentes ativos na economia popular por meio da prática da poupar e movimentar o ciclo do consumo.
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Mesmo com rendimentos muitas vezes limitados, muitas dessas profissionais desenvolvem uma cultura de organização financeira, reservando parte de seus ganhos para emergências, objetivos pessoais ou o futuro da família. Essa atitude não só demonstra responsabilidade e resiliência diante das dificuldades econômicas, mas também contribui para a estabilidade financeira de suas comunidades, mostrando que o hábito de poupar é uma ferramenta poderosa de autonomia e transformação social. Mas quem cuida de quem cuida?
O número de trabalhadores domésticos com carteira assinada caiu 18% na última década, segundo levantamento recente do Ministério do Trabalho. Por trás dessa queda estão mudanças demográficas — como a diminuição do tamanho das famílias e o envelhecimento da população — e a busca por maior flexibilidade trabalhista por parte dos empregadores.
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Até 2013, os empregados domésticos eram considerados uma categoria com menos direitos perante a legislação. A aprovação da Emenda Constitucional nº 72, conhecida como a PEC das Domésticas, foi um marco histórico, garantindo jornada de 44 horas semanais, pagamento de horas extras, Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e proteção contra demissão sem justa causa. A lei apenas equiparou os direitos das domésticas aos de outros trabalhadores.
A percepção de que prestadores de serviços domésticos “deveriam” ter menos direitos decorre de uma herança histórica de desvalorização do cuidado com o lar e com as crianças — trabalho tradicionalmente atribuído a mulheres e tratado como inferior. Segundo pesquisa do IPEA, em parceria com o Ministério da Igualdade Racial, as mulheres representam 98% dos que realizam trabalho doméstico, e 69,9% são mulheres negras.
A implementação dos direitos previstos na PEC enfrentou resistência. O encolhimento no número de domésticas com carteira assinada, agravado pela pandemia, que levou a um grande volume de demissões, expôs uma adaptação pragmática: muitas profissionais migraram para o modelo de diaristas autônomas. Hoje, o Brasil tem mais de 309 mil diaristas com CNPJ ativo, segundo o Ministério do Empreendedorismo.
O que parece autonomia e liberdade esconde, muitas vezes, a renúncia a direitos básicos: férias, 13º salário, licenças e, principalmente, aposentadoria. Diárias de R$ 150 a R$ 200 podem parecer um bom negócio, especialmente frente a salários mensais limitados. Mas essa vantagem é imediatista. Ao fim do mês ou da carreira, o que resta a essas mulheres — muitas vezes chefes de família — é a ausência de qualquer rede de proteção. A aposentadoria torna-se um sonho distante, a não ser que haja disciplina e organização para o recolhimento previdenciário autônomo.
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E o impacto é geracional. Mulheres chefes de família, responsáveis por mais de 49% dos lares brasileiros, segundo o IBGE, tendem a priorizar a educação dos filhos. São elas que, mesmo com poucos recursos, pagam mensalidades, compram livros, fazem sacrifícios. Quando protegidas por vínculos formais, a estrutura familiar se torna mais estável e o futuro de seus filhos, mais promissor.
A retração do trabalho doméstico formal acompanha, em certa medida, uma tendência global. Em países desenvolvidos, onde a escolaridade média é mais alta, o número de empregados domésticos é significativamente menor. Mas a comparação direta ignora um ponto essencial: a existência de uma estrutura pública de serviços. Creches acessíveis, escolas em tempo integral, alimentação escolar de qualidade e segurança pública são garantias nos países centrais. No Brasil, falhamos em oferecer o mínimo.
Nesse contexto, para muitas famílias, contar com trabalho doméstico é uma necessidade. Quando mulheres não têm acesso a serviços públicos de apoio, precisam terceirizar os cuidados para outras mulheres — a chamada “rede de apoio”. Mas essa rede, frequentemente romantizada, na prática é formada por avós, tias e irmãs que interrompem ou limitam suas trajetórias profissionais para cuidar dos filhos de outras.
Ademais, é possível que parte da queda na formalização decorra da tentativa de burlar a obrigatoriedade de registro. Em 2024, foram ajuizadas cerca de 40 mil reclamações trabalhistas por empregadas domésticas, com pedidos de reconhecimento de vínculo, entre outros direitos. Esses dados sugerem que muitas ainda trabalham de forma contínua e subordinada, mas sem registro e sem direitos assegurados.
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O trabalho doméstico precisa ser resgatado de sua invisibilidade. Não apenas como pauta de política pública, mas como questão de justiça social. Em um país onde a maioria dos vínculos formais da categoria ainda é ocupada por mulheres negras, a informalidade apenas aprofunda as desigualdades históricas.
Falar sobre trabalho doméstico no Brasil é falar sobre cuidado, infância, velhice, desigualdade estrutural — e, sobretudo, sobre mulheres. Avançar significa assegurar direitos plenos e valorizar esse trabalho como essencial.
Retroceder, mesmo sob o véu da modernização, perpetua um custo social pago, como sempre, pelas mais vulneráveis. E, por fim, essa falta de previsibilidade financeira, de planejamento e de uma aposentadoria digna para as empregadas domésticas impacta não apenas como um problema social — mas também como um desafio econômico.
Sem uma rede de proteção adequada, empregadas domésticas tendem a depender de programas assistenciais na velhice, aumentando a pressão sobre o sistema público de seguridade social. Além disso, a ausência de poupança e investimentos entre esse grupo reduz o potencial de circulação de recursos na base da economia, o que limita o crescimento do consumo interno e a geração de riqueza nas comunidades onde vivem.
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