O que os criptoativos ensinam

Diretor no Mercado Bitcoin desde 2018, Tota tem 23 anos de experiência no mercado financeiro. Agora no universo dos criptoativos, ele une o seu forte background em tecnologia e profundo conhecimento de produtos financeiros para desmistificar o mercado de ativos digitais.

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Fabricio Tota

O que a crise da FTX deixa de legado para o mercado de criptomoedas

A crise da FTX oferece um novo panorama ao ecossistema, que precisa de uma regulação saudável

Crise da FTX expõe a necessidade de uma regulação para o mercado de cripto | Foto: Reuters
  • A FTX nasceu com o discurso de ser uma corretora "de traders para traders" e assumiu diversos riscos
  • Quando o mercado está em alta, as consequências de certas tomadas de risco não aparecem
  • Para nós, da indústria cripto brasileira, o episódio com a FTX reforça ainda a necessidade de uma regulação para o ecossistema

Em maio de 2022 eu estava em um evento de relacionamento com executivos de exchanges globais. Em um clima descontraído, especulávamos quanto a Alameda Research, principal braço de trading da FTX, ganhava por dia.

Durante a conversa, um dos executivos ironizou e disse: “A FTX oferece um tratamento isonômico para todos os clientes, não há nenhum benefício para a Alameda”. Todos riram. Seis meses depois, essa história exemplifica o episódio mais recente que vivenciamos no mercado.

A FTX nasceu com o discurso de ser uma corretora “de traders para traders”. Sua vertente de trading afirmava ser a solução definitiva para os investidores do mercado. O argumento? O fundador e CEO da FTX, Sam Bankman-Fried, o popular SBF, também era o fundador e principal executivo da Alameda, uma das maiores empresas de trading de criptoativos do mercado.

E com essa alma de trader, a FTX assumiu diversos riscos: operações alavancadas, conflitos de interesse entre a mesa de trading e a própria exchange, com um tempero altruísta – SBF era um dos expoentes do que se conhece como “altruísmo eficaz”.

No fundo, fugindo da regulação com o dinheiro de clientes, a empresa apostou em novos projetos e ativos de risco, esperando devolver um lucro acima do esperado. E o mais importante: sem que os clientes autorizassem, ou sequer soubessem, que isso estava sendo feito com seus recursos. Fraude, fraude, fraude. Em múltiplos níveis.

Regulação é a única capaz de separar o joio do trigo e trabalhar pela expansão do ecossistema

Quando o mercado está em alta, as consequências de certas tomadas de risco não aparecem. Até uma percepção de sucesso financeiro pode ser criada – muitas vezes fruto de operações alavancadas. A agressividade – tão confundida com uma total e completa falta de cuidado – é recompensada. Mas, parafraseando Warren Buffet, “você só descobre quem está nadando pelado quando a maré baixa”.

Não é diferente com a FTX. Falamos de um modelo de negócio contrário às necessidades do investidor, que pode se assustar com o tamanho do estrago que uma operação clandestina pode causar ao ecossistema.

Técnicas de manipulação de FOMO (do inglês “fear of missing out” ou medo de ficar fora, em tradução livre) e promessas de lucro rápido estimularam inúmeras pessoas e fundos de investimento a comprarem o discurso da FTX. E não estamos falando de investimento em criptoativos, mas sim na própria companhia.

Grandes nomes como Sequoia Capital, Temasek, Paradigm e Tiger Global, nomes emblemáticos do mercado de venture capital, e outros investidores como o fundo de pensão dos professores de Ontário, no Canadá, todos acreditaram na FTX. Em um cenário sem FOMO, a barra para acessar os cofres dos fundos de investimentos é alta. Num cenário de aparente alta infinita, tudo parece mais simples e menos arriscado do que realmente é. A sensação de estar perdendo a “oportunidade do século” se torna constante.

Ruídos sobre credibilidade sempre fizeram parte da história de qualquer setor. Para nós, da indústria cripto brasileira, o episódio com a FTX reforça a necessidade de uma regulação para o ecossistema. Em solo nacional, apoiamos a aprovação com urgência do PL 4401/21 que, na nossa visão, precisa prever, entre outras soluções, a obrigatoriedade de segregação patrimonial no modelo de operação dos prestadores de serviços de ativos virtuais, como as exchanges de criptoativos.

No Brasil, estamos muito, muito próximos de ter um bom projeto de lei aprovado. Um que foi amplamente discutido na Câmara, depois no Senado e se encontra na Câmara novamente, pronto para ser votado. Um projeto que ouviu legisladores, investidores e também a própria indústria cripto, evidentemente.

Pavimentar o caminho da regulação, nesse sentido, oferece um ambiente mais saudável para um mercado que vem se tornando um pilar fundamental da nova economia digital, como um sistema alternativo, e complementar, ao sistema financeiro tradicional.

No Mercado Bitcoin passamos por dois processos de captação com due diligence (processo de investigação prévia de uma oportunidade de negócio para avaliar os riscos da transação) realizado por uma das “big six”, termo que se refere às seis maiores empresas de auditoria do mundo. Falamos de um rigor de segregação patrimonial que acompanha a transparência de controles, números e informações financeiras de custódia, que são periodicamente reportadas aos investidores, conforme a governança que construímos junto a eles. Tudo isso faz parte da nossa rotina.

No Brasil, temos o maior ecossistema da América Latina: somos o sétimo país com maior número de criptoinvestidores, de acordo com a terceira edição do ranking Global Crypto Adoption Index, da Chainanalysis. Em outubro deste ano, a Finder.com nos classificou em 8º lugar em adoção de criptoativos globalmente. Segundo o estudo, 29,8 milhões de brasileiros possuem ativos digitais, sendo que 31% deles proprietários de bitcoin. A taxa de adoção no Brasil é de 18%, superior à média global de 14%.

Prova disso são os dois eventos do setor que aconteceram essa semana – Criptorama, da Associação Brasileira de Criptoeconomia (ABCripto), e a Satsconf, focada em entusiastas de bitcoin. Ainda nesta semana tivemos a presença relevante da indústria cripto no Innovation Experience em SP e na Rio Innovation Week.

É sempre assim, onde o assunto cripto chega, rouba a cena. Seja para falar de bitcoin e a autonomia do indivíduo, seja para falar de tokenização e CBDC, as moedas digitais dos bancos centrais.

O momento desafiador pode configurar uma oportunidade para revisar o futuro de muitos projetos que nascem, crescem e terminam como histórias fraudulentas. Agora, haverá mais discernimento em relação aos aspectos sustentáveis de um empreendimento no ecossistema. A crise da FTX, portanto, oferece um novo panorama ao ecossistema, que sairá mais maduro contra promessas vazias que podem aparecer no caminho.

Não há destino que não passe pela regulação. É absolutamente fundamental que exista forte conexão entre a indústria cripto e os reguladores, que criaram, ao longo dos anos, seus mecanismos de supervisão de diversos mercados. O mercado cripto ignorar tal caminho funciona como andar rumo ao precipício: participantes que clamam pela impossibilidade, por questões tecnológicas, são meros ilusionistas e terão o mesmo destino da FTX, inevitavelmente.

Acredito que uma regulação saudável tem o poder de criar uma safra de inovação que separa os frutos em tempos de colheita. Trata-se do único caminho para criar um mercado mais justo para investidores, autoridades e também para a sociedade como um todo.