- A onda coreana se espalhou pelo mundo de forma mais intensa após a crise financeira asiática de 1997, que atingiu em cheio a Coreia do Sul
- A “onda coreana”, que também se manifesta pelo K-Drama, seriados exibidos na televisão e na Internet, e, principalmente, pelo K-Pop, o pop coreano
- Por mais que “Parasita” tenha alçado o cinema coreano a um novo patamar, o produto cultural mais popular do país a nível internacional é, sem dúvida, o K-Pop
(Murilo Basso, Especial para o E-Investidor) – A noite do dia 9 de fevereiro de 2020 foi histórica. Pela primeira vez em 92 edições dos Academy Awards – ou, simplesmente, Oscars –, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas reconheceu como Melhor Filme uma produção estrangeira (não americana, melhor dizendo), no caso, o sul-coreano “Parasita”, que arrecadou mais de US$ 175 milhões em bilheteria mundial. No prêmio de Direção, Bong Joon-ho bateu ninguém menos que Martin Scorsese, seu ídolo. Além dessas, a produção abocanhou outras duas estatuetas: Melhor Roteiro Original e Melhor Filme Internacional, totalizando quatro, a maior vitória da 92ª edição do prêmio.
Os mais desavisados podem não ter entendido como a Coreia do Sul chegou lá. Faria mais sentido, afinal, um país com mais tradição cinematográfica conseguir tal feito, como a ocidental França. Foi, simplesmente, sorte? Ou seria mera coincidência o país lançar um filme com temática relativamente universal justamente num período em que a indústria de Hollywood clama por diversidade?
Não é que “Parasita” não seja uma obra-prima, muito pelo contrário. É um dos melhores longas produzidos em anos, talvez em décadas. Ocorre que o triunfo sul-coreano no Oscar de 2020 é fruto de um caminho que vem sendo traçado e calculado minuciosamente pelo país há mais de duas décadas e tem no cinema apenas um de seus expoentes. Trata-se da Hallyu, a “onda coreana”, que também se manifesta pelo K-Drama, seriados exibidos na televisão e na Internet, e, principalmente, pelo K-Pop, o pop coreano – quem não se lembra de “Gangnam Style”, o hit chiclete de Psy e primeiro vídeo a alcançar 1 bilhão de visualizações no YouTube?
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É preciso ter em mente que a onda coreana se trata de um grande investimento, tanto do governo da Coreia do Sul quanto da iniciativa privada. A nível governamental, a Hallyu tem apoio do KOCIS, Serviço de Cultura e Informação da Coreia, braço do Ministério da Cultura, Esporte e Turismo do país, e de diversos órgãos governamentais ligados a esse ministério, que apoiam a cultura coreana por meio da criação de incentivos, estímulos ao setor, participação na co-criação de conteúdos de divulgação e outras ações como eventos mundo afora. Atualmente, o KOCIS tem 32 centros culturais, localizados em diversos países. No Brasil, o Centro Cultural Coreano fica em São Paulo.
“A Hallyu é um empreendimento cultural da indústria e do governo sul-coreano, para a promoção e disseminação dos conceitos legais da cultura popular coreana e de diversos conteúdos produzidos pelo país. No início, no fim da década de 1990, essa onda se iniciou com a exportação de novelas coreanas – o que o Brasil já fez, exportou muita novela – para os demais países da Ásia. Em seguida, veio a criação de conteúdos ligados à música popular, denominado mais à frente como K-Pop, que foi bastante difundido, primeiro pelas produtoras musicais e depois com o apoio do governo de diversas
maneiras”, explica Hanna Kim, docente e pesquisadora do Núcleo de Estudos e Negócios Asiáticos da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).
