

O governo federal pretende proibir que beneficiários do Bolsa Família e do Benefício de Prestação Continuada (BPC) realizem apostas em plataformas online — as chamadas bets — em cumprimento a uma determinação do Supremo Tribunal Federal (STF). A medida foi antecipada pelo secretário de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda, Regis Dudena, em entrevista exclusiva ao Estadão.
A restrição poderá afetar cerca de 20 milhões de famílias e ainda passará por análise jurídica antes de ser formalizada por meio de portaria. Em 2023, o Banco Central identificou que cinco milhões de beneficiários do Bolsa Família transferiram R$ 3 bilhões via Pix para sites de apostas em apenas um mês.
Diante desses dados, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) decidiu rever as regras de acesso às apostas online — atividade legalizada durante o governo Michel Temer e regulamentada pela atual gestão. A decisão do STF determinou que o Executivo adotasse medidas para impedir o uso de recursos de programas assistenciais em jogos de azar na internet.
Inicialmente, o Ministério da Fazenda avaliou a possibilidade de bloquear o uso direto do benefício — e de instrumentos vinculados a ele, como o cartão do programa — nas plataformas. No entanto, técnicos da pasta consideraram a medida inviável do ponto de vista operacional. Com isso, a proposta agora visa proibir que os próprios beneficiários, identificados por Cadastro de Pessoa Física (CPF), realizem apostas, independentemente da origem dos recursos utilizados.
Entenda o contexto jurídico e a fundamentação da medida: o que você precisa saber
A proposta de restringir o acesso de beneficiários de programas sociais às apostas esportivas levanta debates jurídicos. Especialistas apontam que, embora haja espaço para discussões, a base legal da medida estaria amparada por decisão do STF, o que pode minimizar eventuais questionamentos.
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“O único desafio jurídico que poderia existir são discussões sobre a constitucionalidade. Mas toda essa discussão fica superada pelo fato de que as medidas que o governo está buscando ou estudando implementar são, na verdade, medidas que têm por objetivo cumprir a decisão do STF — o governo não tem poder de decisão aqui”, afirma Fabiano Jantalia, presidente da Comissão de Direito de Jogos e Apostas da OAB/DF.
Apesar disso, especialistas ressaltam que a segurança jurídica da medida dependerá do caminho escolhido pelo governo para implementá-la. A via legislativa é apontada como a mais sólida e democrática.
“Essa proibição seria mais adequada dentro de um debate legislativo com uma discussão ampla sobre a Lei nº 14.970, que regulamenta as apostas no Brasil. Seria necessário acrescentar uma proibição específica ou uma limitação no valor de apostas para beneficiários de auxílios sociais. Se a medida for adotada por portaria, ela tende a ter insegurança jurídica, por envolver direitos fundamentais dos apostadores. O ideal mesmo seria um debate legislativo”, complementa Filipe Senna, secretário-geral da Comissão de Direito de Jogos e Apostas da OAB/DF.
A ausência de uma base legal explícita reforça a complexidade do cenário, especialmente quando se considera a proteção de direitos fundamentais.
“Hoje nós não temos um respaldo expresso para que o governo possa legalmente impedir que os beneficiários apostem. Para uma restrição dessa natureza, em condições normais, seria necessária disposição expressa de lei colocando essas pessoas como impedidas. Durante a tramitação do projeto de lei das bets houve essa discussão, e uma das emendas buscava estabelecer essa restrição, mas o Congresso entendeu que não havia necessidade na época. Atualmente, o único respaldo do governo é a decisão do ministro do Supremo”, reforça Jantalia.
Existem ameaças à privacidade?
A aplicação prática da medida esbarra em questões técnicas e de privacidade de dados. Para que a restrição funcione, o governo precisaria compartilhar informações sensíveis dos beneficiários com as operadoras de apostas.
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“Caso a medida seja adotada, o Ministério da Fazenda teria de fornecer às operadoras um cadastro — o que coloca em cheque a privacidade de dados — para que a operadora de apostas adote uma medida de exclusão e restrição. Mas deve tomar cuidado, principalmente se o apostador tiver apostas em aberto ou crédito na plataforma. Todas as questões dentro da conta precisam ser encerradas ou devidamente reembolsadas ao apostador”, afirma Senna.
Alguns especialistas veem formas de contornar esses riscos, especialmente se houver consentimento expresso por parte dos usuários.
“Não me parece esbarrar em questões de privacidade se, por exemplo, houver um ato de consentimento — algo muito similar ao que ocorre quando você vai abrir uma conta bancária, em que, no ato da abertura, autoriza o banco a fazer pesquisas cadastrais, inclusive sobre outras operações de crédito”, observa Fabiano Jantalia.
Ainda assim, o equilíbrio entre fiscalização e proteção de dados deve ser tratado com cautela.
“Sem dúvida, há de ser uma preocupação constante o equilíbrio entre a fiscalização eficaz e a proteção da privacidade. Na teoria, não deveria haver esse risco, na medida em que os dados hão de ser cruzados única e exclusivamente no que diz respeito aos beneficiários de tais programas. Na prática, porém, esse risco existe, mas ele pode (e deve) ser mitigado com limites legais, critérios objetivos e garantias institucionais”, pondera Felipe Crisafulli, membro da Comissão de Direito de Jogos e Apostas da OAB/SP.
Como a medida impacta os beneficiários?
A medida também desperta discussões sobre os impactos sociais e éticos, principalmente por afetar um grupo socialmente vulnerável. A eficácia de uma punição aos beneficiários acaba sendo questionada.
