- A formalidade do casamento deixou de ser prioridade para alguns casais que decidiram dividir o mesmo teto
- O motivo da escolha varia de cada realidade. Alguns até enxergam o momento como um "test drive" para um matrimônio
- O problema surge quando a fase de teste chega ao fim e resulta em uma disputa judicial pela partilha de bens
O consenso de morar junto com o parceiro só após o casamento civil e religioso perdeu espaço entre as novas gerações de brasileiros. A decisão dos casais em compartilhar o mesmo teto continua, mas sem a formalidade que prevalecia há alguns anos. As razões para a escolha variam em cada caso, mas podem trazer implicações sobre a divisão de bens quando o relacionamento chega ao fim. Em alguns casos, o impasse pode resultar em uma briga judicial.
Fernanda Maia* (nome fictício) vive esse imbróglio. No fim do ano passado, ela entrou com três processos contra o ex-namorado após ele se recusar a dividir os bens que foram adquiridos durante o relacionamento. O primeiro corresponde ao reconhecimento da união estável. Já o segundo busca oficializar o divórcio dessa união para que ocorra a partilha dos bens, e o terceiro (e último) envolve a guarda da filha de 10 anos.
“O meu ex-companheiro argumenta que construiu tudo sozinho. Então, tudo que tínhamos foi fruto do esforço dele e, por isso, não tenho direito a nada. Mas, quando ele saía para trabalhar, eu ficava em casa cuidando da casa e da nossa filha”, diz Maia. Entre os bens que estão na disputa, está o imóvel onde funciona o salão de beleza em que ela trabalha.
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“Quando nos separamos, ele enviou uma ordem de despejo e disse que eu precisava tirar as minhas coisas e sair do local”, comenta a empreendedora. Como a divisão dos bens ainda não ocorreu, ela conseguiu dar continuidade às suas atividades até que haja a decisão final do juiz sobre o caso. Enquanto isso, ela busca colher mais provas para conseguir determinar a data do início da união estável e comprovar o valor total dos bens a que têm direito.
Já Rafaela Silveira* (nome fictício) enfrentou essa disputa no ano passado ao decidir se separar do companheiro com quem viveu por 15 anos. Nunca foi adepta ao casamento. Para ela, o que importa é a felicidade do casal, independentemente do status que viva. Apesar da escolha, não conseguiu ficar livre das consequências jurídicas de quem decidiu “morar junto” sem formalizar a união. Ela conta que precisou buscar assistência jurídica para conseguir entrar em um acordo na partilha dos bens com o ex-companheiro.
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“Tínhamos uma casa que foi construída quando estávamos juntos. Quando nos separamos, ele disse que a casa era minha”, diz Silveira. O problema surgiu quando ela decidiu transferir a propriedade do imóvel para o seu nome. A decisão era uma forma de se resguardar de qualquer mudança na decisão do ex-companheiro. “Eu confiei na palavra dele, mas a atual dele estava questionando o motivo de eu ter ficado na casa”, relembra.
O que era para ter sido uma simples conversa se tranformou em uma disputa que quase foi parar na Justiça. Isso porque o ex-companheiro de Silveira não aceitou a transferência da propriedade para o nome dela e voltou atrás na decisão sobre o imóvel. “Ele ficou exaltado e disse que não ia me dar nada. Foi nesse momento que busquei ajuda de advogados”, conta.
As negociações duraram cerca de um mês e foram finalizadas em novembro do ano passado por meio de um acordo extrajudicial quando o casal decidiu dividir ao meio a casa em que moravam. Ficou acordado que um lado do imóvel ficaria para Silveira, enquanto o outro ficaria para o ex-marido morar com a sua atual namorada. Um muro foi construído no meio da residência para delimitar o espaço do antigo casal.
“Não podemos viver na sociedade com medo de ninguém. Eles vão ter que me respeitar e eu vou ter que respeitar eles”, diz Silveira sobre a decisão.
O que fazer quando o casal não tem união estável?
