- Muitos investidores vêm optando, conscientemente ou não, por certas ilegalidades ao investir em criptoativos, utilizando um produto supostamente superior, eventualmente em condições comerciais percebidas como vantajosas
- Num mundo globalizado, podemos alegar que o fato de não ter uma sede no país não é um impeditivo. Concordo em parte. Mas e não ter sede em lugar algum?
- A cultura cripto, permeada por inovação, democratização do investimento e disrupção, não é e não deve ser tratada como um atalho para a ilegalidade
Para muitos, o mundo cripto é um universo paralelo, totalmente apartado do tradicional, com seus próprios produtos, lógicas e regras. Bitcoin, Ethereum e outras criptomoedas são negociados globalmente e podem ser vendidos, em qualquer parte do mundo, permitindo a livre circulação de recursos e saque na moeda fiduciária escolhida. Ao mesmo tempo, a tecnologia base, a blockchain, permite negociações de ativos com um número super reduzido de intermediários, reduzindo a necessidade dos gatekeepers habituais.
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Ledo engano. Apesar de realmente ter características completamente disruptivas, a nova economia digital está umbilicalmente ligada à economia tradicional. A lei da oferta e demanda funciona tanto para criptoativos quanto para ações, títulos do tesouro ou commodities. Além da lei de mercado, a lei propriamente dita, aquela que todo cidadão e toda companhia devem respeitar, se aplica para esses dois mundos.
Não pagar impostos sobre ganho de capital no mercado acionário é ilegal. Isso também vale para ganhos com Bitcoin, Ethereum ou qualquer outro criptoativo.
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Essa ponderação é importante porque muitos investidores vêm optando, conscientemente ou não, por certas ilegalidades ao investir em criptoativos, utilizando um produto supostamente superior, eventualmente em condições comerciais percebidas como vantajosas. Tanto no mundo cripto quanto no tradicional a ilegalidade cobra um preço altíssimo, por mais vantagens que o caminho mais curto possa oferecer.
No país do jeitinho, são muitos os exemplos de ofertas ilegais de produtos, como os conversores de TV a cabo. A princípio parece ser algo fantástico, pois compra-se o aparelho, paga-se apenas uma vez e o espectador dispõe do sinal sem precisar de uma assinatura mensal, como nos serviços regulares. Embora pareça ser um baita negócio, usar um decodificador pirata é ilegal, assim como vendê-lo. Evidentemente que aqui e ali pessoas e empresas conseguem alguma brecha legal para evitar problemas com a lei.
Poderia citar outros exemplos. O transporte irregular de passageiros. O contrabando disfarçado de importação – milagrosamente mais barata que a concorrência. O serviço mais em conta sem nota fiscal – opa, com nota sai mais caro. Como no caso dos conversores, parecem ser um ótimo negócio para empresários, que são mais competitivos, e consumidores, que usufruem de serviços mais baratos. Até o dia em que tudo dá errado.
Por alguma razão inexplicável, pessoas que não arriscam suas vidas embarcando em ônibus clandestinos ou a reputação pirateando o sinal da TV a cabo se deixam levar por corretoras de criptoativos que não possuem qualquer vínculo formal no Brasil nem pagam impostos por aqui. Até aí, não seria um grande problema, não fosse a opacidade quanto ao país onde verdadeiramente opera.
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Num mundo globalizado, podemos alegar que o fato de não ter uma sede no país não é um impeditivo. Concordo em parte. Mas e não ter sede em lugar algum? O mundo cripto coloca desafios substanciais que a legislação vigente ainda não suporta integralmente. Mas temos algum ordenamento jurídico no Brasil, as Proteções básicas ao Consumidor. Lei de Prevenção à Lavagem de Dinheiro.
Especificamente no mercado cripto, há a Instrução Normativa 1.888, da Receita Federal. Ainda que incompleta – não é à toa que há discussões em curso nas duas Casas Legislativas sobre regulação cripto – são dispositivos nos quais tanto as empresas quanto os clientes se apoiam quando prestam ou tomam serviços nesse ecossistema.
Por meio dessa política meio conversor pirata meio ônibus clandestino, algumas empresas ditas globais têm espalhado seus tentáculos pelo mercado brasileiro. Ignoram a Receita Federal, os direitos fundamentais do Consumidor e até mesmo a CVM, ofertando de modo irregular derivativos em território brasileiro, em que pese essa autarquia já ter emitido stop order em julho de 2020. Zombam do regulador: numa rápida pesquisa, qualquer pessoa consegue descobrir qual é o “jeitinho”.
Discursos vazios em relação à geração de emprego e oportunidade também são parte do processo de Social Washing. Como exemplo, em recente passagem pelo Brasil, um executivo de uma empresa “global” mencionou que pretende abrir um escritório no País, contratar 500 funcionários locais – esse número variou um pouco conforme a plateia, chegando a 5 mil em evento no Rio de Janeiro. Vale lembrar que uma empresa líder global, com ações negociadas em bolsa de valores e sediada nos Estados Unidos, tem, no total, um número inferior de funcionários ao potencial número de vagas ventiladas em eventos públicos, claramente um desafio empresarial sem precedentes para ser cumprido.
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Outro assunto relevante é a mudança de atitude em relação à Receita Federal, passando a reportar operações de brasileiros e de residentes fiscais, de acordo com a Instrução Normativa 1.888. Esse é um movimento há muito tempo devido, mas que vai colocar clientes locais face a face com o fisco para explicar o crescimento de suas carteiras digitais que nunca haviam sido declaradas.
Um modelo de regulação que combine inovação e respeito a princípios legais relevantes, como prevenção à lavagem de dinheiro e equilíbrio em regras de concorrência, vem sendo discutido no país. Sem dúvida, um movimento na direção correta.
No entanto, a falta de uma regulação específica para criptos não deve ser a razão para pseudo-corretoras “globais” atuarem no Brasil sem presença local, sem precisar obedecer às leis do País, e assim criar uma concorrência desleal com players que cumprem a legislação em vigor.
A cultura cripto, permeada por inovação, democratização do investimento e disrupção, não é e não deve ser tratada como um atalho para a ilegalidade.
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