Saber algo que um oponente não sabe, quando duas partes estão em uma disputa, é uma vantagem muitas vezes determinante para a vitória. A raiz de praticamente qualquer estratégia contém algum grau de assimetria de informação, nas atividades humanas mais diversas: dos jogos de cartas às guerras, seja onde for que haja negociação (das pacíficas às nada pacíficas), lá haverá alguma assimetria de informação.
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O estudo desse fenômeno já recebeu um prêmio Nobel de Economia – em 2001, concedido aos economistas Joseph E. Stiglitz, A. Michael Spence e George A. Akerlof. O trabalho de Akerlof, por exemplo, mostrou que a informação assimétrica entre tomadores e credores “pode explicar o aumento vertiginoso das taxas de empréstimos” em países em desenvolvimento, as dificuldades de idosos em contratar planos de saúde individuais e a discriminação de minorias no mercado de trabalho. Assimetria de informação é, portanto, o que os especialistas chamam de “falha de mercado”, e sua correção vem na forma de um reequilíbrio, que pode exigir algum grau de intervenção governamental.
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Esse reequilíbrio poderia vir na forma de regras e normas que estabelecessem graus equânimes de transparência entre os diversos players em cada setor de atividade econômica. Porque, se para jogos de cartas e guerras a assimetria de informação é desejada e até incentivada (desde que voltada contra o inimigo), para um ambiente de atividade econômica eficiente, saudável e, mais que tudo, justo, o desequilíbrio e a falta de transparência podem significar retrocessos, desincentivo e injustiça.
Esse contexto poderia levar alguém, então, a perguntar qual o racional por trás da resolução 179 da CVM (Comissão de Valores Mobiliários). Programada para entrar em vigor nesta sexta-feira, dia 1º de novembro, a nova norma coloca em risco ainda maior de desequilíbrio um setor do mercado – o de intermediação financeira – em que este já é acentuado. Isso porque nele atuam não só os assessores de investimentos (que ocupam uma fatia de cerca de 15% do mercado), mas também os gerentes de bancos (e estes dominam nada menos que 85% do setor).
A resolução 179 pretende tornar mais transparente o mercado de intermediação financeira ao exigir que sejam divulgados remunerações e conflitos de interesses. Tal proposta seria a mais pura manifestação do bom-senso, se ao menos fosse de fato isso que promovesse. Mas algumas insuficiências da regra são evidentes. Por exemplo: a regra teria aplicação direta e imediata sobre os assessores de investimentos – mas sobre gerentes de bancos, teria de vir do Banco Central. Este, no entanto, ainda não manifestou qualquer sinal de que uma exigência equivalente de sua parte esteja a caminho.
O desequilíbrio que surgiria assim poderia, por exemplo, causar uma convergência de preços. Disso viria um efeito de uniformização entre os participantes do mercado – o que teria consequências bastante negativas para um mercado com concorrência real. Surgiria aí ocasião para que o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) viesse a se manifestar sobre uma assimetria regulatória promovida não por participantes do mercado, mas pela própria instituição responsável por garantir um plano uniforme e justo.
Transparência no mercado financeiro pode, com bastante propriedade, ser apontada como uma virtude fundamental. Em fevereiro deste ano, por exemplo, a SEC (Securities and Exchange Commission, a CVM dos EUA) divulgou um comunicado acerca de uma mudança nas regras de transparência para o Departamento do Tesouro. No documento, o órgão lembra que o esforço por trazer transparência aos mercados remete ao Acordo de Buttonwood (documento que é, por assim dizer, a “certidão de nascimento” do que viria a ser a Bolsa de Valores de Nova York), de 1792 – acordo esse firmado não muito depois de Adam Smith ter escrito “A Riqueza das Nações”. A busca por transparência nos mercados praticamente coincide com o nascimento do capitalismo moderno.
A norma da CVM avança no sentido contrário, como uma espécie de “avanço do retrocesso”: menos transparente, o mercado de intermediação financeira contaria com menos concorrência. Isso acarretaria uniformização de preços e acabaria com qualquer possibilidade de concorrência. De posse dos dados exigidos pela comissão, os grandes bancos poderiam fazer da informação usos que favorecessem seus gerentes – à custa do trabalho dos assessores de investimentos. O investidor, por sua vez, ficaria sem outra escolha que não a de aceitar aquilo que os bancos oferecessem – e quem não quisesse, que ficasse sem.
No filme “Golpe de Mestre”, de 1971, vemos uma aplicação divertida da assimetria de informação. Henry Gondorff (o personagem de Paul Newman) está em uma partida de pôquer com o chefão Doyle Lonegan, e parece ter uma mão de cartas bem ruim. Ambos seguem elevando a aposta, com Lonegan cada vez mais confiante de que vai ganhar. E Gondorff revela afinal o que tem – e ganha, rodeado de jogadores boquiabertos. No mercado financeiro no mundo real, exigir transparência de um lado permitindo que o outro siga opaco não rende diversão nem sorrisos – pelo contrário: pode, isso sim, prejudicar uma classe profissional, o funcionamento eficiente do mercado e, pior que tudo isso, as escolhas do investidor.