O olhar do mercado internacional

Thiago de Aragão é diretor de estratégia da Arko Advice e assessora diretamente dezenas de fundos estrangeiros sobre investimentos no Brasil e Argentina. Sociólogo, mestre em Relações Internacionais pela SAIS Johns Hopkins University e Pesquisador Sênior do Center Strategic and International Studies de Washington DC, Thiago vive entre Washington DC, Nova York e Brasília.
Twitter: @ThiagoGdeAragao

Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias

Thiago de Aragão

EUA versus China: vários diálogos, diferentes interpretações

Conheça os temas que estimulam o embate entre as duas nações

O líder chinês Xi Jinping e Joe Biden, presidente dos EUA. Foto: REUTERS/Larry Downing
  • Entre escaladas e apaziguamentos curtíssimos, os dois países conversam sobre suas estratégias, de forma indireta, quase que diariamente por meio de gestos, comunicados, ações e revelações
  • Conceitualmente, os dois países possuem visões de mundo antagônicas, onde o crescimento político, econômico e militar da China é interpretado como uma ameaça à segurança nacional americana. Por outro lado, a visão de mundo americana é vista como intrinsecamente anti-chinesa

Desde 2018, China e Estados Unidos estão oficialmente num embate que ocupa diversas esferas. Conceitualmente, os dois países possuem visões de mundo antagônicas. Por um lado, o crescimento político, econômico e militar da China é interpretado como uma ameaça à segurança nacional americana. Já por outro lado, a visão de mundo americana é vista como intrinsecamente anti-chinesa.

Entre escaladas e apaziguamentos curtíssimos, os dois países ‘conversam’ quase que diariamente sobre suas estratégias, de forma indireta, por meio de gestos, comunicados, ações e revelações. Ao longo dos últimos anos, podemos perceber a existência de muitas interpretações equivocadas por parte de ambos os interlocutores.

Assim, o risco essencial na escalada das tensões se dá não só na ausência de comunicação real, mas na interpretação falha de um em relação ao outro. Algumas das categorias de diálogos onde as interpretações não são necessariamente o que o outro quer expressar:

Direitos Humanos

EUA: Os Direitos Humanos são valores universais de proteção, respeito e valorização do indivíduo. A China viola direitos humanos privando seus cidadãos de exercerem a liberdade de falar, a liberdade religiosa e a liberdade política. Logo, a China não viola apenas os direitos de seus cidadãos, mas direitos universais do ser humano.

Preencha os campos abaixo para que um especialista da Ágora entre em contato com você e conheça mais de 800 opções de produtos disponíveis.

Ao fornecer meu dados, declaro estar de acordo com a Política de Privacidade do Estadão , com a Política de Privacidade da Ágora e com os Termos de Uso

Obrigado por se cadastrar! Você receberá um contato!

China: A noção de Direitos Humanos é uma noção essencialmente ocidental. A interpretação se dá dentro de um viés ocidental que não foi, necessariamente, compactuado por nações não ocidentais. As ações cometidas em território chinês são de interpretação exclusiva do governo chinês, seguindo seu direito à autonomia.

Logo, por se tratar de interpretações conceituais distintas (mesmo que essas interpretações diferenciadas possam vir a ser forçadas em favor de interesses políticos e sociais), essa narrativa não encontrará uma harmonia entre os dois lados. O que vemos é o tema Direitos Humanos convertido em uma narrativa política de pressão e aliança multilateral (pelo lado norte-americano), e de ataques à soberania, intervenção externa e de descredibilização (pelo lado chinês).

Indo-Pacífico

EUA: A China busca o controle absoluto da região por meio de acordos comerciais que podem prejudicar a cada país no longo prazo; militarização excessiva no Mar do Sul da China, abordagem ostensiva a Taiwan e tentativa de ocupação do Mar do Sul da China. A militarização americana é uma resposta ao posicionamento ostensivo chinês.

