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
Uma empresa ou um fundo de investimento deveria se preocupar apenas em fazer dinheiro? Ou deveria se preocupar também com meio ambiente, justiça social e boa governança (ESG)?
Esses objetivos podem se sobrepor? Já coincidem? Essas dúvidas são centrais à chamada “materialidade dupla”. Ainda que o conceito tenha sido formulado em novas regulações europeias, ele ainda não avançou significativamente dentro dos Estados Unidos — enquanto titãs como JPMorgan Chase & Co. passam a adotá-lo. A questão é definir o tipo de informação que deve ser obrigatório relatar, e quem decide isso.
1. O que é materialidade?
No nível básico, é um princípio de contabilidade, referindo-se a algo que poderia surtir impacto sobre — sendo material para — a maneira como a empresa opera. Um risco material pode afetar metas ou objetivos — o que interessa especialmente os investidores.
No contexto ESG, isso é conhecido como materialidade singular e significa principalmente fatores ambientais, sociais e de governança que possam representar alguma ameaça ou oportunidade para uma empresa e sua receita. Isso não diz nada a respeito de quão “verdes“ as práticas empresariais dos negócios são, mas, em vez disso, quão vulneráveis seus ganhos podem ser em relação a riscos ESG.
2. O que é ‘materialidade dupla’?
É aí que entra o verde. “Materialidade dupla” soma os riscos que as atividades de uma empresa representam para o meio ambiente e a sociedade àqueles que potencialmente ela enfrenta internamente.
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A maneira que qualquer materialidade deveria ser aplicada ao relatório financeiro da empresa continua objeto de intenso debate. Por agora, os relatórios variam amplamente, dificultando para investidores comparar e tomar decisões informadas.
3. Quem está formulando diretrizes?
O Conselho Internacional de Padrões de Sustentabilidade (ISSB), lançado em 2021, na Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima de 2021, está tentando redigir uma cartilha global para reger relatórios ambientais e de sustentabilidade.
A entidade está sob os auspícios da IFRS Foundation, que desenvolveu os padrões de contabilidade usados atualmente em mais de 140 países. (Os EUA são uma exceção notável à IFRS, usando um padrão chamado GAAP (princípios de contabilidade geralmente aceitos).
Enquanto isso, o Conselho de Padrões de Contabilidade de Sustentabilidade (SASB), com base nos EUA, possui diretrizes para materialidades singulares — também chamadas “de fora para dentro” — que já são usadas por centenas de empresas.
Separadamente, a Iniciativa Global de Registro Contábil (GRI) fornece padrões “de dentro para fora” para relatórios de impacto das empresas sobre as pessoas e o planeta. Algumas empresas usam o SASB, outras a GRI, algumas usam ambos os padrões, e outras optam por algum dos muitos outros sistemas de relatório disponíveis atualmente.
4. Como vão as coisas?
O ISSB incorporou este ano os padrões do SASB em suas propostas iniciais, o que requererá das empresas que revelem o impacto material de riscos fora do contexto ESG sobre seus negócios.
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O grupo também indicou uma abertura para a materialidade dupla; um membro notou que investidores se importam com o impacto mais amplo de uma empresa em razão de “consequências indiretas” para o fluxo de capital da empresa.
É por isso que o ISSB está trabalhando para coordenar sua cartilha com as diretrizes da GRI, que é em parte financiada por governos. Alguns defensores da sustentabilidade e especialistas em contabilidade têm expressado preocupações, porém, a respeito da “conectividade” entre riscos internos e externos se perder se esses fatores não forem incorporados em um único padrão. O ISSB afirmou que planeja revisar as diretrizes enquanto busca completar sua padronização até o fim deste ano.
5. O que está acontecendo na Europa?
Quase uma década atrás, a União Europeia começou a exigir que as empresas revelem informações não financeiras em uma tentativa de torná-las mais responsáveis em relação a questões socioambientais.
Foi a primeira vez que exigências de relatórios incluíram o conceito da materialidade dupla. Mas grandes lapsos logo emergiram em relação a quantidade e qualidade das informações. Portanto, uma cartilha de regras redefinidas da UE passará a fazer exigências mais explícitas às empresas e exigirá que mais empresas atendam às diretrizes. Essa chamada Diretiva de Relatório de Sustentabilidade Corporativa entra em vigor em 2023.
6. E nos EUA?
Os EUA têm colocado o foco amplamente em melhorar a qualidade de relatórios sobre materialidade singular, por meio do trabalho do SASB. Por exemplo, propostas feitas este ano pela Comissão de Valores Mobiliários (SEC) também exigiriam que empresas listadas detalhem custos de eventos climáticos extremos e investimentos de capital destinados a reduzir suas emissões de gases-estufa. Uma autoridade da SEC afirmou em maio que o objetivo da agência é “alcançar a maior interoperabilidade” possível entre o que a SEC poderia exigir e as diretrizes básicas do ISSB.
7. Qual é o contexto?
Historicamente, relatórios corporativos colocavam foco no curto prazo e tocavam levemente questões ambientais e sociais. Mas as mudanças climáticas e as inquietações sociais decorrentes da pandemia de covid-19 tornaram essas questões mais difíceis de ignorar.
Isso levou a demandas por mais informações, já que um problema pequeno para empresas pode ser um problema enorme para comunidades nas quais elas operam — e podem se transformar em desafios maiores.
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Disponibilidade de água é com frequência citada como uma dessas questões. Nos EUA, algumas jurisdições governadas por republicanos começaram a penalizar bancos e gerentes de ativos que adotam qualquer tipo de relatório ESG, argumentando que isso é um exagero, por trazer políticas progressistas para decisões de investimento. Na outra ponta do debate, alguns ambientalistas e outros defensores de diretrizes ESG criticaram os atuais esforços por não fazer o suficiente para cortar emissões de gases estufa ou combater desigualdades.
8. Haverá um padrão global para ambas as formas de materialidade?
Não está claro, já que não há nenhum acordo quanto à necessidade de vincular ou não os requerimentos internos e externos de relatórios, nem a respeito de como fazê-lo. Por agora, o relatório GRI é voluntário.
Eventualmente, as regras do ISSB, apesar de também voluntárias, provavelmente serão usadas amplamente, da mesma maneira que os padrões internacionais de contabilidade. As operações na UE de empresas americanas como McDonald’s Corp. e General Motors Co. provavelmente terão de atender às regras europeias a respeito de materialidade dupla para operar nos 27 países do bloco. O JPMorgan afirmou em setembro que começará a oferecer aos clientes uma ferramenta de análise de dados que cobre materialidade dupla.
TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL