O tempo em que a Bolsa falava (muito) alto — e com gestos: as incríveis histórias de 110 anos do pregão viva-voz
Antes dos cliques e algoritmos, o mercado se movia aos berros, sinais e papéis. A exposição “Ecos da Memória” revive histórias e personagens do período em que o barulho dominava pregões
Pregão viva-voz da BM&F em 2004. Foto: Nilton Fukuda/Estadão
Por mais de cem anos, as negociações na Bolsa de Valores brasileira ocorriam presencialmente, conduzidas por operadores que seguiam uma coreografia quase frenética e uma linguagem própria. O pregão viva-voz, com seu burburinho inconfundível, era o coração pulsante do mercado, e quem participou dessa história carrega até hoje as lembranças dos velhos tempos.
Em homenagem, o Museu da Bolsa do Brasil (MUB3) iniciou em outubro a exposição “Ecos da Memória: 110 anos de pregão viva-voz”, que traz imagens históricas e busca percorrer o legado, entender o presente e vislumbrar o futuro do mercado de capitais. A visitação é gratuita e vai até 29 de dezembro, no espaço de mostras temporárias do MUB3, no centro histórico de São Paulo.
Em setembro de 2025, completaram-se 20 anos do fim do pregão viva-voz da Bovespa. Já na Bolsa de Mercadorias e Futuros (BM&F), o tradicional ritual de gestos e vozes resistiu por mais tempo, encerrando-se apenas em junho de 2009.
Segundo a B3, com a digitalização total do mercado, o número médio diário de negociações na Bolsa passou a ser de 8,4 milhões, com pico de 18 milhões em um único dia. Antes, quando o pregão viva-voz era realizado presencialmente, a quantidade de operações diárias era de 10 a 15 mil. Hoje, em um piscar de olhos – cerca de 100 mil microssegundos –, são processadas 285 operações.
O dia a dia no pregão viva-voz
No aparente caos, os operadores seguiam instruções de suas corretoras e gritavam – ou melhor, apregoavam, como preferem dizer – ordens de compra e venda.
Na Bovespa, havia rodas de negociação por ação. Já na BM&F, as que dominavam eram as de dólar, juros, índices e commodities. Os operadores dizem que, no início, o pregão lembrava um “baile funk”, com rodas móveis conforme o clima do mercado. Depois, surgiram os pits, áreas fixas com pequenas arquibancadas.
Pequena escultura simulando o ambiente de negociações da Bolsa. Foto: Roney Albert/Acervo pessoal
Na lista de funcionários do pregão, existiam os auxiliares, que ajudavam os operadores. Os funcionários da Bolsa, por sua vez, eram os “juízes”. Eles acompanhavam as negociações para garantir que elas fossem justas e realizadas nos preços corretos.
Em 2003, Alisson Correia, analista de investimentos e co-fundador da Top Gain e da Dom Investimentos, então com 17 anos, distribuía currículos em agências do centro de São Paulo até que foi chamado para entrevista em uma corretora. Ele passou, começou como auxiliar de mesa e depois desceu ao pregão viva-voz com apenas 18 anos de idade.
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Logo aprendeu o linguajar típico do trabalho, e o que importava era economizar o máximo de tempo possível. Quando um negócio era fechado, os operadores preferiam usar a abreviação “tchado”. Os preços também não eram lidos de forma completa. Pelo contrário: os profissionais preferiam falar apenas os últimos algarismos. A seguir, Correia detalha, em vídeo, como funcionava essa linguagem:
Em um ambiente de alto ruído e grande movimentação, pequenos conflitos eram comuns. “Às vezes, você fechava um negócio e o outro fingia que não tinha visto, porque sabia que o preço poderia subir e queria vender melhor. Era um jogo de esperteza e, quando alguém tentava levar vantagem, a confusão começava”, conta Correia.
As discussões, no entanto, raramente passavam das palavras e dos gestos. As brigas físicas eram exceção, já que podiam resultar em suspensão.
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Havia ainda uma sala de vídeo, algo parecido com o VAR (Árbitro Assistente de Vídeo, em português) do futebol de hoje. As gravações eram feitas em fitas cassete e, quando surgia uma dúvida sobre alguma negociação, o procedimento era rebobinar a fita até o horário da operação e checar o que tinha acontecido.
Amigos, amigos, negócios à parte
A estreia no pregão viva-voz de cada operador lembrava o início de uma jornada na faculdade. Correia comenta que os novatos passavam por diferentes trotes envolvendo as boletas de papel – cartões semelhantes aos bilhetes atuais da Mega-Sena, em que eram registradas as operações de compra e venda.
Boletas e telefone usado no pregão viva-voz. Foto: Roney Albert/Acervo pessoal
Segundo o analista, esse momento já funcionava como um teste para a pessoa entender se conseguiria enfrentar ou não os dias de pregão viva-voz. Além do ambiente agitado e da pressão, existia uma exposição muito grande, já que os operadores acompanhavam o desempenho uns dos outros.
Durante o trabalho, os funcionários se tratavam como contrapartes, afinal, estavam representando suas corretoras e queriam fechar os melhores negócios. Quando tudo terminava, porém, a amizade prevalecia.
Nilton Neves, diretor de centralidade no cliente da B3, começou sua trajetória na Bovespa no fim dos anos 2000. No início, atuava como “papagaio” – como eram chamados os auxiliares administrativos do pregão, que se revezavam entre preencher as boletas e atualizar os valores em um painel.
Ele lembra que havia momentos de crise em que as conversas praticamente desapareciam, com cada um concentrado em suas ordens e no ritmo frenético do mercado. Mas, assim que a tensão diminuía, o bom humor voltava a tomar conta. “Quem trabalhava lá gostava muito de estar ali”, recorda.
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Para Roney Albert, apelidado de Frajola, os colegas da época são quase uma segunda família. O contato entre os operadores segue até hoje, mantido por grupos de WhatsApp e churrascos mensais. Com quase 45 anos de experiência no mercado financeiro, Frajola começou na Bovespa em 1981 e permaneceu até 1987, quando migrou para a BM&F.
Roney Albert, o Frajola, com jaleco verde do pregão, que será doado à B3. Foto: Roney Albert/Acervo pessoal
A amizade entre os operadores virou até samba. Eles chegaram a criar um bloco carnavalesco conhecido como “Valores do Samba”, eternizado em fotografias que Albert mantém em seu acervo.
Imagem do bloco carnavalesco dos operadores do pregão. Foto: Roney Albert/Acervo pessoal
As memórias e os casos curiosos
O que não faltam são histórias curiosas dos tempos do pregão viva-voz. Frajola se recorda do dia em que sofreu uma torção no pé após a roda de negociação se movimentar e ele ficar prensado entre um balcão e outro colega. O episódio lhe rendeu quinze dias de afastamento.
E ele não foi o único a se machucar no trabalho. O economista Fabio Denardi relembra a vez em que a lapiseira de um operador atingiu o seu olho e machucou a retina. “O cliente que estava no telefone me disse para ir ao banheiro, jogar água no olho e voltar. Mas acabei precisando fazer uma cirurgia.”
Denardi começou como estagiário na mesa de operações e, em 1996, desceu para o pregão viva-voz. Ele fez tanto o curso de operador da Bovespa quanto o da BM&F, acumulando os dois crachás.
Com anos de trajetória no mercado, já chegou a ser capa do Estadão. Na edição de 5 de janeiro de 2006, ele aparecia aos gritos, em destaque, com um telefone em uma mão e uma boleta na outra. Até hoje, guarda o registro:
Telefone do pregão viva-voz e registro de Fabio Denardi no Estadão. Foto: Fabio Denardi/Acervo pessoal
Na capa, uma matéria destacava a euforia que fez o Ibovespa bater um recorde de então 35 mil pontos. Depois de 19 anos, o índice agora opera próximo ao nível dos 149 mil pontos, uma nova máxima histórica conquistada em 2025.
Fabio Denardi em capa do Estadão da edição de 5 de janeiro de 2006. Foto: Acervo/Estadão
No ambiente do pregão viva-voz, existia ainda uma outra figura: a do operador especial. Roberto Lombardi, trader e empresário, conseguiu o título em 1987 quando tinha 23 anos. Essa autorização era concedida pela Bolsa para que uma pessoa física pudesse operar por conta própria, sem estar ligada a nenhuma corretora.
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Na época, Lombardi trabalhava na área de marketing da Companhia Antarctica Paulista. Durante dois anos, manteve-se no cargo enquanto alugava o título de operador especial. Com o salário e a renda do aluguel, conseguiu pagar as parcelas do título, adquirido em leilão por US$ 20 mil na época.
Em 1989, saiu da empresa e passou a operar totalmente no pregão viva-voz. Já em 1992, fundou a corretora Interfloat, focada no atendimento de traders, que posteriormente vendeu para a XP em 2011.
Lombardi mantinha algumas superstições nos tempos de operador. “Quando eu entrava no pregão com uma gravata e me saía bem, procurava seguir com a mesma gravata todos os dias até a primeira perda. Algumas ficavam em condições muito precárias”, ri.
“Nós também operávamos para bancos internacionais. De repente, o pessoal lá fora começou a perder o contato, a ligação caía, e a gente aqui sem entender direito o que estava acontecendo”, lembra Frajola.
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Na Bovespa, as negociações foram encerradas mais cedo no dia. Já na BM&F, as operações seguiram. Denardi recorda que recebeu um pedido para ir à roda do ouro, ativo procurado em momentos de instabilidade. “A roda do metal era muito pequena, mas nesse dia ficou gigante.”
Pouco tempo depois da data, uma explosão causada por vazamento de gás na lanchonete do prédio da BM&F assustou os operadores, que ainda tinham viva na memória a lembrança do 11 de Setembro. “Foi um desespero. Todo mundo saiu correndo do edifício em direção à Praça Antônio Prado [região central de São Paulo]”, recorda Lombardi.
Os ânimos só se acalmaram quando o cozinheiro da lanchonete explicou o ocorrido e garantiu que não se tratava de um ataque.
O fim do pregão e de uma profissão
A transição para o pregão eletrônico foi gradual, com as duas modalidades convivendo antes do fim total do viva-voz. Neves, da B3, passou por treinamentos na época para se adaptar ao novo formato, o que facilitou sua transição. “No último dia na Bovespa, fizemos uma chuva de papéis, rasgando as boletas, para simbolizar o fim de uma era”, recorda.
Muitos operadores, porém, enfrentaram dificuldades para se recolocar em outras funções. Correia, da Top Gain, conta que passou por um período sabático antes de retornar ao mercado. Ao voltar, chegou a manter o som do pregão nos fones de ouvido, estranhando o silêncio do ambiente eletrônico.
“Foi o fim de uma categoria. A Bolsa tem seu lado glamouroso, mas também tem seu lado triste”, relata Correia.
Denardi, que lembra bem desse período desafiador, conseguiu retornar ao mercado, mas reconhece o impacto da mudança. “Tínhamos um conhecimento muito grande pelo barulho, pelas expressões. Quando você se depara com uma tela de computador, perde toda a essência”, afirma.
Frajola, por sua vez, ressalta a importância de os profissionais se manterem sempre atualizados – o que o ajudou a se adaptar ao pregão eletrônico. “Se quiser entrar no mercado, estude muito. Consegui virar a chave para o eletrônico graças ao estudo”, destaca.