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Instituto Ethos sobre Carrefour: ‘Líderes devem responder criminalmente’

Caio Magri, diretor-presidente do Instituto Ethos, diz que é preciso investimento, mudança cultural e revisão da governança para evitar episódios trágicos como o do Carrefour

Instituto Ethos sobre Carrefour:  ‘Líderes devem responder criminalmente’
(Foto: Patrícia Cruz/Estadão)
  • Segurança privada é uma questão a ser resolvida por todos os varejistas, com a contratação de pessoal próprio, e não terceirizado
  • Brasil precisa medir muito bem a qualidade do trabalho decente nas cadeias produtivas, para adoção de critérios ESG
  • As empresas devem destinar uma parte significativa dos seus lucros para tentar reduzir a desigualdade dentro da sua estrutura

O assassinato de um homem negro no estacionamento de uma loja do Carrefour em Porto Alegre no último dia 19, véspera do Dia da Consciência Negra, marcou de maneira significativa a presença da varejista francesa no País. Além da investigação policial a respeito da conduta de funcionários e terceirizados no caso, e de todas as manifestações populares contra a companhia, na esteira do movimento “Black Lives Matter” (vidas negras importam), o Carrefour Brasil (CRFB3) pode deixar de integrar time de associados do Instituto Ethos. Trata-se de uma das mais relevantes organizações do País voltadas à mobilização das empresas por uma gestão socialmente ativa e responsável, seguindo os critérios ESG (governança ambiental, social e corporativa, na sigla em inglês).

O Ethos deu início a um processo de conduta, que pode resultar na exclusão da companhia do quadro de associados. “Nós demos um prazo para a companhia nos responder. A partir da análise das respostas e das evidências, vamos decidir qual será a sanção”, afirma Caio Magri, diretor-presidente do Instituto Ethos, em entrevista ao E-Investidor. Em casos recentes de grande impacto social e  repercussão, como os desastres de Mariana e Brumadinho, Samarco e Vale (VALE3) deixaram de ser associadas.

Magri considera que a segurança terceirizada dos supermercados é um problema setorial que precisa ser resolvido com urgência. “O que ocorreu com o Carrefour pode acontecer com outra grande rede a qualquer momento”, diz o executivo, que defende a responsabilização dos gestores da companhia.

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“[A solução] exige investimento, mudança cultural e uma revisão da governança, porque os diretores e presidentes dessas empresas precisam ser responsabilizados como pessoas físicas, chamando a atenção para as suas responsabilidades civis e criminais na condução da empresa”, afirma.

Em 2009, o Carrefour foi palco de outro caso de racismo. Um vigia e técnico em eletrônica negro foi agredido e acusado por seguranças do supermercado de tentar roubar o próprio carro, parado em um estacionamento de uma loja em Osasco, na Grande São Paulo.

Desde 2009, o Carrefour procurou fazer um “mea culpa” e se dedicou a iniciativas para valorizar a inclusão e a diversidade na sua estrutura, diz Magri. Segundo ele, no entanto, nos últimos dois anos a empresa vem deixando esse processo de transformação de lado. Em 2018, por exemplo, em outro caso de grande repercussão envolvendo a área de segurança da varejista, um cão foi envenenado e espancado por um segurança de uma loja em Osasco, o que provocou uma onda de indignação nas redes sociais.

Para que a credibilidade da adoção de critérios ESG – movimento do qual o Carrefour e sua controlada brasileira fazem parte – não seja afetada, Magri defende uma revisão desses indicadores, bem como um compromisso das empresas em mudar radicalmente o modelo da sua segurança, baseada na terceirização.

E-investidor: Por que uma rede da envergadura do Carrefour não consegue solucionar um problema que se repete?

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Caio Magri: É uma questão bastante complexa. Primeiro é o enfrentamento com atitudes antirracistas efetivas. Precisa ter inclusão, diversidade, incentivo, em todos os níveis da gestão. Uma coisa fundamental, que cada vez mais eles estão perdendo, é a gestão da relação de proteção, de segurança, de garantia de direitos e de bem-estar dos consumidores. Isso é uma coisa que tem que ser feita diretamente pela empresa. A terceirização é uma questão dramática, ainda mais nas condições do mercado brasileiro. O Carrefour deve resolver assunto, que também precisa ser solucionado por todo o setor.

O Carrefour é associado ao Instituto. Como se dá essa relação?

Nossos mais de 500 associados são empresas de todos os portes, setores etc. Há uma carta de princípios que elas assumem quando se associam e têm que seguir por compliance. No momento em que há indícios de violação desses princípios, entramos com um processo de código de conduta. Dia 20, nós encaminhamos para a presidência do Carrefour um ofício formalizando a abertura de um processo de código de conduta. Ao mesmo tempo, fizemos um posicionamento público com relação ao assassinato às medidas que precisam ser tomadas.

Como funcionam esses processos, os prazos?

Existe um prazo regimental, eles podem nos responder até 30 de novembro. A partir da análise das respostas e das evidências, das iniciativas que pretendem tomar, vamos decidir a sanção aplicada à empresa. Pode ser advertência, suspensão ou exclusão. Mas, neste momento, o Carrefour é associado ao Ethos. Em 1º de dezembro, já devemos ter a nossa decisão.

