IA, energia elétrica e o risco ignorado de 2026: como a conta pode chegar aos investidores
No Brasil, fala-se em “oportunidade de datacenter”, mas sem mencionar risco de apagão, de tarifa explosiva ou de disputas sobre quem paga a conta dos reforços de rede
Falar de inteligência artificial (IA) sem relacionar à infraestrutura de energia elétrica significa permanecer na superfície da discussão. (Imagem: Adobe Stock)
O mercado financeiro fala de inteligência artificial (IA) generativa, chips, nuvens e datacenters como se tudo existisse num plano abstrato, sem fricção física, flutuando num “ciberespaço” infinito. Mas por trás de cada modelo de linguagem e de cada cluster de GPU existe algo radicalmente concreto: fio, transformador, turbina, subestação, linha de transmissão, licença ambiental, água para resfriamento, terreno e, no fim de tudo, conta de luz. Esse choque entre o mundo glamouroso da IA e a nossa infraestrutura de energia elétrica é, provavelmente, um dos riscos mais subestimados de 2026 para investidores, especialmente no Brasil, ainda que o mesmo problema esteja surgindo em várias partes do mundo.
No caso brasileiro, o paradoxo fica evidente. No discurso, o País é uma potência energética com matriz relativamente limpa, forte base hidrelétrica, rápida expansão de eólicas e solares e um enorme potencial para se vender como hub de descarbonização e destino de “green capex”(“investimento verde”, em tradução livre). Ao mesmo tempo, na prática, a expansão de transmissão sofre com atrasos, judicialização, incerteza regulatória e gargalos regionais justamente onde a demanda está crescendo mais rápido.
Grandes projetos renováveis disputam conexão em sistemas que já operam perto do limite em certos horários e o planejamento oficial ainda pensa o consumo de forma difusa, como se a carga crescesse de forma espalhada e previsível, quando a lógica da IA mostra o oposto: a criação de mega ilhas de carga ultra concentradas em poucos pontos geográficos.
A oportunidade de datacenters de IA
Datacenter nos arredores da cidade de Columbus, Ohio, nos Estados Unidos. (Imagem: Snehit Photo em Adobe Stock)
Esses novos polos de datacenters, regiões de cloud (tecnologia de nuvem) e parques de IA exigem altíssima densidade de energia elétrica em áreas específicas, normalmente perto de grandes capitais, hubs (pontos de conexão) de fibra ótica e infraestrutura logística. Se o entorno não tiver geração firme suficiente, rede de transmissão reforçada e distribuição preparada, o que hoje é vendido como “novo ciclo de crescimento digital” pode virar um gerador silencioso de risco físico, regulatório e político.
Mesmo assim, no mercado brasileiro, muita conversa sobre datacenter e IA ainda vive no universo do pitch (discurso) de conferência, não nos modelos de risco dos fundos de ações, crédito, infraestrutura ou private equity(investimento em empresas que ainda não são listadas em bolsa de valores). Fala-se de “oportunidade de datacenter” sem falar do risco de apagão seletivo, de tarifa explosiva ou de disputas sobre quem paga a conta dos reforços de rede.
A narrativa dominante, aqui e lá fora, costuma seguir a mesma linha: IA escala, IA precisa de datacenters, datacenters demandam muita energia, logo isso é ótimo para utilities – geradoras e empresas de transmissão. Uma parte disso é verdadeira, mas configura uma visão perigosa por ser excessivamente linear e assumir que a energia é sempre elástica, barata e facilmente expandível.
O que quase não entra na discussão é o risco de um “overbuild errado”: capital demais no lugar errado e na hora errada, sustentado por promessas otimistas de expansão de rede, licenciamento rápido e obras de transmissão de energia que historicamente raramente cumprem o cronograma original.
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Quem investe hoje em debêntures de infraestrutura, fundos de crédito estruturado, fundo de infraestrutura (FI-Infra) ou ações de utilities com histórias de crescimento ancoradas em grandes projetos precisa admitir que uma parte relevante desse crescimento depende de licenças, conexões e reforços de rede que podem simplesmente não chegar no tempo esperado.
Impacto da IA no custo da energia e no meio ambiente
Se o choque de demanda de IA sobre o sistema elétrico se materializar mais rápido do que a expansão de capacidade, a conta chega em vários níveis. Em alguns pontos, o custo da energia pode subir de forma bem mais forte que a média, pressionando tarifas locais, margens de empresas intensivas em eletricidade e o bolso do consumidor.
Em outros, a disputa por conexão ou o receio de sobrecarga pode levar reguladores e governos a dar prioridade a certos tipos de carga em detrimento de outros, criando um “crowding out (aglomerado) elétrico” em que setores industriais já estabelecidos começam a concorrer com datacenters por espaço na rede. Isso não é uma hipótese abstrata em um mundo em que problemas climáticos e estresse na infraestrutura já aparecem entre os principais riscos globais mapeados por seguradoras, gestoras e consultorias de risco.
