O olhar do mercado internacional

Thiago de Aragão é diretor de estratégia da Arko Advice e assessora diretamente dezenas de fundos estrangeiros sobre investimentos no Brasil e Argentina. Sociólogo, mestre em Relações Internacionais pela SAIS Johns Hopkins University e Pesquisador Sênior do Center Strategic and International Studies de Washington DC, Thiago vive entre Washington DC, Nova York e Brasília.
Twitter: @ThiagoGdeAragao

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Thiago de Aragão

Geopolítica, China e BCs no centro das atenções em 2024

Após um ano de inflação alta e medidas monetárias rigorosas, prevêem-se mudanças importantes para o próximo ano

(Foto: Envato)
  • À medida que nos aproximamos de 2024, o cenário econômico global encontra-se em um ponto crítico
  • A América Latina passa por uma fase de mudança política substancial
  • Os EUA veem os DSTs como desproporcionalmente onerosos para suas empresas e ameaçam retaliar

À medida que nos aproximamos de 2024, o cenário econômico global encontra-se em um ponto crítico. Após um 2023 marcado por inflação elevada e aperto monetário severo, esperam-se mudanças significativas para o próximo ano.

América Latina

A América Latina passa por uma fase de mudança política substancial. Em 2024, várias eleições nacionais serão realizadas e espera-se uma pausa temporária na onda de protestos e de instabilidade que marcou anos recentes. Mesmo com essa pausa, o risco de retrocesso democrático e agitação social persistirá.

No geral, os bancos centrais da AL devem continuar afrouxando a política monetária de forma mais agressiva do que os bancos das economias desenvolvidas. Isso deve dar algum suporte ao crescimento do Produto interno bruto regional (PIB). No entanto, as políticas monetárias restritivas nas economias desenvolvidas continuarão impactando a região, principalmente ao frear a demanda em mercados importantes de exportação.

O Chile, o Brasil e, potencialmente, o Peru poderão ser os países que demonstrarão uma flexibilidade maior em suas políticas monetárias.

O México, em particular, deverá beneficiar-se da tendência de nearshoring (forma de conduzir a gestão de uma empresa baseada em parcerias), à medida que as empresas procurarão realocar cadeias de suprimentos mais próximas dos Estados Unidos. Essa realocação, impulsionada principalmente por preocupações geoeconômicas dos EUA, deverá beneficiar outros países da região, como Panamá e Costa Rica.

A América Latina, rica em minerais críticos, desempenhará um papel crucial na cadeia global de suprimentos necessários para a transição para a energia verde. Investimentos significativos são esperados no desenvolvimento desses recursos, embora a incerteza política e um ambiente de negócios desafiador possam limitar o potencial desses investimentos.

O fenômeno climático El Niño representa um risco significativo para a região em 2024. Espera-se que aumentem os níveis de precipitação em algumas partes e agravem-se as condições de seca em outras, impactando a produção agrícola, a geração de energia hidrelétrica e o transporte baseado em rios e canais. Assim, olhando para 2024, a América Latina enfrenta um panorama misto. Enquanto oportunidades de investimento surgem, especialmente em setores como nearshoring e desenvolvimento de minerais críticos, os riscos políticos e climáticos continuam a ser uma preocupação.

Estados Unidos

Em 2023, a economia dos EUA demonstrou resiliência, impulsionada pelo consumo e pela depleção das economias acumuladas durante a pandemia. Prevê-se que a inflação caia para 2% em 2024, possibilitando ao Federal Reserve (Fed) a redução das taxas de juros.

A criação de empregos permaneceu forte e a inflação do aluguel desacelerou, sinalizando uma tendência decrescente na inflação geral. Espera-se que as altas taxas de juros de 2023 continuem afetando o mercado imobiliário nos EUA.

Por outro lado, o investimento na indústria deve permanecer resiliente, auxiliado por grandes programas públicos (como o IRA, por exemplo). A decisão do Canadá de implementar seu próprio DST (imposto de serviços digitais) a partir de 2024, recusando-se a aderir a uma moratória internacional da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento (OCDE), está criando tensões com os EUA.