A onda coreana se espalhou pelo mundo de forma mais intensa após a crise financeira asiática de 1997, que atingiu em cheio a Coreia do Sul e foi marcada especialmente pela desvalorização das moedas do Sudeste asiático, sendo a Hallyu integrante do movimento de recuperação econômica do país. Desde então, a Ásia assumiu outro papel na economia mundial. “Que a Ásia se tornou o centro dinâmico do sistema capitalista é algo quase consensual entre analistas de todo o mundo. A perda de poder econômico relativo dos EUA e da Europa está no centro de uma série de tensões que o mundo vem vivendo, num processo de reacomodação das potências e redefinição de seus papéis na ordem mundial”, lembra Arnaldo Francisco Cardoso, professor de Relações Internacionais e pesquisador da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
O investimento em cultura na Coréia do Sul remonta à década de 1970, quando foi criado o KOCIS, que atua em parceria com empresas do setor cultural. A Coréia do Sul percebeu que poderia utilizar a cultura como forma de influência ou para melhorar a imagem do país inspirada, especialmente, nos Estados Unidos, cujos grandes estúdios cinematográficos e gravadoras, junto de outras formas de negócio, foram um dos principais responsáveis por difundir o estilo de vida americano. “Nas relações internacionais, o conceito de soft power, cunhado por [cientista político] Joseph Nye é útil para explicar as políticas governamentais de incentivo à produção cultural de exportação, como a Hallyu. O soft power, em breves linhas, significa a capacidade de projetar positivamente a imagem do país a fim de que ele seja respeitado, admirado, copiado e, no limite, seguido. Isso se dá pela demonstração de exemplos positivos, como políticas públicas bem sucedidas ou a defesa de princípios e valores que em determinada época histórica são bem vistos, ou pela exportação de artefatos culturais de massa”, afirma o doutor em Ciência Política Gabriel Adam, professor nos cursos de Direito e Relações Internacionais na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).
Pode-se afirmar também que a redemocratização do país, em 1987, após 26 anos de ditadura, foi um ponto de virada. Com o fim da censura, a cultura sul-coreana se expandiu comercialmente e houve uma profissionalização do setor, bem como uma maior quantidade de conteúdo produzido. Em 1993, por exemplo, o filme “Jurassic Park: O Parque dos Dinossauros” alcançou bilheteria de, aproximadamente, US$ 1 bilhão. Isso acendeu um alerta na imprensa e governo sul-coreanos. Para chegar a faturamento aproximado, o país teria que exportar uma infinidade de carros. Percebeu-se, aí, que a indústria cultural tinha enorme potencial econômico e poderia ser transformada em um setor forte.
A potência do K-Pop
Por mais que “Parasita” tenha alçado o cinema coreano a um novo patamar, o produto cultural mais popular do país a nível internacional é, sem dúvida, o K-Pop. No ano passado, os grupos BTS, Stray Kids, EXO, Monsta X e NCT 127 foram considerados os principais do gênero, de acordo com classificação da rede social Tumblr.
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Em 2018, levantamento do Instituto Hyundai, centro de estudos sul-coreano, apontou que o BTS gera cerca de US$ 3,6 bilhões por ano à Coreia do Sul, vez que impulsiona o turismo – em 2017, aproximadamente 7% do número total de turistas no país teriam escolhido a Coreia do Sul como destino por conta do grupo – e uma série de exportações associadas, como roupas, cosméticos e produtos alimentares. O BTS é, portanto, um principal ativo econômico para o país.
“Esse fenômeno [K-Pop] foi construído. A linguagem usada busca atender aos gostos e às tendências do mercado global. A Hallyu também foi possível porque coincidiu com a popularização da Internet, que possibilitou o acesso e a compra desses produtos. O K-Pop e toda a cultura coreana de exportação vem sendo trabalhada há mais de 20 anos. Foi construída uma base muito forte de fãs, que são bastante assíduos e positivos em relação à Coreia do Sul, o que criou uma imagem positiva para tudo o que é ligado ao país. O fenômeno impulsiona a economia, o turismo e até a diplomacia”, pontua Kim, que lembra que a cooperação governamental foi pensada, justamente, para aumentar o soft power do país através dessa forma de atuação, com muito planejamento e investimento.
Em 21 de maio, a Big Hit Entertainment, empresa que gerencia a boy band K-Pop, entrou com um pedido de IPO na Korea Exchange, a bolsa de valores da Coréia do Sul. Os analistas afirmam que esse será um teste de apetite dos investidores em meio aos esforços globais para acabar com a pandemia do coronavírus. Embora não tenha publicado o tamanho da oferta pública de ações, a expectativa é que a Big Hit alcance um valor de mercado de até 2 trilhões de won (US$ 1,6 bilhão).
