- A palavra “poupança” traz consigo a ideia de juntar dinheiro numa conta; mas, para a economia, poupar é o oposto de consumir
- Volume de crédito disponível para determinado país depende consideravelmente do comportamento dos bancos – mais do que da quantidade de poupança acumulada por esse país ou por seus parceiros comerciais
- Aumento no déficit em conta corrente dos Estados Unidos foi mais acentuado no segundo trimestre deste ano do que em qualquer outro período desde que o índice passou a ser registrado
(The Economist) – Em 2005, o então presidente do Federal Reserve (Fed) – o Banco Central americano –, Ben Bernanke, chamou atenção para uma “acentuada reversão no fluxo de crédito” para várias economias emergentes, sobretudo as do leste asiático. Eram países que haviam começado a poupar mais do que investiam internamente, tornando-se “fornecedores líquidos de recursos” para o resto do mundo. Essa “fome de poupança”, na descrição de Bernanke, ajudou a financiar o crescente déficit em conta corrente dos Estados Unidos e permitiu que o país mais rico do planeta comprasse mais bens e serviços de outras nações do que vendia para elas.
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À frente do Fed, o economista se perguntava: será que essa situação pode – e deve – prosseguir? Mais tarde, alguns colegas de profissão de Bernanke culparam a tal fome de poupança pela bolha imobiliária americana.
Agora, preocupações semelhantes voltam a surgir. No segundo trimestre de 2020, a taxa nacional líquida de poupança nos Estados Unidos caiu para abaixo de zero – fato apontado por Stephen Roach, professor da Faculdade de Administração da Universidade Yale, num artigo publicado em outubro no Financial Times. Na falta de uma poupança para chamar de sua, os americanos estão tomando emprestado o “excedente da poupança de outros países”, escreveu Roach. O aumento no déficit em conta corrente dos Estados Unidos foi mais acentuado no segundo trimestre deste ano do que em qualquer outro período desde que o índice passou a ser registrado.
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Esse tipo de raciocínio é bastante comum, inclusive nas páginas da Economist. Ocorre que muitos economistas se opõem enfaticamente a ele – entre eles, Michael Kumhof, do Banco Central da Inglaterra, Phurichai Rungcharoenkitkul, do Bank of International Settlements (ou BIS, uma espécie de Banco Central dos bancos centrais) e Andrej Sokol, do Banco Central Europeu. Todos eles apoiam estudos realizados por Claudio Borio e Piti Disyatat, do BIS, e pedem que se faça uma distinção cuidadosa entre os fluxos de poupança e os de crédito. Os dois conceitos são diferentes, e não necessariamente caminham juntos. O resultado é que talvez Bernanke, em seu raciocínio, tenha invertido os sinais.
Na linguagem do cotidiano, poupar é o oposto de gastar. A palavra “poupança” traz consigo a ideia de juntar dinheiro numa conta bancária. Não é difícil imaginar que esse dinheiro possa ajudar a financiar gastos em outras paragens. Para a economia, porém, poupar é diferente: é o oposto de consumir. Ao produzir algo que não é consumido, a economia está poupando. Sendo assim, uma pessoa que gasta toda a sua renda reformando a própria casa está economizando – mesmo que o exemplo pareça forçado –, já que uma casa é um bem durável, e não uma despesinha irrelevante. Da mesma maneira, um agricultor que armazena a colheita num celeiro em vez de comê-la também poupa, embora não esteja depositando dinheiro no banco.
Mas então como é que a poupança, agora definida corretamente, circula entre fronteiras? Qualquer coisa que seja produzida e não seja consumida terá um entre dois destinos possíveis: ser exportada ou investida. Consequentemente, qualquer coisa que não seja nem consumida, nem investida internamente, terá de ser exportada (voltando ao agricultor, ele pode exportar o trigo para um celeiro de outro país.) O que sai fronteira afora são os próprios bens e serviços que não foram consumidos. “As nações não enviam poupança para os Estados Unidos com o objetivo “financiar” as importações americanas”, afirmam Kumhof e Sokol. “Suas exportações líquidas são, por definição, a própria poupança”.