Os EUA veem os DSTs como desproporcionalmente onerosos para suas empresas e ameaçam retaliar. Em caso de retaliação, o ambiente empresarial nos EUA (e no Canadá) sofrerão mais uma camada de incerteza, além das já existentes. Um confronto comercial entre EUA e Canadá poderia ter implicações de longo alcance, ameaçando a renovação futura do Acordo Estados Unidos-México-Canadá (USMCA).

No entanto, aguarda-se um acordo temporário para evitar a implementação imediata do DST, embora o problema possa ressurgir no final de 2024, dependendo do resultado das eleições nos EUA e do desenvolvimento de um tratado internacional coordenado pela OCDE para tributação de serviços digitais.

Para o próximo ano, destaca-se a possibilidade de uma revanche entre Joe Biden e Donald Trump nas eleições americanas. No entanto, há incertezas devido à baixa popularidade de ambos os candidatos e a desafios legais que precisarão ser enfrentados por Trump.
Isso mantém a possibilidade de “candidatos Plano B” em aberto, com destaque para os governadores Gavin Newsom e Glenn Youngkin.

Por mais que essa possibilidade ainda seja baixa, há intensas movimentações em Washington por parte de Democratas e Republicanos.
As eleições presidenciais serão cruciais para a política doméstica e internacional dos EUA. As visões contrastantes dos principais candidatos influenciarão políticas em relação à China, Oriente Médio e Ucrânia, bem como questões econômicas internas.

China e Ásia

A Ásia é esperada para contribuir com 60% do crescimento do PIB global em 2024, superando a média pré-pandemia. Isso reflete uma diminuição nas contribuições das economias da América do Norte e da Europa, bem como uma escala menor dos mercados emergentes da América Latina, Oriente Médio e África.

O Japão poderá abandonar o controle da curva de juros e as taxas de juros negativas, sinalizando uma mudança na política monetária.

A China enfrentou um crescimento fraco em 2023, mas espera-se uma melhora em 2024, apesar da persistente crise imobiliária. A Moody’s abalou os ânimos, revisando para baixo as classificações de 44 empresas-chave, somando-se às ansiedades provocadas pelo rebaixamento soberano da China.

Gigantes do comércio eletrônico, bancos e até titãs das telecomunicações sentiram o golpe, lançando dúvidas sobre a posição fiscal e econômica do país. Podemos identificar duas ameaças abrangentes: a prolongada recessão imobiliária e o ambiente inflacionário lento. O setor imobiliário, outrora um colosso, enfrenta um doloroso ciclo de queda, impactando o PIB geral.

A inflação, por outro lado, adiciona uma camada de complexidade, prejudicando o sentimento do consumidor e a atividade empresarial privada. Esse ambiente de pessimismo pode mudar de um dia para o outro. Alguns IPOs bem sucedidos podem trazer mais vigor ao mercado financeiro chinês. Além disso, ações do governo, como pacotes de estímulos fiscais mais robustos, podem melhorar o ambiente de curto e médio prazo na China.

A economia chinesa, apesar de desacelerada, continuará a ser um importante motor de crescimento, contribuindo com dois pontos percentuais para o crescimento regional. Por outro lado, a Índia, o Sudeste Asiático e mercados emergentes menores, como Bangladesh, Indonésia, Vietnã, Malásia e Filipinas, são projetados para crescer mais rapidamente a médio prazo.

A região enfrentará desafios significativos, incluindo tensões geopolíticas, políticas monetárias e fiscais mais apertadas, que atuarão como impedimentos para uma expansão mais rápida. Eleições em economias estrategicamente importantes, como Índia, Indonésia e Taiwan, também serão foco de atenção.

Europa e Reino Unido

A Europa e o Reino Unido enfrentam a possibilidade de recessão, com inflação persistente impedindo o alívio monetário. O Reino Unido sofreu com a estagflação, enquanto a Zona do Euro lidou com taxas de juros crescentes e fraqueza nas exportações. A previsão de crescimento do PIB real para a Europa em 2024 é de modestos 1,1%, apenas ligeiramente superior a 2023.