Fora do Brasil, esse problema está ficando mais visível, ainda que de forma fragmentada. Em regiões dos Estados Unidose da Europa, clusters (conjuntos) de datacenters já geram discussões acaloradas sobre uso de água, impacto ambiental, linhas de transmissão dedicadas e pressões sobre metas de descarbonização. Em alguns mercados, projetos de cloud têm sido obrigados a negociar condições especiais de energia ou a financiar reforços de rede para seguir adiante.
Países emergentes que querem se vender como hubs de computação – do Sudeste Asiático ao Oriente Médio – estão descobrindo que ter energia barata “em teoria” não basta. É preciso que ela seja firme, despachável, estável e conectada exatamente onde os datacenters querem se instalar. O Brasil, ao importar o discurso otimista da “IA como oportunidade infinita”, corre o risco de repetir o mesmo roteiro de frustração, mas com um adicional de burocracia, volatilidade política e insegurança jurídica.
Onde estão as assimetrias para 2026
Expansão da rede de transmissão de energia elétrica no Brasil sofre com atrasos, judicialização, incerteza regulatória e gargalos regionais (Imagem: To Love em Adobe Stock)
Do ponto de vista de portfólio, o mais curioso é ver como os grandes temas de discussão continuam orbitando juros, fiscal, commodities, fluxo de gringo e reformas, enquanto quase ninguém projeta o impacto de clusters de IA sobre a estrutura de tarifas de energia, o cronograma realista dos grandes projetos de transmissão e a possibilidade de choques localizados de oferta.
Nas conversas de 2026, a atenção ainda está majoritariamente em “quando o banco central corta” e “se as bolsas globais aguentam mais um rali”, enquanto a ligação entre infraestrutura elétrica, inflação futura, prêmio de risco na curva longa e valor de mercado de utilities segue subexplorada.
O elo esquecido, nesse contexto, é a inflação. Energia é um insumo que entra na veia da economia. Se o processo de digitalização via IA pressionar o sistema elétrico a ponto de elevar tarifas ou de exigir subsídios fiscais disfarçados para evitar reajustes bruscos, o impacto nos preços de serviços, custos industriais e sensibilidade da política monetária é direto.
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Em um ambiente em que investidores já discutem a possibilidade de um mundo com inflação mais “teimosa” e correlações de ativos diferentes da década passada, ignorar o risco de um choque de energia alimentado pela IA é um luxo perigoso. Utility que hoje muitos veem como porto seguro pode se transformar em amplificador de risco macro e regulatório, e não em amortecedor.
Nada disso significa que o tema seja apenas um alerta negativo. Na verdade, é aí que mora uma das assimetrias mais interessantes para 2026. Quem começar a integrar seriamente “capacidade elétrica + IA” na análise de empresas, projetos e créditos pode identificar, antes da maioria, quais utilities têm histórico de execução, relacionamento regulatório e exposição a regiões que efetivamente vão se consolidar como hubs de IA – e quais estão vendendo crescimento em cima de cronogramas implausíveis.
O que investidores deveriam começar a precificar agora
O mesmo vale para crédito privado em infraestrutura: entender o risco de atraso de obra, a disputa por conexão, a chance de judicialização e o risco político é a diferença entre comprar um fluxo previsível e carregar uma bomba-relógio travestida de ativo ESG – sigla para governança ambiental, social e corporativa, em inglês. Gestores de real assets e private equity, por sua vez, podem capturar valor em projetos que combinem geração renovável, flexibilidade de despacho e contratos inteligentes com datacenters, em vez de simplesmente correr para qualquer ativo rotulado como “energia para IA”.
No plano global, gestores começam a apontar que 2026 pode ser um ano forte para ativos de risco, mas com maior dispersão entre setores e regiões, o que torna temas estruturais como energia e IA ainda mais relevantes para geração de alfa (termo que indica a capacidade de um investimento obter lucros acima da média).
Para o investidor brasileiro sofisticado, o jogo interessante está em cruzar essas narrativas macro com o detalhe granular da nossa infraestrutura. Em vez de só perguntar “qual é a próxima big tech da IA”, a pergunta mais inteligente para 2026 talvez seja “quais empresas, projetos e regiões vão sofrer – ou se beneficiar – do choque de energia que a IA está prestes a causar”.
Em outras palavras, dá para continuar falando de IA sem falar de rede elétrica, mas isso, em 2026, é escolha de quem prefere ficar na superfície da história, não de quem quer antecipar os movimentos que realmente mexem com preço de ativo.