Publicidade

Educação Financeira

Cashback da reforma tributária é inconstitucional? Entenda debate jurídico sobre o benefício

Compensação tributária para a população de baixa renda levantou discussões juridicamente por conflitar com pontos da Constituição

Cashback da reforma tributária é inconstitucional? Entenda debate jurídico sobre o benefício
Reforma Tributária: cashback. Foto: Adobe Stock
  • A reforma tributária trouxe como compensação aos tributos às famílias de baixa renda o cashback
  • O mecanismo é visto como um benefício imediato para essas pessoas e ainda ajuda o governo a ter controle sobre o orçamento
  • Alguns tributaristas destacam que o mecanismo pode ser judicializado no STF por conflitar com pontos da Constituição Federal

A reforma tributária tem promovido mudanças em relação aos impostos dos brasileiros, mas também tem buscado alternativas para a população de baixa renda. O principal deles é o cashback, que irá devolver parte dos valores pagos em tributos. Embora a medida seja vista com bons olhos por ser um mecanismo que visa reduzir os impactos sobre essas pessoas, alguns especialistas no campo do Direito alertam para a inconstitucionalidade do benefício.

Conforme o projeto de lei aprovado na semana passada na Câmara dos Deputados, o cashback da reforma tributária vai atender famílias necessitadas com renda per capita de até meio salário mínimo — isto é, R$ 706 considerando a data de hoje. Para ter acesso ao benefício, é necessário estar inscrito no Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico) do governo federal, programa que reúne dados de famílias em situação de vulnerabilidade social. Além disso, conforme a legislação de cada ente federativo terá autonomia para definir alíquotas diferenciadas para o cashback de impostos.

Na visão do tributarista Sergio Villanova, do Buttini Moraes Advogados, dois agentes serão beneficiados com o cashback: a população de baixa renda e também o governo. No caso da população, para ele a devolução em dinheiro de parte dos tributos da Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS) e do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) é melhor do que uma alíquota zero. “As famílias que realmente têm um baixo poder aquisitivo serão atendidas e ter esse valor em mãos é mais fácil de entender o benefício do que uma redução da base de cálculo da alíquota.”

Em relação ao governo, embora os cofres públicos deixem de arrecadar essa parcela que será devolvida, Villanova aponta que será mais fácil haver um controle orçamentário sobre a medida. “Quando há uma isenção na base de cálculo para bens essenciais (cesta básica), não há um controle sobre esse ‘gasto’ em termos de receita. Fica difícil mensurar o quanto a população carente está de fato sendo beneficiada. O cashback, mesmo tirando da arrecadação pública, garante esse controle e pode ser quantificado para ser previsto nos orçamentos futuros”, explica.

Cashback da reforma tributária é inconstitucional?

Embora todos os especialistas ouvidos pelo E-Investidor tenham pontuado a importância de um mecanismo compensatório à população de baixa renda diante das mudanças que a reforma tributária está promovendo, alguns apontaram uma possível inconstitucionalidade desse mecanismo. Cassiano Menke, advogado tributarista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), explica que a premissa desse benefício é atender famílias que não tenham o mínimo vital para sobreviver e por isso elas não têm capacidade contributiva [princípio jurídico que considera um valor mínimo para assegurar a equidade tributária].

“Quando uma pessoa não tem condições financeiras, porque é reconhecidamente de baixa renda, fica isenta do Imposto de Renda (IR) e do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU). Logo, ela também não deveria ser tributada pelo CBS e IBS”, diz Menke. Para ele, a tributação e a posterior devolução parcial ou integral do valor é uma “confissão” que o poder público vai cobrar esses impostos de maneira errada.

Publicidade

Conteúdos e análises exclusivas para ajudar você a investir. Faça seu cadastro na Ágora Investimentos

Outro ponto que o tributarista e professor salienta é o fato de que, na Constituição Federal de 1988, o salário mínimo foi instituído como o valor a ser considerado como mínimo vital. Veja o que diz o artigo 7, inciso 4, da carta magna:

  • Salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim.”

“Não deveria ser um cashback, mas um ‘cashavoid’ já que a incidência desses impostos nem deveria acontecer. Meio salário mínimo não garante o atendimento às necessidades vitais básicas — e quem diz isso é a Constituição”, pontua Menke.

Reforma tributária, cashback e o pacto federativo

O mesmo argumento é defendido pela advogada e professora em Direito Tributário Louise Lerina Fialho. “É louvável que a reforma tributária se preocupe em atenuar os efeitos da tributação sobre o consumo, a qual não leva em consideração a renda dos contribuintes. Todos sofrem a mesma carga tributária, independentemente da respectiva renda, o que é inconstitucional”, afirma.

Ela também faz uso do que a carta magna brasileira estabelece, destacando o que diz o artigo 145, parágrafo 1º, que diz:

  • Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.

“Defendo que deveria prevalecer o método de desoneração e não de devolução (cashback)”, diz Louise. Em um estudo acadêmico na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), no qual é mestranda, ela ainda pontuou que o mecanismo fere o pacto federativo.

“A ofensa fica clara no momento em que se verifica que a União, por meio de lei complementar, faz cortesia com ‘chapéu alheio’. Isto é, a União obriga estados e municípios a devolverem o IBS, desconsiderando a autonomia financeira dos entes federados”. Novamente usando como base a Constituição, a advogada cita que a lei veda que o governo federal conceda isenções de tributos de competência dos estados e municípios. “É o que se chama, tecnicamente, de vedação à isenção heterônoma.”

Cashback pode ser alvo de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI)

O projeto de lei da reforma tributária foi aprovado na Câmara dos Deputados na semana passada, mas ainda passará por votação no Senado até ir à sanção presidencial. É claro que, até lá, o texto pode ser alterado e, talvez, essas incongruências com a Constituição possam ser corrigidas. Se não, os especialistas acreditam que possa ocorrer a chamada Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) sobre o cashback — em parte ou integralmente.

Nesse caso, é o Supremo Tribunal Federal (STF) que deve avaliar se há fundamento constitucional ou não do mecanismo proposto pela reforma. E há precedência de situações como essa. Em 2004, o ex-ministro Celso de Mello reconheceu a vinculação entre o salário-mínimo e o mínimo existencial no julgamento da ADI nº 1.442/DF. Na decisão, o decano escreveu: “a insuficiência do valor correspondente ao salário mínimo, definido em importância que se revele incapaz de atender as necessidades vitais básicas do trabalhador e dos membros de sua família, configurará um claro descumprimento, ainda que parcial, da Constituição da República.”

Diante desse contexto, tanto Louise quanto Menk apontam que melhor do que o cashback seria a criação de uma limitação ao poder de tributar pela própria Constituição, como uma espécie de imunidade tributária. Assim, não haveria ofensa ao princípio da capacidade contributiva e nem mesmo ao pacto federativo. “Há países que utilizam tal modelo de desoneração, como o Uruguai. Neles, não há devolução, pois as famílias de baixa renda são integralmente desoneradas no momento da compra de bens ou no da contratação de serviços”, completa a professora de Direito Tributário.

Informe seu e-mail

Faça com que esse conteúdo ajude mais investidores. Compartilhe com os seus contatos