E como será que os americanos pagam pelos bens que vêm de fora? Aí surge a questão do crédito. Ao contrário da poupança, o crédito está umbilicalmente ligado ao dinheiro. A indagação “como você vai pagar por isso?” equivale a perguntar “onde é que você arrumou dinheiro para comprar isso?”. Grande parte dos recursos vêm ao mundo por meio dos bancos, que contam com a venturosa capacidade de produzir dinheiro toda vez que oferecem um empréstimo ou compram um ativo. Sendo assim, o volume de crédito disponível para um determinado país depende consideravelmente do comportamento dos bancos – mais do que da quantidade de poupança acumulada por esse país ou por seus parceiros comerciais.
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Entretanto, num mundo onde há países com fome de poupança e outros com déficit, quem financia quem? A resposta tradicional diz que países com excesso de poupança financiam os que não guardam o suficiente. Mas esse grupo de economistas menos convencionais argumenta que a resposta não depende do aspecto geográfico da poupança e do investimento, e sim do sistema bancário e financeiro. Em diversos casos, os importadores americanos financiam suas compras com dólares que tomam emprestado de (ou que já estavam guardados em) bancos dos Estados Unidos. Quando a transação comercial for concluída, os dólares passarão para as mãos da contraparte estrangeira. A partir desse momento, o dinheiro representa uma obrigação financeira para os Estados Unidos.
Uma vez que o país compra mais do que vende para o resto do mundo, as obrigações financeiras dos Estados Unidos crescem mais rápido do que os pagamentos recebidos pelos americanos em troca do que exportam. Vários modelos econômicos tradicionais tratam esses fluxos líquidos de pagamentos como o único tipo possível de movimentação de capital. Na realidade, porém, esses fluxos representam uma pequena fração do que circula entre países. Afinal, muitas operações internacionais não incluem bens ou serviços: elas representam a compra de ativos estrangeiros incluindo ações, títulos, propriedades e afins.
No ano em que Bernanke fez seu discurso, o fluxo líquido de saída de capitais dos países “famintos por poupança” (que tinham superávit em conta corrente) representava 2,5% do PIB global. Por outro lado, o fluxo de capital bruto era de cerca de 30%, de acordo com Borio e Disyatat.
Um comportamento guloso
Diante disso, o excesso de poupança não determina nem a fonte geográfica, nem a escala do financiamento que se move entre fronteiras – e tampouco é o ponto de partida causal correto. O estudo de Kumhof e seus colegas modela o que o grupo chama de “gula por crédito”: uma abundância de empréstimos oferecidos pelos bancos americanos aos cidadãos do país. Na hora de gastar esse dinheiro recém-cunhado, é certo que os cidadãos dos Estados Unidos irão comprar bens vindos de fora. Com isso, outros países aumentam a própria poupança, já que é impossível que os Estados Unidos importem produtos consumidos ou investidos em outros lugares.
Nesse caso, porém, o aumento na poupança e no superávit externos é um efeito colateral do ‘boom’ financeiro interno dos Estados Unidos – e não uma causa do excesso de gastos do país. Para os estudiosos em questão, a gula por crédito, e não por poupança é, portanto, uma explicação mais convincente para os desequilíbrios pré-2008 identificados por Ben Bernanke – embora não guarde uma relação estreita com os acontecimentos mais recentes.
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Para muita gente (incluindo alguns economistas), é natural pensar que a poupança vem antes do investimento, e que os depósitos antecedem o crédito oferecido pelos bancos. Por isso, pode parecer tentador enxergar a poupança como fonte de financiamento e principal mola propulsora de vários acontecimentos macroeconômicos. Mas Kumhof e os demais autores do estudo são de opinião diferente: para eles, os bancos desempenham um papel mais ativo e autônomo. Os economistas, enfim, dão menos crédito à poupança e mais crédito ao próprio crédito.
(Tradução: Beatriz Velloso)
© 2020 The Economist Newspaper Limited. Direitos reservados. Publicado sob licença. O texto original em inglês está em www.economist.com