A desproteção emocional ainda não é fundamento legal de exclusão da herança, mas a sociedade cobra que seja. Entre lacunas da legislação e decisões pontuais dos tribunais, o abandono material e afetivo volta ao debate sucessório.
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A desproteção emocional ainda não é fundamento legal de exclusão da herança, mas a sociedade cobra que seja. Entre lacunas da legislação e decisões pontuais dos tribunais, o abandono material e afetivo volta ao debate sucessório.
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A discussão sobre deserdação — a possibilidade de um ascendente excluir um descendente (ou vice-versa) da herança — voltou ao centro do debate jurídico. E não é por acaso. O envelhecimento da população, as novas dinâmicas familiares e a crescente judicialização de conflitos afetivos trouxeram à tona um tema sensível: o abandono afetivo e material pode, ou deveria, justificar a exclusão de um herdeiro necessário?
A morte costuma revelar não apenas um patrimônio, mas também a história afetiva de uma família. É nesse momento que emergem perguntas incômodas, mas inevitáveis: afinal, é justo que todos os herdeiros recebam a mesma parcela da herança, independentemente da relação que tiveram com o autor da sucessão? E mais: o ordenamento brasileiro admite punir juridicamente o abandono material ou afetivo?
Hoje, a resposta jurídica formal ainda é não. O Código Civil, nos artigos 1.962 a 1.964, delimita taxativamente as hipóteses de deserdação, todas relacionadas a condutas graves: ofensa física, injúria grave, relações ilícitas com madrasta ou padrasto, tentativa de homicídio, crime infamante e desamparo injustificado do ascendente em necessidade. Mas o legislador não tratou do fenômeno social que mais provoca indignação: o filho que desaparece da vida dos pais, limita a convivência ou se omite totalmente dos cuidados, especialmente na velhice.
O abandono afetivo não aparece no texto legal, mas tem ocupado espaço crescente na jurisprudência e na doutrina. O Superior Tribunal de Justiça já reconheceu a possibilidade de reparação civil por omissão voluntária e injustificada no dever de cuidado, entendendo que afeto não é exigível, mas cuidado mínimo sim. Resta a pergunta: se é possível indenizar, seria possível também deserdar?
A lacuna gera insegurança. De um lado, há quem defenda que a deserdação deve permanecer excepcional e objetiva, para não transformar o inventário em tribunal das emoções. De outro, cresce o entendimento de que a herança não pode ser um prêmio automático a quem violou gravemente os deveres de cuidado, solidariedade e presença, todos incorporados pela Constituição no paradigma da família contemporânea.
A jurisprudência começa a sinalizar abertura. Nos últimos anos, tribunais estaduais passaram a reconhecer que o abandono material a pais idosos pode se enquadrar na hipótese legal de “desamparo”, desde que comprovado de forma robusta. O desafio está justamente aí: a prova. Registrar, documentar e demonstrar anos de omissão é tarefa difícil, especialmente em famílias que evitam conflitos abertos ou formalizações judiciais de obrigação alimentar.
O fato é que a deserdação permanece como mecanismo excepcional, sujeito à comprovação em ação própria, mesmo que prevista em testamento. Não se faz por impulso, mas por prova. E é justamente por isso que o testamento ganha força: ele permite que o testador documente fatos, descreva circunstâncias, registre o abandono, produza elementos que auxiliem o juiz na análise futura.
O abandono afetivo, por sua vez, encontra maior resistência. A afetividade é valor constitucional, mas sua mensuração objetiva é complexa. A pergunta que os tribunais evitam responder é incômoda: até que ponto o Direito deve interferir em relações afetivas? Ao mesmo tempo, é igualmente desconfortável admitir que aquele que deliberadamente nega cuidado básico possa participar automaticamente do patrimônio deixado pelos pais.
A única porta hoje disponível é o testamento. A deserdação deve ser expressamente declarada em disposição testamentária, com a indicação do fundamento legal. Após a morte, caberá aos herdeiros beneficiados provar os fatos que justificam a exclusão. É um mecanismo possível, mas ainda insuficiente diante da complexidade dos vínculos familiares contemporâneos.
O debate sobre a ampliação das hipóteses de deserdação não é simples. Há risco de judicialização massiva e de litigiosidade emocional extrema. Mas também há o risco oposto: a conivência com vínculos frágeis, utilitaristas ou simplesmente inexistentes, que acabam premiados pela automática proteção da legítima.
A verdade é que o Direito Sucessório brasileiro vive um desalinhamento entre o modelo de família da Constituição de 1988, estruturado na dignidade humana e na solidariedade, e um Código Civil que ainda opera sob lógica patrimonial tradicional. Enquanto isso, famílias reais convivem com dramas concretos: pais idosos abandonados, filhos afastados há décadas e inventários que expõem pela primeira vez histórias de mágoa, silêncio e ruptura.
Talvez seja o momento de encarar, com maturidade institucional, uma pergunta inevitável: a “porção legítima da herança” — intocável desde 1916 — deve continuar blindando quem, por escolha própria, rompeu os deveres mínimos de cuidado e convivência?
O debate não é sobre punir a falta de afeto. É sobre responsabilidade, coerência e justiça. Se a família é, para o Direito brasileiro, um espaço de solidariedade recíproca, não parece razoável que a sucessão patrimonial ignore completamente essa dimensão.
Enquanto o legislador não avança, cabe aos cidadãos buscar orientação adequada, estruturar planejamentos sucessórios responsáveis e, quando necessário, utilizar o testamento como ferramenta legítima para dar voz a histórias que, muitas vezes, o silêncio familiar escondeu por anos.
Mais do que punir, a deserdação levanta um debate necessário sobre os limites da solidariedade e o papel do afeto no direito sucessório. A lei protege a família; o que se discute é até que ponto essa proteção deve ser automática e obrigatória, mesmo quando a família, na prática, deixou de existir.
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