China: Os acordos comerciais na região são acordados conjuntamente e os EUA não devem interferir; Taiwan é uma província chinesa e seu retorno ao controle de Pequim é uma questão de tempo. A militarização na região é uma resposta à militarização americana e de seus aliados. O Mar do Sul da China é, historicamente, território chinês, desde antes da existência dos Estados Unidos. Assim como os EUA possuem controle naval no Caribe e no Atlântico Norte, baseado em questões de segurança nacional, a China se dá o direito de fazer a mesma coisa no Indo-Pacífico.

Enquanto os EUA e seus aliados entendem que o direito de navegação é amplo e irrestrito, além de que o posicionamento ostensivo dos chineses contra Taiwan é uma violação do caráter soberano da ilha, a Austrália, importante aliado americano, entende que uma eventual invasão chinesa a Taiwan poderia significar o início do processo de conquista de outras ilhas no Pacifico.

Rota da Seda

EUA: Existe a visão americana de que a Rota da Seda não passa de um instrumento de amarração contratual, de longo prazo, entre a China e países que participam do acordo. Por mais que a crítica em cima de acordos comerciais via “Rota da Seda” não se sustentem como um fim em si mesmo, a percepção americana é de que essas parcerias garantem a manutenção da alta rotação da economia chinesa, abre mercados variados de consumidores e, principalmente, de exportadores de commodities.

China: Os EUA estão presos à lógica de financiamento que reinou após o fim da Guerra Fria. O FMI, Banco Mundial, entre outros, não conseguem suprir as necessidades de países em desenvolvimento sem um amontoado de expectativas fiscais, monetárias e econômicas que são fora da realidade. A China é soberana para executar esses acordos com outros países soberanos e os EUA a atacam por não conseguir oferecer alternativas.

Na prática, os dois lados têm razão. Não existe altruísmo nas relações internacionais e nem no comércio exterior. A China, de fato, é soberana para firmar acordos bilaterais. Porém, não tem como negar a criação de um estado de dependência que afeta interesses americanos e diminui a área de interação dos EUA perante países estratégicos em desenvolvimento.

Acordos comerciais de longo prazo quase sempre se convertem em alinhamentos políticos em fóruns multilaterais. Isso preocupa mais os EUA do que os acordos em si.

Ações militares

EUA: A China vem aumentando sua capacidade militar de forma consistente nos últimos anos. Mesmo que o foco seja a reconquista da ilha de Taiwan, a proporcionalidade da produção naval, de armas eletromagnéticas e mísseis supersônicos não são condizentes com um foco apenas em Taiwan. A militarização produz um “congestionamento” naval na região do Indo-Pacífico, forçando países a optar por um dos lados.

China: Pequim não nega que investe pesado na modernização de suas Forças Armadas. Argumenta que o foco central é a proteção de sua segurança nacional, em moldes semelhantes aos praticados nos EUA com as frotas no Atlântico Norte, Atlântico Sul, Pacifico e Índico. Enquanto os EUA argumentam com o risco de ações militares chinesas contra objetivos americanos, a China devolve o argumento na mesma linha, dizendo que busca se proteger de eventuais ataques americanos contra alvos de seu interesse na região.

O grande risco desse cenário é que cada lado tem uma posição similar em relação ao outro, fazendo com que a percepção de ataque ou de provocação ganhe contornos mais leves e delicados, entrando no campo da interpretação. A China entende que possui uma vantagem logística pela proximidade com seus alvos de interesse.

Já os EUA precisam recorrer a aliados (Índia e Austrália, principalmente) para em caso de conflito poder gerar uma equiparação logística na área. Por saber que, em caso de guerra, uma invasão na China está fora de cogitação, toda a lógica de um eventual embate se dá ao redor da capacidade e do poder naval.