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O senhor mencionou que esse processo já aconteceu com outras empresas. Como se deram esses casos?

No meio da Lava-Jata, as grandes construtoras associadas ao Ethos ficaram suspensas até que elas conseguiram fazer mudanças importantes, como as que aconteceram na história da Odebretch, da Camargo Corrêa, da Andrade Gutierrez e da Queiroz Galvão. Elas ficaram suspensas por um período, mas os acordos de leniência firmados por elas lhes permitiram voltar a se associar ao Ethos.

Essa penalidade mais extrema, de exclusão, depende mais da gravidade do caso ou de como a empresa vai responder à situação?

Quem toma a decisão de exclusão é a assembleia dos curadores do Ethos. É o estatuto da organização. Se a empresa se negar ao diálogo, ela pode seguir no agravamento e ser excluída, por exemplo.

Por que a empresa consegue se manter dentro de índices e iniciativas de sustentabilidade socioambiental, mesmo com esse histórico de casos de violência?

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É preciso reconhecer as mudanças no Carrefour desde 2009. A empresa tem indicadores importantes, de aumento de inclusão, de diversidade. Isso é uma discussão presente na empresa, apesar de ter perdido fôlego recentemente.

Desde quando percebe essa desaceleração?

Nos últimos dois anos, dois anos e meio, o Carrefour não teve mais este protagonismo e esta liderança como antes. É algo mensurável, não é só uma impressão.

As avaliações dos índices precisam mudar?

As ferramentas que temos hoje para avaliar precisam ser aperfeiçoadas. Nós estamos fazendo isso no instituto neste segundo semestre, uma nova leitura dos indicadores Ethos sob a perspectiva desta tríade do ESG. Mas, mais do que isso, estamos pensando como é que isto pode ser aplicado à nossa realidade. O Brasil é um país que precisa medir muito bem, por exemplo, a qualidade do trabalho decente nas cadeias produtivas para fazer uma boa avaliação de uma empresa.

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Algumas respostas foram mais rápidas, como a exclusão do Carrefour da Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial. Quando a empresa se mantém nos quadros dessas iniciativas, isso não compromete a credibilidade delas?

Existe um processo de compliance, de código de conduta. As organizações precisam ter procedimentos que sejam sistêmicos, que não sejam caso a caso. Mas todas as iniciativas têm que fazer uma nota pública, como nós fizemos, e avaliar a situação. Mas não é uma questão que dá para tomar da noite para o dia. Nos casos de Mariana, Brumadinho, as empresas continuaram tentando algumas coisas. A Samarco não nos respondeu a nada. A Vale tentou, mas está suspensa da relação do Ethos até hoje.

Esses casos não são exclusividade da rede. Por que as empresas têm tanta dificuldade em solucionar as práticas racistas?

Porque é urgente o investimento absoluto em trabalho decente e, ao mesmo tempo, ter custos grandes. Mas as companhias cortam os seus custos ao terceirizar [a segurança]. Qual é a desigualdade de salários entre o presidente de uma grande multinacional e o menor salário pago a um dos seus trabalhadores? As desigualdades que existem dentro da empresa são fundamentais, precisam ser enfrentadas com investimentos. As empresas devem destinar uma parte significativa dos seus lucros para tentar reduzir a desigualdade dentro da sua estrutura.

Que tipos de investimentos?

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Por exemplo, internalizando a segurança privada, com pessoas do Carrefour fazendo isso, porque é uma relação prioritária de garantia de direitos e bem-estar dos clientes. Esses profissionais não estão ali para proteger um saquinho que vai ser roubado. Isso exige investimento, mudança cultural e uma revisão da governança porque os diretores e presidentes dessas empresas precisam ser responsabilizados como pessoas físicas, chamando a atenção para as suas responsabilidades civis e criminais na condução da empresa”.

Como o senhor avalia as iniciativas que estão sendo tomadas, como um fundo de R$ 25 milhões para combater o racismo?

É insuficiente. A minha expectativa é que sinalizem uma mudança radical do modelo de negócio da terceirização da segurança privada. Passam no Carrefour, diariamente, um milhão de pessoas, no Brasil. Então a companhia tem uma responsabilidade enorme de poder promover, de fato, o combate ao racismo, à intolerância, à discriminação. Mas a relação que estabeleceram com esse um milhão de pessoas é mediada por uma segurança privada terceirizada, e as grandes redes precisam se responsabilizar por esse serviço diretamente.

Por que essas medidas surgem depois do fato acontecer, e não antes, como prevenção?

Esse é o aprendizado que tem que ser feito pelo Pão de Açúcar, pelo Big, enfim, pelas grandes redes de supermercado, porque o problema é setorial. É um aprendizado. Todos precisam olhar para isso de uma maneira bastante fora da caixa. É necessário internalizar esses serviços de relacionamento com milhões de pessoas que passam pelas lojas.

O senhor acredita que vai mudar daqui para frente, após esse caso?

Eu sou anti-São Tomé. Em vez de ver para crer, eu creio para ver. Então ainda continuo acreditando que é possível. Mas a natureza da nossa sociedade é bastante complexa.

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