Entre a sua eleição e posse, a retórica polarizadora do republicano Donald Trump tomou o centro do palco, com declarações audaciosas sobre a anexação do Canadá, a retomada do Canal do Panamá e até a incorporação da Groenlândia aos Estados Unidos. Embora essas alegações possam soar como bravatas imperialistas, elas são profundamente estratégicas e refletem um esforço mais amplo para reafirmar a dominância americana no cenário global.
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A estratégia de Trump baseia-se no medo — uma ferramenta diplomática destinada a reforçar a posição dos Estados Unidos como o ator central na política global. Essa abordagem calculada busca posicionar os EUA não apenas como um participante, mas como o orquestrador das dinâmicas internacionais. Compreender essa retórica exige explorar suas implicações geopolíticas e motivações subjacentes.
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O novo presidente dos EUA há muito utiliza o medo como um dispositivo retórico, enfatizando segurança e soberania para mobilizar sua base. Em 2024, como candidato republicano, Trump contrastou sua primeira presidência com o suposto “caos” da administração Joe Biden, argumentando que conflitos globais, como a invasão da Ucrânia pela Rússia e as tensões no Oriente Médio, eram menos prevalentes sob sua liderança.
Essa narrativa retrata Trump como um líder forte cujo comando garantiu estabilidade global — uma mensagem direcionada a eleitores preocupados com a influência decrescente dos EUA e nostálgicos pela (agora dissipada) supremacia pós-Guerra Fria do país.
O que está por trás das declarações polarizadoras sobre Canadá e Groelândia
As recentes ameaças de Trump — anexar o Canadá, retomar o Canal do Panamá e reivindicar territórios na Groenlândia — não são declarações isoladas. Ao contrário, são movimentos calculados para projetar força e introduzir incerteza entre aliados e adversários. São projetadas para desviar o foco de outros poderes globais, como a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e a Rússia, e reafirmar os Estados Unidos como o principal tomador de decisões nos assuntos mundiais.
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Por isso Trump demonstrou interesse pela Groenlândia, uma iniciativa alinhada a alguns de seus objetivos estratégicos mais amplos. De acordo com a narrativa de Trump, para combater a Rússia como a principal ameaça à Europa, os Estados Unidos devem coordenar as dinâmicas da região enquanto pressionam a OTAN a cumprir as prioridades de Washington.
Além dos recursos inexplorados do Ártico e da crescente importância geopolítica da região devido às mudanças climáticas, a Groenlândia representa a estratégia baseada no medo de Trump para enviar uma mensagem a toda a comunidade da OTAN sobre quem deve liderar. Garantir influência na região, que contém 13% do petróleo e 30% do gás natural ainda não descobertos do mundo, proporcionaria aos EUA vantagens significativas sobre Moscou e Pequim, também interessados na expansão no Ártico.
A noção de anexar o Canadá pode parecer absurda, mas cumpre um duplo propósito. Internamente, energiza a base de Trump ao apelar para um senso de excepcionalismo americano e nostalgia dos anos de Ronald Reagan – o primeiro republicano a usar o lema “Make America Great Again” (“Fazer a America grande novamente”, em tradução live) –, da vitória dos EUA sobre a União Soviética na Guerra Fria e da subsequente supremacia global do país.
A atual situação política de Ottawa torna o Canadá um alvo oportuno para a retórica de Trump. Com o primeiro-ministro Justin Trudeau deixando o cargo em meio a turbulências políticas, os comentários de Trump sutilmente endossam o Partido Conservador Canadense, cujas políticas nacionalistas se alinham mais de perto com sua agenda.
O novo chefe de Estado americano busca pressionar um vizinho e aliado tradicional dos EUA a apoiar sua visão econômica, já que Washington atualmente se vê isolado na América do Norte, dada a presença de Trudeau e a recente eleição da progressista Claudia Sheinbaum no México, herdeira política de Andrés López Obrador.
Canal do Panamá: desafio a crescente influência da China na América Latina
As declarações de Trump sobre o Canal do Panamá revelam suas preocupações mais amplas com a crescente influência da China na América Latina. Historicamente, os EUA controlaram o canal como um ativo econômico e estratégico vital. Embora o Panamá tenha retomado o controle total nos anos 1990, a retórica de Trump destaca sua intenção de desafiar a presença chinesa na região. Os investimentos da China no Panamá e sua Iniciativa do Cinturão e Rota levaram Trump a alertar ambas as nações sobre o potencial dos Estados Unidos de se reafirmarem caso seus interesses sejam ameaçados.
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Embora a perspectiva de intervenção militar permaneça improvável, a retórica por si só restabelece os EUA como uma força a ser considerada. Trump pretende que sua narrativa e ameaças pressionem até mesmo aqueles que se alinham às suas visões e políticas.
O presidente panamenho José Raúl Mulino é conservador, mas continuará a ser alvo da Casa Branca para garantir a preferência do país pelos EUA em detrimento da China no âmbito das relações comerciais. Trata-se também de uma estratégia política para fortalecer líderes de direita — ou, mais especificamente, líderes trumpistas — na região, que em breve competirão em eleições presidenciais em países-chave como Chile, Colômbia e Brasil.
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A estratégia do novo líder americano pressiona atores internacionais a darem prioridade aos interesses dos EUA, por meio de alinhamento econômico, apoio político ou cooperação em segurança. No entanto, a aposta de Trump é excessivamente alta, pois essa estratégia vem acompanhada de riscos profundos. Ao instigar o medo e fazer declarações incendiárias, Trump aliena aliados e escala progressivamente tensões com adversários.
No fim, suas táticas podem minar as próprias alianças que historicamente fortaleceram a liderança dos EUA, como a OTAN e o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta). Por mais que a estratégia de Donald Trump possua graus de sofisticação na escolha de alvos e objetivos de médio e longo prazo, sua verborragia conduz qualquer sofisticação estratégica à falência.