A falta de consenso sobre o início da união costuma ser o grande ponto de embate entre os casais na Justiça. Sem a formalização do relacionamento, a definição da data torna-se essencial para que o poder judiciário consiga determinar quais são os bens que devem entrar na partilha durante o processo de separação. Nestes casos, a Justiça reconhece o relacionamento como uma união estável e o regime da comunhão parcial de bens será o modelo aplicado.
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Isso significa que todo o patrimônio dquirido durante esta união entra nesta divisão. “Às vezes, há um patrimônio de uma parte já preexistente e esse patrimônio aumentou durante a união estável ou há um patrimônio que foi adquirido ainda na fase de namoro. Então, as datas do relacionamento e da aquisição do bem são os principais pontos de conflito”, diz Samantha Godoy, advogada do escritório Nelson Wilians Advogado.
Para comprovar o início da data, fotos ou vídeos publicados nas redes sociais ou o uso de contas conjuntas costumam ser utilizados como provas na Justiça. Isso porque apenas a data de quando decidiram morar juntos pode não ser o suficiente para determinar o início da união estável. “O que constitui uma união estável? É o objetivo de constituir uma família porque a união estável é equiparada a um casamento”, afirma Godoy.
No entanto, nem todos os bens entram no processo de partilha nos casos de dissolução do relacionamento. Além dos bens adquiridos antes da união, as posses recebidas por doação ou por herança não entram na disputa. “Caso haja o falecimento de um dos companheiros após o recebimento de uma herança, o companheiro sobrevivente será herdeiro dos bens particulares do falecido”, afirma Laísa Santos, especialista em Planejamento Patrimonial e Sucessório.
Diante da complexidade, os especialistas orientam os casais formalizarem a união e dialogarem sobre os planos futuros, como a vontade de ter filhos e como a escolha de regime de bens mais adequado para a realidade deles. “Cada indivíduo possui as suas particularidades e pode entender, de maneira diversa, a forma de administrar o patrimônio adquirido durante a constância do relacionamento”, pontua Santos. Esse alinhamento das expectativas ajuda a mitigar brigas e tornar o processo de término do relacionamento menos doloroso.
É preciso formalizar a união antes de morar junto?
A união estável configura como o principal instrumento jurídico para proteger os casais de futuras dores de cabeça durante o divórcio. Com a formalização do relacionamento, é possível determinar qual o regime de bens mais adequado para a realidade do casal e deixar registrado o início da união estável.
A outra possibilidade viável é por meio de um contrato de união estável em que podem ser determinadas as responsabilidade de cada parceiro e os bens que serão partilhados em caso de uma dissolução. A diferença desse modelo de contrato para a união estável é que a formalização atende algumas demandas específicas de cada casal. Ou seja, trata-se de um instrumento jurídico mais personalizado.
“O contrato é um instrumento mais complexo que inclui uma série de normas determinadas pelo casal. O ideal é que esse registro seja realizado no cartório”, ressalta Godoy. A outra opção é utilizar a assinatura de duas testemunhas para validar o contrato de união estável sem a necessidade de registrar em cartório.
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Já os contratos de namoro também podem ser uma alternativa para os relacionamentos que não possuem a intenção de constituir família.”Esses contratos estão sendo buscados também para afastar a possibilidade de eventuais direitos que possam ser exigidos judicialmente, como a herança”, ressalta a especialista.
Veja os tipos de regime de bens entre cônjuges
Regime | Descrição |
Separação de bens |
Os bens adquiridos antes ou depois do casamento permanecem na propriedade individual de cada um. Portanto, não há divisão de bens em caso de divórcio
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Comunhão universal de bens |
Os bens adquiridos por cada um, inclusive anteriores ao casamento, pertencem aos dois. Todo o patrimônio do casal é partilhado em caso de separação
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Comuninhã parcial de bens |
Os bens adquiridos por cada um antes da união são considerados comuns ao casal. Somente os bens adquiridos, após o casamento, são partilhados em casos de separação.
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Participação final nos aquestos |
Cada cônjunge possui patrimônio próprio e, no caso da dissolução da união, cada um tem direito à metade dos bens adquiridos pelo casal.
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Fonte: Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios com base nas informações do Código Civil |
*Fernanda Maia e Rafaela Silveira são nomes fictícios utilizados pelo E-Investidor para preservar a identidade das entrevistadas.