É assim que a economia real se organiza há séculos. O que muda agora é a velocidade, a granularidade e o alcance. E, sim, a criptoinfraestrutura acelera tudo com alcance global, programabilidade e governança transparente.
O que é e como funciona um prediction market
Prediction market é um livro de ofertas onde se negociam contratos vinculados a eventos do mundo real, precificados entre 0 e 1. Cada contrato paga 1 se o evento ocorrer e 0 se não ocorrer. O preço ao longo do tempo é a probabilidade implícita daquele resultado. Se o ‘Sim’ negocia a 0,63, o mercado atribui 63% de chance de acontecer.
Parece um derivativo binário, mas não é ‘aposta’ no sentido comum. A diferença está em três pilares: desenho de mercado com formação de preço contínua e ordem-limite; função de hedge (proteção para tentar diminuir os efeitos da volatilidade do mercado financeiro sobre seus ativos) para agentes expostos ao evento; e governança de resolução que torna a liquidação auditável. Não é roleta, é mercado.
Essa arquitetura cria algo essencial que a “bet” não entrega: descoberta contínua de preço. Não existe palpite engessado até o apito final. Há market makers, arbitragem entre mercados correlatos, gente que entra e sai à medida que chega mais informação.
Além disso, o desenho permite hedge. Um varejista pode se proteger comprando “Sim” em um contrato de feriado chuvoso que derrubaria fluxo em sua loja. Se chover, perde na operação e ganha no hedge. Se fizer sol, fatura na loja e aceita o custo do seguro. É a lógica financeira aplicada a eventos. Por fim, há governança de resolução.
Cada mercado vem com fontes e regras de liquidação definidas de antemão. Quem compra sabe qual referência encerra a discussão, o que reduz ambiguidade e incentiva o fluxo de informação de qualidade. Em resumo, são instrumentos de preço e gestão de risco. Cassino é entretenimento. Prediction market é infraestrutura de dados negociada em tempo real.
Eleições: o laboratório perfeito
Em 2024, a corrida presidencial americana virou um mega laboratório. Milhões migraram sua atenção das tradicionais pesquisas eleitorais para as telas dos prediction markets. Na véspera e no dia da eleição, os mercados oscilaram conforme saíam contagens parciais, fluxos de voto antecipado e a qualidade das amostras por estado. O resultado foi um feed de probabilidade mais ágil que as manchetes dos grandes portais, com todas suas equipes mobilizadas em torno das eleições.
A Reuters cravou o fenômeno: só na Polymarket, plataforma líder do setor, os mercados ligados à eleição movimentaram algo próximo de US$ 3,1 bi, com a leitura de preço apontando vantagem para Donald Trump contra Harris na reta final. Dados vivos, enquanto os fatos se desenrolavam.
A discussão se estendeu para 2025. Em Nova York, a disputa pela prefeitura reacendeu o tema. No dia das primárias do Partido Democrata, a probabilidade de vitória de Zohran Mamdani saltou de 13% para 70%, crescendo pouco a pouco até bater os 100% ao fim da apuração. A graça não está em “acertar antes”, está em corrigir mais rápido. Quando a informação nova chega, o preço reage. A manchete demora. O preço, não.
Eleições expõem a musculatura dos prediction markets porque a cada pesquisa, discurso, comício, gafe ou endosso o preço reequilibra instantaneamente. Pesquisas são fotos. Preço é vídeo, com áudio, acelerado pelo incentivo econômico de quem está bem informado. Quando uma pesquisa ‘surpreende’, em geral o preço já vinha sinalizando a tendência horas ou dias antes. O mercado antecipa o que o tracking só vai mostrar depois.
Ok, mas e o Brasil? Recentemente foram criadas pools para as eleições presidenciais brasileiras. Os números dizem que, do começo de outubro pra cá, as chances de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) conseguir a reeleição saltaram de 40% para 60%. Já Tarcísio de Freitas, do Republicanos, saiu de 40% para 20% e recuperou para um patamar em torno dos 30%. Renan Santos, ligado ao MBL, aparece surpreendentemente na terceira posição, impulsionado pela recente aprovação do Partido Missão, sua legenda, pelo TSE.
O mais interessante disso tudo é que as críticas saem do papel, das redes sociais e podem virar posições financeiras nos contratos. Acha 60% muito para Lula? Venda Lula eleito. Acha pouco Tarcisio com 30%? Compre Tarcísio eleito. Tem uma posição muito convicta sobre qualquer outro nome? Como diz o ditado, “put your money where your mouth is”, ou seja, coloque seu dinheiro onde estão suas palavras.
Mas não é só política. Há mercados que precificam abertura de bilheteria de filmes, viradas em reality shows e até marcos de cultura pop que inflaram o Google Trends. No lado sério da força, pools em torno de indicadores climáticos, como intensidade de El Niño ou chance de ciclones no Atlântico, geram preço útil para agro, resseguro e logística. É a mesma mecânica, com efeitos reais de hedge e planejamento.
Outras questões menos ortodoxas também aparecem. Quantos tweets fará Elon Musk na primeira semana de novembro? Quantas vezes Trump falará “Thank you” durante seu discurso na próxima cúpula diplomática na Ásia Central? Quem será a “Person of the Year” da revista Time em 2025? Todas questões verificáveis e que atraem a possibilidade de criar mercado relevante em torno desses pequenos contratos futuros.