O trunfo do K-Pop foi unir elementos que já eram bem aceitos pela comunidade internacional. As canções têm muito do hip-hop norte-americano e também da música eletrônica. Os grupos também abusam das coreografias, que podem ser aprendidas por meio de plataformas como o YouTube. Ao mesmo tempo, atrela-se o estilo a situações específicas da Coreia, como os concursos de dança, e até a bairros e regiões do país, caso do Gangnam District de Psy, em Seul. Os fãs, portanto, não se contentam apenas em ouvir as canções, eles sentem vontade de vivenciar toda a cultura coreana.
Os grupos são formados por agências de talentos, sendo que os cantores passam por anos de preparação. São aulas de canto, dança e teatro. O visual também é trabalhado por meio das roupas, maquiagens e até por cirurgias plásticas. No K-Pop, a imagem é tão importante quanto a sonoridade. Nem tudo são flores, porém. Há denúncias de abuso e casos de suicídio de artistas, que sofreriam bullying e assédio por parte da mídia e do público por toda a carreira. O mercado, porém, segue inabalável.
A magnata do entretenimento
Apesar de o governo sul-coreano ser responsável por grande parcela do sucesso da cultura do país enquanto produto econômico, a iniciativa privada também faz a sua parte. Uma dessas empresas é o CJ Group, conglomerado de empresas de diversos setores, de alimentos a entretenimento e mídia, passando por companhias do setor farmacêutico, compras domésticas, logística e biotecnologia.
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Uma das pessoas-chave do grupo é Miky Lee, neta de Lee Byung-chul, fundador da Samsung. A empresária foi uma das responsáveis pelo financiamento de “Parasita” e discursou no Oscar junto com a equipe do longa, exaltando a cultura sul-coreana em sua fala. A CJ Entertainment foi a distribuidora do filme na Coreia do Sul.
Ao lado de seu irmão mais novo, Lee Jay-Hyun, Miky Lee está por trás de diversas séries de K-Drama e eventos de K-Pop, como o KCON. A ligação da magnata com a cultura remonta à década de 1990, quando a onda coreana ganhou força. Em 1995, ela investiu US$ 300 milhões para para que Steven Spielberg, Jeffrey Katzenberg e David Geffen conseguissem abrir a Dreamworks e garantiu os direitos de distribuição dos filmes da companhia na Ásia, excetuado o japão. Já em 1998, o CJ Group abriu a primeira rede de cinemas sul-coreana
Seria possível uma “onda brasileira”?
Como já lembrou Hanna Kim, o Brasil é um grande exportador de novelas. A atriz Lucélia Santos, de “A Escrava Isaura” (1976), por exemplo, tornou-se uma estrela na China, um dos quase 80 países a exibir a novela, e é querida e lembrada pelo povo chinês até hoje.
Em 2004, Lucélia chegou a integrar a comitiva do então presidente Lula em viagem oficial ao outro lado do planeta. Apesar da força das telenovelas brasileiras ao redor do mundo nas últimas décadas, elas se tratam de produtos da iniciativa privada. A nível governamental, com políticas públicas de incentivo, o professor Gabriel Adam não vislumbra possibilidade de o país produzir uma “onda brasileira”, similar ao fenômeno coreano, no futuro próximo.
“No atual governo isso seria impossível, pela falta de incentivo e pela confusão do [hoje extinto] Ministério da Cultura. Mas, excetuando o cenário atual, o governo do Brasil não tem histórico de fazer movimentos de exportação da cultura brasileira, talvez porque nunca demos a devida importância para ela, ou não a enxergamos como uma forma de projeção do país para além do Carnaval e do futebol. Nossos governos, com raras exceções, não viram potencial geoeconômico na cultura. E, ainda assim, qual cultura brasileira exportaríamos? O Brasil tem uma cultura muito rica e variada, logo é difícil definir uma única cultura brasileira”, pontua o pesquisador.
(Com informações da WP Bloomberg)
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