- A balança comercial brasileira está "no azul" graças à demanda internacional aquecida. Questões geopolíticas, como o conflito entre Rússia e Ucrânia, ajudam a puxar a procura por commodities brasileiras
- Os resultados positivos fazem lembrar do "milagrinho" brasileiro, período de crescimento econômico nos anos 2000. É possível que o País viva algo similar? O Estadão E-Investidor ouviu especialistas para entender esse cenário
Uma boa notícia no primeiro trimestre do Brasil: a balança comercial teve o mês de março com maior superávit da história. As exportações superaram importações em US$ 7,3 bilhões.
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O salto em relação ao mesmo período em 2021 foi de 19%, segundo o Ministério da Economia. Isso se deu em grande parte a uma recente alta das commodities no mercado internacional.
Mais que ajudar o País a diminuir o rombo nos cofres públicos e permitir investimentos, a novidade aponta para um fenômeno que tem uma boa dose de nostalgia: o “milagrinho” econômico dos anos 2000, que também teve a valorização de produtos básicos não industrializados como pano de fundo.
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Mas, afinal, o que seria preciso para voltarmos a um crescimento semelhante ao que ocorreu há quase 20 anos? Para responder a essa pergunta, é importante conhecer o cenário atual e identificar as características deste momento e do boom anterior.
Será que um novo “milagrinho” econômico é possível?
A alta das commodities foi importante para o boom da economia há 20 anos, mas não se tratou de um aspecto isolado. Para Hugo Carcanholo, professor de Economia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), o que se chama de “milagrinho” se refere também a um ciclo de crescimento econômico baseado na expansão do consumo das famílias.
O “milagrinho” econômico foi possível graças a dois modos de distribuição de renda: direta, por meio de programas sociais; e indireta, por conta da valorização real do salário-mínimo que ocorreu ao longo dos anos 2000.
Houve à época, portanto, uma conjunção de fatores benéficos. Com demanda externa e câmbio favorável, foi possível melhorar a qualidade de vida da população por meio do consumo, que, por sua vez, estimulou a indústria brasileira e permitiu novos investimentos do setor.
Com boa capacidade produtiva diante da demanda, não faltaram produtos, e a inflação se manteve em níveis seguros. Assim, foi possível bancar o aumento do salário mínimo sem atrapalhar os investimentos.
Crescimento pontual
Já o cenário atual, para o especialista, não é o mesmo. A começar pelo fenômeno de desindustrialização do País. Agora, as empresas estão sendo levadas a exportar em razão do conflito entre Rússia e Ucrânia, mas é provável que se trate de um ciclo bem específico.
“Não acredito que o Brasil consiga reviver algo assim nesta década. As empresas estão com pouca receita, os custos estão elevados e é difícil pensar em um aumento real do salário mínimo, que poderia redistribuir renda e promover o consumo sem comprometer a sobrevivência das empresas e dos próprios postos de trabalho”, ele observou.
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O professor lembra ainda que a queda do dólar, que se desvalorizou 14,9% diante do real no primeiro trimestre de 2022, ajuda a controlar a inflação e a operar a política monetária. Mas é provável que se trate de um fenômeno de curto prazo, algo como três ou quatro meses.
Por isso, Carcanholo avalia que o País não pode ficar dependente do setor agropecuário: “O Brasil precisa se reindustrializar e diversificar a pauta de exportação, com mais tecnologia e mais postos de trabalho qualificados com boa remuneração”, concluiu.
O atual cenário econômico é crítico
Basta ligar a televisão para dar de cara com a inflação, um dos fantasmas deste ano. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o índice acumulado dos últimos 12 meses é de 11,3%.
Quando se toca no assunto, logo vem à mente a causa mais conhecida do problema: a população consome em um ritmo tão acelerado que a indústria não dá conta de abastecer a demanda. Isso levaria, então, ao aumento de preços causado pela escassez na oferta.
Mas não é esse exatamente o cenário, a julgar pelos 13,9 milhões de desempregados contabilizados pelo IBGE e pelo crescimento do endividamento das famílias brasileiras. Segundo a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), 77,5% delas têm dívidas — percentual 10% maior do que em março do ano passado.
Para Caio Mastrodomênico, analista econômico e Chief Executive Officer (CEO) da Vallus Capital, existe uma segunda causa inflacionária que também se aplica ao cenário brasileiro: o comprometimento da cadeia produtiva, seja por elevado custo de produção, seja por falta de insumos.
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“É preciso ao mesmo tempo frear o consumo final e incentivar o aumento da produção nacional, equilibrando a economia”, ele argumentou.
Por essa característica, o aumento da taxa básica de juros pelo Comitê de Política Monetária do Banco Central (Copom) pode ter um efeito rebote.
Ao mesmo tempo que isso é necessário para diminuir o consumo, pode-se criar uma bola de neve ao desincentivar a produção e afetar ainda mais a oferta de produtos no mercado.
Vale lembrar que a pandemia paralisou a produção mundial no início de 2020 e afetou a oferta de matérias-primas, impactando setores da indústria brasileira, como o da construção civil.
Com a retomada da economia em 2021, o Brasil viveu uma fuga de itens produzidos internamente por conta da desvalorização do real: para os produtores locais, era mais vantajoso vender em dólar.
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O exemplo mais dramático dessa dinâmica ocorreu com os combustíveis. Por causa da política de preços da Petróleo Brasileiro S.A. (Petrobras), os brasileiros pagaram a conta de um arranjo explosivo: preço local pareado com o internacional, câmbio convidativo para exportação, aumento do etanol por conta da demanda acrescida e perda do poder de compra diante da inflação, por sua vez, retroalimentada pela alta percebida nos postos de gasolina.
Em outras palavras, diante desse momento crítico, já dá para prever que outro “milagrinho” brasileiro não virá tão cedo.
Fonte: EBC; Hugo Carcanholo, professor de Economia da Universidade Federal do Paraná (UFPR); Caio Mastrodomênico, analista econômico e CEO da Vallus Capital.