- Casas de análise que têm seus próprios fundos de investimento trazem a sensação de desconfiança para os clientes, de que a recomendação é feita visando interesses próprios
- A criação de um fundo de fundos também pode trazer problemas como diluição dos melhores fundos, taxa alta e concentração em fundos próprios
- Analistas devem prezar sempre pela análise independente para não mover o mercado a seu favor
Virou moda. É cada vez mais comum casa de análise criar seu próprio fundo de investimento, passando a ganhar nas duas pontas: nos relatórios de recomendação, via assinatura, e também no produto, via taxa de administração.
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Pode a casa de análise continuar se chamando de independente tendo produto próprio? Ora, seu papel é analisar investimentos. A partir do momento em que ela tem seu próprio produto e ganha receita nele, ela tem mesmo independência para avaliar todos os produtos do mercado? Ou tende a favorecer o que adiciona receita ao seu bolso?
O mesmo vale para os gurus financeiros. Nesse mercado os patrocínios já são comuns há algum tempo, mas lamento também que a poderosa influência digital, antes usada de forma tão sadia para criticar produtos ruins, seja cada vez mais usada para jogar fluxo em produtos que vão encher os bolsos dos influenciadores de dinheiro. Perdemos soldados.
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Pode um juiz apitar um jogo com independência quando ganha dinheiro com a vitória de um dos times?
E a desconfiança (legítima) que fica em quem acompanha as recomendações ou segue a orientação de influenciadores? Ei, espera, está me recomendando porque é bom ou porque ganha dinheiro se eu investir?
E a verdade é que o mercado financeiro não precisava de mais pessoas conflitadas indicando investimentos. É como se a nutricionista passasse a ganhar do supermercado – recebendo mais quando eu compro um Suflair do que um morango.
Todos os dias as pessoas me perguntam por que não faço, como analista independente, meu próprio fundo. É tão óbvio: além da receita de cursos e relatórios de recomendação, vou passar a ganhar taxa de administração. Por que não?
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Quando digo que destruiria minha independência de análise, elas se defendem: é só fazer um fundo de fundos, em que você só compra fundos que recomenda. Parece totalmente livre de conflitos, né?
Não, não é. Se o produto colocar receita no meu bolso, terei uma série de tentações.
Tentação um: deixar o fundo crescer sem limites, sendo que os melhores fundos do mercado têm capacidade limitada. O desejo de fazer o fundo de fundos grande – porque isso colocaria mais dinheiro no meu bolso – me levaria a investir em produtos piores ou em diluir os melhores para não limitar o crescimento do produto.
Tentação dois: cobrar mais caro no fundo de fundos. Em vez de avaliar os custos do mercado a partir de uma perspectiva independente, eu teria um conflito de maximizar minha receita com uma taxa alta na casca, que se soma às taxas dos fundos que recheiam a carteira.
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Tentação três: incluir fundos de gestão própria na alocação, em que ganho a taxa de administração completa, em vez de fazer uma seleção independente do que está disponível no mercado.
Não é à toa que os três problemas citados acima – diluição dos melhores fundos, taxa alta e concentração em fundos próprios – são os que tornam a maior parte dos fundos de fundos disponíveis no mercado ruins. É um excelente instrumento usado da forma errada. Está aí o preço do conflito.
Ainda posso listar uma quarta tentação: e se para o cliente for melhor comprar os fundos avulsos? Fora da previdência, em geral essa costuma ser uma solução melhor. É na previdência que os fundos de fundos trazem mais eficiência, como a possibilidade de aportar produtos não-previdenciários para a carteira, com tributação mais favorável.
Outra possibilidade?
E se não for um fundo de fundos? Ou seja, se a tal da casa de análise escolhe as ações e títulos que vão rechear o fundo? Aí piora. Mais dois problemas.
Um: ela passa a usar seu poder de influência digital para recomendar fundos novatos, pouco testados, que de forma alguma são competitivos em relação a fundos já consolidados disponíveis no mercado.
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E dois: por mais que o relatório de recomendação de ações seja lido de forma simultânea pela gestora do fundo de ações e pelo cliente – vamos supor que a ética vigore aqui – quem vai comprar mais rápido? O gestor profissional, suponho. Dependendo da liquidez do ativo, quando clientes do relatório de recomendação forem investir, pode ser que o preço já esteja pior.
Defendo o resgate da análise independente de verdade porque vejo um conflito claro – e pouco documentado – a partir do momento em que os sócios da casa de análise passam a receber receita de produto. A partir desse momento, a análise independente está sob risco.
Se você me conhece, talvez se pergunte neste momento: mas e a SuperPrev? Ela não é um produto meu, é uma carteira teórica de previdência. Qualquer corretora ou banco pode se inspirar nela. Escolhi não ganhar um real pelo produto. Recomendo fundos de fundos que se inspiram nela, porque é prático para clientes, mas só se tiverem um custo decente – até 0,6% ao ano está de bom tamanho – e se a capacidade for controlada (tanto que estão fechados há bastante tempo).
Se deixar de ser bom, paro de recomendar. E isso não vai mudar nem um real na quantidade de dinheiro que entra no meu bolso. O produto não é meu – escolhi o caminho da independência, mesmo que isso signifique abrir mão de muita receita. Para mim, ou você ganha dinheiro no produto ou na recomendação. Nos dois, não.
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Mas o que vejo por aí é muito diferente disso: é a receita de produto crescendo nas casas de análise e criando uma tentação para derrubar o preço dos relatórios e cursos, que passam a ser meros canais para levar clientes ao produto próprio.
Lamento que um mercado tão novo, de casas de análise não atreladas a bancos ou corretoras, esteja sendo tomado pelos conflitos. E gostaria de ver clientes identificando o problema e evitando alimentá-lo. Afinal, a demanda tem alto poder de influenciar os rumos do mercado.