E, claro, eventos esportivos acabam aparecendo também. A força das bets, que são um fenômeno global há poucos anos presente também no Brasil, ofuscam em alguma medida a utilidade dos prediction markets para esse segmento. Mas é inegável que para eventos de prazo mais dilatados os prediction markets sejam mais interessantes e potentes. Tomemos, por exemplo, a Copa do Mundo de 2026.
O jogo a jogo, o detalhe de cada partida, será melhor explorado pelas bets. Mas acompanhar o favoritismo de cada seleção, mesmo seis meses antes do início do torneio, é muito mais interessante nos predction markets. A propósito, o Brasil figura com apenas 11% de chances de levar o hexa. Pouco, mas ainda assim a frente da atual campeã, a Argentina, com 10%.
O futuro, a intersecção com cripto e por que parece mais derivativo do que “bet”
Prediction markets são filhos naturais da internet de valor. Eles vivem melhor em cima de blockchains (sistema de registro descentralizado de transações em uma rede de criptoativos, que funciona como uma espécie de livro-razão imutável) públicas porque precisam de três coisas que essa infraestrutura entrega com folga: liquidação sem fricção, possibilidade de composição com outros protocolos e uma trilha de regras de resolução imutável. Em termos simples, esses mercados se comportam mais como mercados financeiros de evento do que como um jogo. E a ponte com o sistema tradicional já começou a ser construída.
Prova disso é a aproximação institucional pesada com os dados desses mercados. No mês passado, a ICE, dona da NYSE, anunciou um investimento bilionário na Polymarket e, além do cheque, vai distribuir globalmente os dados de probabilidade como insumo para clientes institucionais. Preço de probabilidade virando “data feed” oficial para mesas de operações, gestores e analistas. Isso muda o patamar. Não é só capital. É a validação da utilidade do dado de evento como insumo de risco e de decisão. É o século XXI criando uma Bloomberg do futuro para aquilo que até ontem vivia no rodapé da editoria de curiosidades.
A criptoinfraestrutura acelera essa tese, e muito. Pools automatizados permitem profundidade mesmo em nichos que teriam liquidez bastante limitada. A liquidação atômica reduz a distância entre preço e execução. A interoperabilidade permite que o preço de um evento alimente, em instantes, um rebalanceamento em um portfólio tokenizado ou dispare um pagamento condicionado. Essa é a fronteira que me interessa: prediction markets como APIs de probabilidade, plugadas em sistemas financeiros e de mídia.
Casos de uso, hoje e amanhã
Primeiro, hedge setorial. Seguradoras, agro, varejo e turismo podem cobrir riscos idiossincráticos com contratos de evento. Há correlação real entre “chover no feriado” e a linha de receita de um parque temático, por exemplo. Preço de probabilidade vira instrumento de gestão.
Segundo, inteligência de mercado. Em ano eleitoral ou de grandes anúncios corporativos, a probabilidade implícita é um termômetro melhor do que uma enquete telefônica ou um rumor de corredor. O preço reage à evidência, não a torcida..
Terceiro, entretenimento com método. Cultura pop, esportes e clima engajam e educam. O usuário aprende a ler probabilidade. Aprende que 70%. Aprende a atualizar suas crenças.
Quarto, dados como produto. Conforme a qualidade e a cobertura desses mercados se ampliam, o histórico vira dataset valioso. Quem comprou esse futuro foi a ICE, ao transformar probabilidade de evento em linha de dado distribuída para o mainstream. A ponte está aí.
Um parêntese metodológico que importa
Uma enquete faz perguntas e entrega uma fotografia. Prediction markets colocam o preço numa escala temporal e entregam um filme. E, como em qualquer mercado, há ruído, vieses e períodos de euforia. O ponto é que os incentivos estão melhor calibrados. Falar custa pouco. Comprar custa dinheiro. Quando o custo de errar é explícito, a conversa melhora. E quando informação qualificada aparece, o bom mercado “paga” por ela em segundos. É assim que se agrega conhecimento disperso.
Conclusão
Em termos microeconômicos, prediction markets funcionam como máquinas de arbitragem de crenças. Ao permitir ordens-limite e market making, transformam divergências de opinião em liquidez, e não em debates acalorados em redes sociais ou no grupo do Whatsapp. A cada nova informação, os agentes mais bem informados atualizam o preço, os menos informados reagem, o spread fecha.
Eu olho para prediction markets não somente como um produto, mas sim pela sua função. Eles organizam informação que está dispersa em preço utilizável. Ajudam pessoas a tomarem decisões, mesmo sem participar diretamente do mercado. Permitem hedge. Reduzem ruído. E, agora, começam a alimentar o sistema financeiro com data feeds oficiais. Cassino ou bet é passatempo. E tudo bem com isso. Prediction market é sinal para alocar melhor tempo e capital das pessoas e das organizações. Para quem investe, o recado é um só: o termômetro já está na parede. Ignorar o número não apaga a febre. E quando o preço é probabilidade, a febre se mede em tempo real.