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“Nós não temos ainda a indicação do que aconteceria, mas vejo muita dificuldade em aplicar penalidade aos beneficiários. Você estaria punindo justamente a pessoa que a lei ou portaria busca proteger”, ressalta Jantalia.
Além disso, há preocupações quanto à real efetividade da medida no combate ao vício em jogos e à promoção do jogo responsável.
“Primeiramente, a proibição de que beneficiários apostem é uma medida um pouco controversa e tem problemas quanto à efetividade no combate ao jogo compulsivo e à promoção do jogo responsável. Pode ferir direitos fundamentais dessas pessoas, como o direito à liberdade e ao entretenimento. Além disso, essa medida pode fomentar o mercado de bets ilegais, pois essas pessoas seriam proibidas de apostar nas plataformas autorizadas pelo Ministério da Fazenda”, aponta Filipe Senna.
A lógica por trás da limitação, no entanto, encontra respaldo em princípios de proteção social.
“O jogo responsável serve, de alguma forma, de fundamento ético-jurídico a esse tipo de limitação. Sua razão de existir é a preocupação de evitar que pessoas em situação de vulnerabilidade financeira, psicológica ou social tenham acesso às apostas. Nesse contexto, os beneficiários de programas sociais são talvez o melhor exemplo de vulneráveis que carecem de proteção — no caso, a proibição. Isso se alinha à decisão do Supremo Tribunal Federal”, reforça Felipe Crisafulli.
Limitações da fiscalização: até onde o governo pode ir?
A implementação da restrição na prática tornou-se uma das maiores incógnitas. Embora pareça viável no papel, a execução esbarra em limitações técnicas e burocráticas.
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“Como isso poderia funcionar na prática? Essa é uma resposta que apenas os órgãos governamentais conseguem dar. Na teoria, deveria ser viável; na prática, porém, o que temos, inclusive segundo já afirmou a Advocacia-Geral da União, é o contrário. Caberá ao Governo Federal promover mecanismos que permitam esse tipo de bloqueio ou ao Supremo modificar sua decisão. Até lá, temos uma decisão com eficácia e efetividade bastante duvidosas”, pondera Felipe Crisafulli.
Uma das soluções seria o uso de cadastros e cruzamento de dados entre sistemas.
“Os operadores e o governo podem trabalhar em conjunto em uma medida que utilize um cadastro, com o cruzamento de informações dos usuários das bets com os beneficiários do Bolsa Família. Esse CPF teria uma restrição na hora do cadastro”, afirma Gustavo Biglia, sócio do Ambiel Advogados.
Há também mecanismos já previstos na legislação brasileira que poderiam ser utilizados ou adaptados.
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“O que existe, na verdade, são dois mecanismos: o primeiro é impor às bets o dever de monitorar o comportamento dos apostadores, para identificar traços de miopatia ou volume excessivo de apostas; o segundo mecanismo é o da autoexclusão, previsto em nossa legislação, que permite ao apostador se afastar voluntariamente por 1 dia, 5 dias, ou definir limites máximos de perdas”, explica Fabiano Jantalia.
O que os especialistas recomendam para combater a proibição direta?
Como alternativa à proibição direta, alguns especialistas defendem soluções mais equilibradas, como restrições proporcionais ao valor da renda.
“A medida mais eficaz nesse momento seria restringir a utilização a um determinado percentual, seja pelo imposto de renda ou pelo benefício social”, sugere Biglia.
A adoção de mecanismos tecnológicos integrados e regulatórios pode ser uma saída eficiente e segura.
“Uma combinação de mecanismos tecnológicos, financeiros e regulatórios pode garantir mais transparência, responsabilidade social e prevenção de ilícitos. Por exemplo, a identificação e o KYC dos usuários, com dados reais e verificados, a integração com bases governamentais e o monitoramento de transações financeiras”, propõe Crisafulli.
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Entretanto, as limitações técnicas podem abrir espaço para fraudes, como o uso de “laranjas”.
“Por se tratar de um cenário que dificulta o equilíbrio entre as restrições legais, ferramentas eficazes e prevenção de fraudes, o uso de ‘laranjas’ pode ser uma consequência. A dificuldade técnica, no entanto, pode desestimular grande parte dos beneficiários. Os sistemas de identificação e validação dos apostadores já são obrigatórios por lei e talvez sejam a melhor — ou única — forma de tentar impedir esse tipo de prática”, conclui Felipe Crisafulli.
Postura do mercado e reação das bets
Do lado do mercado, a expectativa é de que as operadoras evitem confrontos com o governo, ao menos em um primeiro momento. O setor ainda está em fase inicial de regulação e teme sanções.
“Eu honestamente acho que nenhuma bet vai reagir quanto a esse ponto. Existe um temor muito grande, já que o mercado regulado começou agora em janeiro. As empresas têm receio de uma eventual fiscalização ou de perderem a licença. Por isso, é difícil imaginar uma judicialização do tema. Se houver contestação, deve partir de alguma entidade civil ou de interesse coletivo, já que a medida colide com a própria lei que institui o Bolsa Família”, analisa Gustavo Biglia.
Apesar do impacto potencial da medida, ainda não há dados concretos sobre o número de beneficiários que apostam regularmente.
“Quando você restringe o acesso de 50 milhões de pessoas às apostas, ainda não se sabe o impacto exato. Não conseguimos nem mensurar quantos beneficiários do Bolsa Família efetivamente jogam”, finaliza Biglia.