Isso se deve à inflação ainda elevada e às taxas de juros, embora uma melhoria seja esperada no segundo semestre do ano. A demanda doméstica será apoiada por um retorno ao crescimento real dos salários e mercados de trabalho ainda apertados, bem como por investimentos substanciais financiados pela UE. A desaceleração do crescimento global e a demanda dos EUA e da China, principais parceiros comerciais da Europa, limitarão um crescimento econômico mais robusto.

Alemanha e as economias do leste europeu que fazem parte de sua cadeia de suprimentos industrial terão uma recuperação modesta em 2024, beneficiadas por condições de mercado de energia mais favoráveis após um desempenho fraco em 2023. Os esforços para descarbonizar o fornecimento de energia da Europa serão acelerados, com muitos países inaugurando projetos de energia renovável, impulsionados pelos incentivos combinados de segurança energética e descarbonização.

O consumo de carvão continuará a cair em 2024, com o Reino Unido e a França eliminando usinas a carvão, contribuindo para uma queda nas emissões de carbono da região. No entanto, as reformas para tornar os custos de energia competitivos permanecerão como uma preocupação política.

Os preços do gás europeu diminuirão em 2024, mas permanecerão acima dos níveis pré-pandemia, mantendo a produção de commodities (produtos básicos globais não industrializados) intensivas em energia excessivamente cara para muitas empresas. Isso representa problemas particulares para a competitividade do grande setor manufatureiro da Alemanha.

A sustentabilidade da dívida voltou a ser uma preocupação central, especialmente em países com perspectivas de crescimento fraco, altos níveis de dívida e poucos planos para consolidar suas finanças públicas, como a Itália. O serviço da dívida absorverá partes maiores dos orçamentos governamentais do que absorveu nos anos anteriores, reduzindo o espaço fiscal para investimentos mais produtivos. Em resposta a novos desafios de segurança e metas de transição verde, governos precisarão encontrar novas fontes de receita para financiar prioridades políticas, como a defesa.

Guerra na Ucrânia

Apesar das enormes perdas da Rússia, a maioria dos cidadãos russos ainda apoia a invasão. Muitos russos confiam em seu exército, acreditando que vencerão a guerra, e a maioria aprova o governo. Putin continua com alta aprovação, o que indica que manterá o curso, enquanto se prepara para as eleições presidenciais em março, nas quais será declarado vencedor em uma eleição potencialmente repleta de dúvidas.

Em seu discurso de vitória, Putin afirmará que a Rússia continuará a desafiar o Ocidente e manifestará sua determinação em vencer a guerra na Ucrânia. A obsessão de Putin terá um alto custo, com milhares de mortes na guerra fracassada e a possibilidade de uma segunda mobilização forçada na primavera.

Apesar das catástrofes adicionais, a opinião pública russa sobre a guerra não mudará, e o governo se preparará para uma “guerra longa na Ucrânia”, esperando que a comunidade internacional se canse da invasão. Os ucranianos, por outro lado, continuarão defendendo seu país. Após dois anos de guerra, 95% dos ucranianos seguem confiantes em seu exército, sendo que a maioria esmagadora da população apoia o presidente Volodymyr Zelensky e acredita na vitória.

As forças ucranianas continuarão trabalhando para expulsar os russos do sul e do leste, tentando dividir as tropas inimigas nessas regiões, o que prejudicaria a logística e a movimentação de equipamentos russos. Os ucranianos também planejam usar artilharia de longo alcance para destruir depósitos de munição e fábricas na Rússia, visando uma ofensiva na Crimeia, no verão.

O eventual sucesso do exército ucraniano dependerá quase que exclusivamente da continuação da ajuda ocidental. As armas ocidentais têm sido fundamentais para os ucranianos superarem as tropas russas, contribuindo para a libertação do norte da Ucrânia. No entanto, a ajuda futura do Ocidente pode estar em risco, com atrasos na assistência dos EUA até janeiro de 2024, o que pode desacelerar o progresso ucraniano no campo de batalha e permitir que a Rússia fortaleça suas posições.

Enquanto os EUA hesitam em fornecer assistência futura, a União Europeia parece determinada a ajudar a Ucrânia. Durante uma reunião da Comissão Europeia, oficiais da UE afirmaram que continuarão a apoiar firmemente a Ucrânia, trabalhando para resolver complicações no fornecimento de ajuda futura.

