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- Antes de buscar solucionar os problemas do mundo, gerar harmonia com amigos e inimigos, a verdadeira demonstração de poder do Brasil estaria aqui mesmo, no continente latino-americano, entre compadres e rivais
- A Argentina de Milei representa um teste novo para o governo Lula. Pela primeira vez, um dos nossos três principais parceiros comerciais será presidido por um político abertamente contra e rival do presidente brasileiro
O governo brasileiro, que em inúmeras circunstâncias se proclamou o grande líder da América do Sul, se vê emparedado ao norte, com o inconveniente amigo Nicolás Maduro, e, ao sul, com o conveniente antagonista Javier Milei.
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Os acontecimentos das últimas semanas no continente mostraram ao governo brasileiro que não precisa ir longe (Europa, Oriente Médio ou Mar do Sul da China) para ter relevância internacional.
Antes de buscar solucionar os problemas do mundo, gerar harmonia com amigos e inimigos, a verdadeira demonstração de poder do Brasil estaria aqui mesmo, no continente latino-americano, entre compadres e rivais. As ambições venezuelanas em relação à Guiana não são novas. Na verdade, vêm desde 1899, quando a Venezuela assinou um acordo reconhecendo as fronteiras e, anos depois, se arrependeu.
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Hugo Chávez, em uma de suas aventuras mentais, adicionou uma estrela à bandeira venezuelana representando o estado da Guiana Essequibo. O momento é extremamente conveniente para Maduro revisitar esse tema. Situação econômica caótica, credores (Rússia, China) cada vez mais impacientes, amigos (Irã, Cuba) cada vez mais necessitados e, pela primeira vez em muitos anos, uma oposição minimamente organizada que, na figura de Maria Corina, pode ganhar a eleição.
Ganhar é modo de dizer. O sistema judicial venezuelano consegue ser mais dúbio e atrasado do que o sistema arbitral da CBF. Mesmo assim, ainda são capazes de manipular uma eleição. Para Corina ganhar, é necessário se sair muito melhor do que se sairia hoje.
Nesse cenário, Maduro se inspirou em uma saída pouco usual e já testada antes: a la Leopoldo Galtieri, general argentino que, no meio do caos instalado em seu país, decidiu invadir as Malvinas como uma espécie de fuga existencial dos problemas do cotidiano. Só não contou com uma Margaret Thatcher, que também precisava de um episódio externo para aliviar sua relação com os mineiros britânicos.
Invadir ou ameaçar invadir a Guiana é o berro do desesperado. É aquela última olhada na geladeira vazia, onde as ideias sensatas já acabaram ou estão em potes expirados no fundo da prateleira. A ideia de invadir a Guiana gera (potencialmente) um ambiente nacionalista/patriótico, uma sequência de novas matérias jornalísticas domésticas e externas, onde não se fala de Corina ou dos fiascos do governo Maduro.
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Além disso, gera a escusa perfeita para adiar a decisão de uma data para as eleições presidenciais. Ou seja, trata-se de uma bela cortina de fumaça. Se Maduro estivesse convencido de que deveria invadir, ele já teria invadido e não realizado referendo, programa de televisão etc. A ideia da invasão ainda é melhor do que a invasão em si. No entanto, a Guiana não é famosa por sua capacidade militar.
Caso isso ocorra, a Venezuela passearia sem dificuldades. O grande problema para Maduro é uma pedra enorme no caminho chamada Exxon. A Exxon tem na Guiana seu maior investimento estrangeiro no mundo. Uma Venezuela que se coloca no caminho é um país que terá de lidar com os EUA.
Tudo bem que os EUA não assustam hoje como no passado, afinal, a Venezuela já está sob sanções. O que é uma chuva para quem está molhado? Já o Brasil precisa ser tão enfático quanto foi no início da guerra da Ucrânia. Lula deixou bem claro, várias vezes, que se sentasse com Putin e Zelensky em um bar sairia dali com uma solução.
Bem, Venezuela versus Guiana pode não ter a magnitude que a guerra europeia tem, mas já é uma excepcional oportunidade para Lula ligar para Maduro e dizer: “Companheiro, deixa de bobagem, guarda seus brinquedos e esquece esse assunto”. Se ao norte o Brasil ainda está tentando compreender como pode ajudar sem abalar a amizade, a posse de Milei e o futuro das relações entre Brasil e Argentina estão em xeque.
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Justiça seja feita: foi Milei quem colocou um grande ponto de interrogação na cabeça dos brasileiros a respeito da continuidade ou não das relações. No momento, não há muito o que fazer pelo lado brasileiro, mas a viagem da inteligente Diana Mondino, provável chanceler argentina, ao Brasil, mostra que se as picuinhas ficarem de lado a relação comercial com nosso terceiro maior parceiro seguirá funcionando bem.
A Argentina de Milei representa um teste novo para o governo Lula. Pela primeira vez, um dos nossos três principais parceiros comerciais será presidido por um político abertamente contra e rival do presidente brasileiro. Nesse caso, o profissionalismo e o pragmatismo serão colocados em teste, principalmente pelo lado de Lula.
Milei ainda buscará entender seu papel na região ao longo dos próximos meses e, certamente, perceberá que não vale a pena brigar com o Brasil (assim como já percebeu que não vale a pena brigar com a China).
Já Lula precisará demonstrar o pragmatismo exigido para manter as relações comerciais funcionando. Na prática, tanto no norte com a Venezuela, quanto no sul com a Argentina, o governo brasileiro precisará de doses distintas do mesmo medicamento: pragmatismo e eficiência.
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