Era sempre o último argumento, aquele que aparecia justamente quando todos os outros já tinham caído. Pois bem. Esse argumento acabou.
Com as Resoluções BCB 519, 520 e 521, o Banco Central (BC) saiu do campo da intenção e entrou nos detalhes: quem pode operar, como, com qual governança, como separar o que é do cliente e o que é da empresa, como provar que o saldo que aparece na tela existe de verdade, entre outros pontos.
Estamos vendo a transição de um mercado que já movimenta bilhões, mas com assimetrias de risco significativas entre plataformas para um ambiente em que criptoativos entram, de vez, no mesmo mapa mental onde se encontram bancos, corretoras e distribuidoras.
Não some o risco dos criptoativos, nem deve. O que começa a ser removido é aquele ruído desnecessário de “será que essa plataforma existe mesmo?”, “será que meu saldo está segregado?”, “será que, se der algum problema, alguém responde?”.
O investidor passa a correr, cada vez mais, o risco que ele realmente está disposto a correr, o dos ativos. E cada vez menos o risco que ele não deveria correr, o da estrutura.
Quem é quem no novo mercado cripto
A Resolução BCB 520 faz algo que o Brasil precisava há tempo: define o que é, formalmente, uma prestadora de serviços de ativos virtuais, e em quais “caixinhas” ela pode atuar.
Na prática, o BC descreve três papéis centrais:
- A intermediária, que conecta o cliente ao mercado, somente executando as ordens de compra e venda;
- A custodiante, que guarda os criptoativos em nome do cliente;
- e as exchanges, que combinam os dois modelos anteriores de intermediação e custódia, modelo em que estão a maior parte das plataformas que o investidor brasileiro conhece, como o Mercado Bitcoin (MB) e outras casas que já vinham se organizando com padrão de mercado financeiro tradicional.
Além dessas sociedades especializadas, também podem prestar intermediação e custódia de cripto bancos, corretoras e distribuidoras já autorizados pelo Banco Central, desde que cumpram as mesmas exigências de capital, governança, tecnologia, controles e comunicação prévia à autoridade.
Também não basta “ter um site em português” ou “atender brasileiros no suporte”. Para ser considerada atuante no País, a prestadora de serviços de ativos virtuais precisa estar constituída no Brasil, com sede e administração aqui, submetida ao ordenamento jurídico e às autoridades brasileiras.
Isso atinge diretamente o modelo das “plataformas de Schrödinger”: aquelas exchanges que, dependendo da conversa, estão ou não estão no Brasil. Na propaganda, são globais, onipresentes, presentes inclusive no Brasil. Na hora da responsabilidade, viram uma entidade em algum lugar do mundo, difícil de localizar, com contratos opacos e pouca resposta prática quando o cliente precisa.
A partir de agora, quer atuar com cliente brasileiro? Então venha com CNPJ, endereço, administração local, capital, governança e submeta-se à supervisão do BC.
Capital, governança e gente: cripto com cara de instituição financeira
Regulação boa não é a que cria burocracia vazia. É a que força o mercado a separar o joio do trigo, quem está preparado para rodar um negócio bem estruturado de quem vive de improviso.
A Resolução 519 e a 520 cravam um conjunto de pré-requisitos para autorização que colocam o jogo em outro patamar: capacidade econômico-financeira dos controladores, origem lícita dos recursos, viabilidade econômico-financeira do negócio, infraestrutura de tecnologia compatível com o risco, governança coerente com a complexidade da operação, reputação dos administradores e conhecimento real do mercado em que vão atuar.
Não basta mais ter somente um front bonito, meia dúzia de integrações de Programação de Aplicações (APIs) e uma campanha digital agressiva para captar cliente. Esse tempo passou. No novo regime, o controlador precisa ter capital para aguentar turbulência, e turbulência de verdade.
E aqui entra um detalhe que pouca gente percebeu: os recentes golpes envolvendo Pix levaram o Banco Central a revisar regras de capital mínimo no sistema de pagamentos. O efeito colateral é direto. Mesmo sem ser o foco original da mudança, os (futuros) regulados cripto foram atingidos em cheio.
Especialistas do mercado já trabalham com uma projeção razoável: algo em torno de R$ 10 milhões em capital mínimo para operar como mero intermediário. Acabou o tempo em que se montava uma “exchange” com estrutura leve, quase artesanal. Ou ainda mais simples, um escritório de intermediação com três pessoas, três celulares com Whatsapp e uma hard wallet (espécie de carteira de criptoativos). Já era.
E não é só dinheiro. Os administradores precisam ter currículo sólido, reputação ilibada e capacidade técnica comprovada. A tecnologia da informação (TI) deixa de ser área de suporte e vira pilar de sobrevivência. Tem de ser desenhada para operar em ambiente hostil, resistente a ataques, intrusão, vazamento. Infraestrutura bulletproof (“a prova de balas”, em tradução livre).
Na prática, plataformas como o MB e algumas outras casas sérias já vinham operando como se essas regras existissem: conselho, comitês, diretoria, área de risco, compliance – conjunto de disciplinas que mantêm o empreendimento em conformidade com leis, normas e regras –, jurídico forte, auditoria recorrente. Quem apostou nesse modelo colhe agora o benefício de um “custo de adaptação” relativamente pequeno.