Esta é a minha última coluna no ano 2020. Demorei bastante para decidir sobre o que escrever, pois este ano foi atípico em todos sentidos. Atípico por causa das mudanças positivas, no comportamento das pessoas e, por causa das mudanças negativas, causadas pelas loucuras do isolamento e a perda de entes queridos. Atípico por causa dos protestos após o assassinato do George Floyd, com milhões de pessoas brancas nas ruas gritando “Black Lives Matter”. Atípico porque até mesmo no Brasil, o assassinato de João Alberto Freitas, em uma unidade do Carrefour cerca de 10 minutos da casa da minha mãe em Porto Alegre, irrompeu protestos incendiários ao invés de celebrações calorosas no dia da Consciência Negra. A morte de Beto, como era chamado pelos conhecidos, nas mãos de forças privadas não é nada atípico, mas sim o alvoroço que ela ocasionou na Bolsa de Valores de São Paulo, chegando até mesmo a respingar gotas amargas de controvérsia na matriz da empresa lá na França. 2020 foi, sem dúvidas, um ano atípico e por isso tive dificuldade de me focar em um único tema.
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Primeiro, eu havia pensado em escrever sobre a falta de diversidade racial dos conselhos das empresas brasileiras e o que isso acarreta em termos de perdas econômicas, riscos de reputação, “desgovernança” corporativa e práticas fraudulentas e manipuladoras por parte da administração das empresas. Quem disse isso foi a Nasdaq, em uma proposta de reforma enviada à SEC (Securities Exchange Comission) na semana passada. A Nasdaq se cansou com a insuportável falta de diversidade nos conselhos das empresas listadas na sua própria instituição e pediu ao Governo Norte Americano que passasse a regular a diversidade dos conselhos e com isso proteger os investidores e o interesse público das suas próprias empresas.
No Brasil, mesmo as empresas consideradas as mais sustentáveis operando hoje no mercado ainda não conseguiram superar este problema. Apesar de eu ter me decepcionado muito, não me chocou ver que somente duas das 39 empresas no Índice de Sustentabilidade Empresarial da Bolsa de Valores de São Paulo (ISEB3) terão pessoas negras em seus conselhos em 2021. Já sabíamos que somente 5% dos altos cargos das maiores empresas Brasileiras são ocupados por pessoas negras, mas além disso, e apesar do ano que tivemos, ver a vasta maioria das empresas do índice dizer que não vão fazer NADA para resolver o problema; esta sim é uma das minhas maiores decepções de 2020.
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Então eu me perguntei: será que o assassinato do Beto Freitas poderia ocasionar mudanças nas políticas de risco dentro das grandes empresas? Será que essa tragédia poderia diminuir a exclusão insustentável das vozes de pessoas negras nos conselhos das maiores empresas do nosso País? Se a tragédia trouxesse mudanças estruturais (como por exemplo o uso de listas de exclusão de provedores de serviços com histórico de violação de direitos humanos, adoção de políticas de controle de riscos de
discriminação e abusos, implementação de planos de ação e políticas de diversidade e inclusão mais além de treinamento de executivos, etc.) poderíamos talvez evitar a repetição tragédias como esta. Mas ela cumpriu o papel de mostrar a todas empresas que existe uma lacuna nas políticas internas e que reformas são necessárias urgentemente.
Dias depois do assassinato, as ações do Carrefour Brasil (CRFB3) caíram enormemente. Só para se ter uma ideia, as ações caíram mais de 5%, em um dia de alta do índice de referência da B3, o Ibovespa. A maior queda nos últimos 12 meses perdendo apenas para os efeitos da pandemia. No entanto, um dia depois de anunciar o estabelecimento de um Comitê Externo de Livre Expressão sobre Diversidade de
Inclusão, conformado em sua maioria por pessoas negras altamente reconhecidas e respeitadas, a iniciativa do Carrefour reduziu seu prejuízo reputacional e reverteu a queda no preço das suas ações na bolsa, obtendo alta de mais de 3.6% em um único dia. O que me chamou atenção em tudo isso não foi a queda das ações depois da tragédia, mas a rápida subida após o anuncio do Comitê. O que demonstra que em termos de desempenho financeiro, o simples anúncio do comitê foi uma estratégia
extremamente efetiva, independentemente do que ao final acabem por realizar.
Entretanto, o anuncio do comitê externo também ocasionou uma briga silenciosa dentro da sociedade civil organizada negra. Digo silenciosa, porque os integrantes do comitê são pessoas negras admiradas inclusive pelos que rejeitam a ideia do comitê, tornando a tarefa de repúdio muito mais difícil aos que são contrários. E quais são as razões da rejeição do comitê? Os que rejeitam (um grupo de mais de 150 organizações negras) opinam que o comitê não é a melhor solução para os problemas do Carrefour e que, ao trabalhar de maneira isolada e sem transparência, será incapaz de resolver os problemas estruturais históricos de relações raciais da empresa, e muito menos do País. Ou seja, serve apenas como “greenwashing”, expressão utilizada para as ações orientadas somente à limpeza da reputação da empresa, mas que em nada contribuem para prevenir ou mitigar os riscos de novos episódios. Aqueles que compartilham dessa opinião pedem a cassação do alvará de funcionamento da rede em Porto Alegre com base em lei municipal que prevê esse tipo de penalidade. Enquanto a Procuradoria do Rio Grande do Sul apura o caso, o Carrefour anunciou o fim da terceirização dos serviços de segurança com o piloto de um novo modelo de recrutamento e treinamento de profissionais com representatividade racial e de género. Uma idea do comitê externo que o Conselho do Carrefour não foi capaz de conceituar e implementar ao longo dos anos. Por tanto, uma prova de que a diversidade paga dividendos.
Na minha opinião o papel do comitê externo é extremamente importante, bem como o papel dos que se posicionam contrários e o da justiça que deve correr seu curso normalmente. O Carrefour criou uma espécie de conselho diverso, mas alheio às estruturas da organização, para lidar com um problema urgente em decorrência do assassinato de Beto Freitas. Entretanto, a empresa continua com problemas internos sérios, o primeiro de falta de diversidade do seu próprio conselho e, o segundo de
baixo padrão de desempenho das suas políticas ESG. Ambos precisam ser resolvidos imediatamente para que as ações do comitê tenham sustentabilidade.
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Por outro lado, o comitê deve enxergar a oposição por parte da sociedade civil como uma oportunidade de prestar contas, de assumir responsabilidades perante o público em geral, pois exercem uma tarefa mais pública, que um serviço de consultoria privado. Os escolhidos tem, portanto, a importante tarefa de desenhar um modelo que funciona, caso contrário correm o terrível risco de criar um precedente de greenwashing eficaz, e que será exemplo para todo mercado.