O Quad (aliança entre a Índia, o Japão e a Austrália e EUA) e o Aukus (acordo entre a Austrália, o Reino Unido e os EUA) são as grandes movimentações estratégicas dos Estados Unidos, enquanto a China deve recorrer ao aumento brutal de sua produção naval militar, necessitando, obviamente, de uma grande quantidade de minério de ferro e de outros metais essenciais.

Economia

EUA: A economia chinesa não conseguirá girar na mesma intensidade dos últimos anos. Considerando-se, principalmente, o aumento substancial nos gastos militares. Sanções contra empresas específicas e um escrutínio maior em cima de empresas listadas nas bolsas americanas podem acelerar um processo de recessão que faria com que a China abandonasse, temporariamente, o foco em Taiwan e no Mar do Sul da China, dando tempo para que os EUA se equiparem e ultrapassarem a capacidade chinesa na região.

China: As sanções americanas perdem força à medida que a China amplia relações comerciais (via Rota da Seda ou diretamente) com países compradores de manufaturados e exportadores de commodities. Por outro lado, o governo chinês entende que as dificuldades impostas nas empresas chinesas para investir em bolsas ocidentais não é algo ruim. Isso leva o governo chinês a acelerar a modernização e relevância da Shanghai Star Market, da nova Bolsa de Pequim, assim como o crescimento das bolsas de Shanghai e Hong Kong.

O combustível para a manutenção do poderio econômico dos chineses é o acesso a commodities, flexibilização dos preços e transição energética para produzir mais a um custo menor. A América Latina ganha relevância, pois torna-se um importante fornecedor dessas matérias-primas. A África também, apesar de sua confusão política e institucional, mas com a vantagem da proximidade logística. O Oriente Médio vem se encaixando cada vez mais na redoma de influência chinesa à medida que os EUA perdem interesse na região.

Meio ambiente

EUA: Os embates com a China em diversas categorias afastam cada vez mais um país do outro. Ter um ponto de convergência é de extrema importância para que um canal positivo sustente as relações diplomáticas. Os EUA desejam que a China embarque nos conceitos ambientais de energias limpas e renováveis, tanto como um objetivo conceitual do governo americano, como um objetivo onde a transição energética poderia gerar uma pequena janela de desequilíbrio no fornecimento energético local, fazendo com que a China atrase alguns dos seus objetivos geopolíticos ocupada em fazer uma adequação econômica que a transição energética demandaria.

China: Pequim também concorda que é necessário manter um ponto de convergência perante um mar de divergências. No entanto, de forma mais pragmática do que os EUA, a China entende que uma colaboração crescente com os EUA nesse tema poderá trazer efeitos positivos para outras áreas, inclusive militar e científica. Um dos temores de Pequim, são sanções contra minerais raros (lítio, níquel entre outros).

À medida que a China amplia a produção de painéis solares, turbinas eólicas e outros equipamentos necessários dentro da lógica de transição energética, os EUA terão uma dificuldade na narrativa de aplicar sanções contra esses minerais raros. A sacada é que a utilização desses minerais trazem uma função dual: ao mesmo tempo em que são usados em painéis solares e turbinas eólicas, também são utilizados na produção de computadores quânticos, satélites e outros armamentos militares de alta geração.

Cedo ou tarde, os EUA irão rever a forma como a China explora minas de lítio em várias partes do mundo. Argentina e Chile são de importância estratégica e a Casa Branca já sabe disso. Resta saber se sanções ocorrerão a curto prazo ou se irão demorar o suficiente para que a China monte uma reserva considerável.

O embate entre EUA e China ainda ocorre em várias outras categorias. Em termos gerais, é de suma importância observar as dinâmicas categorizadas, assim como a dinâmica geral das relações. O Aukus foi o grande ponto de virada, pois representa uma ação clara, aberta e pública dos EUA em relação à China.

A manutenção da capacidade econômica chinesa é crítica para que ela siga produzindo armamentos necessários para sufocar qualquer ímpeto americano (e de seus aliados) de tomar ações mais ostensivas. Aguardaremos.