Há razões para um otimismo cauteloso sobre o sucesso da Ucrânia em 2024. Avanços anteriores no campo de batalha convenceram americanos e europeus a fornecer equipamentos de defesa adicionais aos ucranianos. O uso dessas armas avançadas permitirá que os ucranianos expulsem os russos do sul do país, mas a libertação do leste da Ucrânia será mais complicada e pode se estender até 2025.
Tensões entre EUA e China

As tensões entre os Estados Unidos e a China continuam a se intensificar à medida que avançamos para 2024. As cúpulas do G20, em Bali, em 2022, e da APEC, em2023, não conseguiram reduzir as tensões ou promover a cooperação entre as duas potências. As cúpulas não foram projetadas para mitigar a competição ou buscar compromissos em questões críticas, como Taiwan, comércio ou tecnologia.

A administração Biden enfatizou a importância de manter os canais de comunicação abertos, mas não apresentou propostas concretas para reduzir o conflito. Isso sugere que o objetivo dos EUA é manter o diálogo, em vez de alcançar uma cooperação efetiva. A competição crescente entre EUA e China não é resultado de mal-entendidos ou falta de diálogo.

Ambos os países têm objetivos nacionais claros e desenvolveram políticas para alcançá-los, muitas vezes em oposição direta aos interesses do outro. Esse conflito reflete um embate de interesses entre grandes potências. A China tem usado sua crescente capacidade econômica e militar para desafiar o domínio dos EUA no Leste Asiático.

Iniciativas como o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB) e a iniciativa Belt and Road (BRI) refletem a oposição da China à hegemonia dos EUA na ordem global e seu desejo de aumentar sua influência econômica global.

A política dos EUA reflete a determinação de resistir ao aumento das capacidades da China e às implicações correspondentes para o equilíbrio de poder na região mantendo sua liderança. Isso inclui manter tarifas sobre exportações chinesas e restringir a cooperação tecnológica para evitar desafios à superioridade militar americana.

O aumento da presença militar e econômica chinesa na região exige que os poderes locais acomodem os interesses de segurança chineses, muitas vezes em detrimento da segurança dos EUA no Leste Asiático. Os EUA, por sua vez, têm fortalecido a cooperação de segurança com parceiros regionais como Coreia do Sul e Filipinas.

Após a cúpula da APEC, ambas as nações continuaram a reforçar suas políticas para manter o conflito de interesses. Isso inclui exercícios militares próximos a Taiwan, pela China, e operações de “liberdade de navegação” pelos EUA. O aumento da competição e tensão entre EUA e China reflete o conflito de interesses entre uma potência em ascensão, determinada a fortalecer sua segurança e voz nos assuntos mundiais, e uma potência em declínio, determinada a manter seu papel dominante.

Este conflito vai além de simples moderação de políticas por qualquer país; é um embate sobre capacidades relativas e equilíbrio de poder. Enquanto persistir a transição de poder entre EUA e China, a competição pelo equilíbrio de poder continuará. Por fim, as tensões geopolíticas, particularmente a guerra na Ucrânia e a crescente competição entre EUA e China, continuarão a ser uma fonte significativa de incerteza em 2024.

As eleições nos EUA poderão ser um ponto de inflexão, influenciando a trajetória geopolítica. Os desenvolvimentos no Oriente Médio também podem afetar a política externa dos EUA, do Brasil e de vários outros países por conta da pressão que coloca no preço do petróleo.
A possibilidade de uma escalada no conflito entre Israel e Hamas é uma preocupação para a comunidade internacional, pois um embate entre Israel e Irã desencadearia um perigoso efeito dominó.

Os EUA buscarão em 2024 equilibrar seus interesses no Oriente Médio com sua necessidade de se concentrar na China. A capacidade dos EUA de expandir sua presença militar no Indo-Pacífico pode ser limitada por pressões de curto prazo, como o apoio à segurança israelense ou europeia.

As economias globais enfrentarão um cenário misto em 2024. A desaceleração da inflação e a possível redução das taxas de juros pelos bancos centrais devem oferecer um alívio. No entanto, as tensões geopolíticas e os riscos de recessão em áreas-chave permanecem como desafios significativos.