O Banco Mundial estima que, na década de 1970, mais de 60% das pessoas que viviam na Índia estavam abaixo da linha da pobreza. Em 2009, após anos de liberalização e crescimento econômico, este número tinha caído para 33%. Isso ainda se traduzia em mais de 300 milhões de pessoas – uma população equivalente aos Estados Unidos – que lutavam diariamente pelas necessidades mais básicas. Nessa época, 400 milhões de pessoas não tinham uma identidade formal. E mais chocante, apenas 17% tinha uma conta bancária.
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Hoje, existem mais de 1,4 bilhão de números Aadhaar (identidades) no Repositório Centralizado de Dados de Identidades (CIDR) da UIDAI (Unique Identification Authority of India), cobrindo 99,9% da população adulta. Hoje o Aadhaar cobre quase toda a população da Índia e é a espinha dorsal da revolução digital do país – sem dúvidas, é o empreendimento tecnológico mais importante e bem-sucedido da história moderna da Índia.
Como eu conheci o Aadhaar
Em 2016, recebi a visita de indianos sócios de um fundo de impacto no país, o Aspada (atual LightRock). Fiquei impressionada ao ver como a tecnologia estava resolvendo problemas sociais na Índia e como aquilo poderia ajudar a resolver grandes questões sociais no Brasil também. Muitos problemas são similares, mas a escala dos problemas na Índia é dez vezes maior.
Durante o almoço com o grupo, um deles entrou no celular e fez uma transferência de uma conta para outra no seu WhatsApp usando biometria por meio de um sistema chamado UPI, sem custos de transação! Estamos falando de 2016 – no Brasil, até novembro de 2020, ainda não existia o Pix e pagávamos até R$ 10 por cada Ted ou Doc. Imaginem uma nação com 215 milhões de habitantes, dos quais (na época) 140 milhões bancarizados, pagando essa taxa para cada transferência.
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Perguntei ao indiano do que se tratava aquele sistema. E ele me respondeu: “You don’t know India Stack? You don’t know about Aadhaar?” (Você não conhece o Índia Stack? Você não sabe sobre o Aadhaar?, em tradução livre) . Como era possível quase ninguém no Brasil saber que a Índia havia digitalizado 1,3 bilhão de pessoas, que até então não tinham nem documentos nem certidão de nascimento e que, com o Aadhaar, criado em 2009, passaram a ter acesso a bancos, contas para transferências, crédito etc?
A partir daí, passei a conversar com algumas pessoas na Índia que haviam trabalhado na criação do Aadhaar. Conheci Sahil Kini, um dos primeiros funcionários do time de Nandan Nilekani, fundador da Infosys. Nandan havia deixado a empresa em 2009 para criar uma autarquia junto ao governo e ajudar na criação de algo que transformaria o país asiático, hoje o que tem a maior população do mundo.
Diferente de muitos líderes pelo mundo, Nandan entendia a perspectiva do povo e sabia que ao empoderar na época 1,3 bilhão de pessoas (hoje 1,4 bilhão) ele estaria transformando um passivo para o país em ativo, empoderando as pessoas e transformando uma nação.
Para criar isso tudo, o primeiro passo foi criar uma identidade confiável. Com essa identidade, as pessoas, até então “invisíveis”, conseguiram abrir uma conta no banco, obter crédito e participar de programas sociais. O Digital ID na Índia consiste num código de 12 dígitos ligado à sua face, impressão digital e íris. Ou seja, não tem como você não ser encontrado. Não tem como abrir uma conta apenas com um desses dados. A conta fica ligada à sua íris, que é única. Além disso, a Índia criou uma API pública (uma espécie de software) que permite que provedores de serviços verifiquem se o usuário é quem ele diz que é. Ou seja, o provedor de serviço não tem que pagar uma empresa pela checagem do KYC. Na estratégia da Índia, o Estado e o modelo de negócios trabalham para a sociedade, não o contrário.
Talvez pudéssemos refletir se essa não seria uma solução para reduzir o número de assaltos de celulares devido ao Pix – já que aqui, a conta pode estar ligada ao seu número de telefone e você pode ir trocando este telefone, mas a íris você não troca.
Em todas as entrevistas que Nandan dá, ele sempre fala de “Data Empowerment”. A internet não é de graça, você paga deixando lá seus dados. Hoje nossos dados ficam na Amazon, no Google, na Microsoft, em bancos, no Facebook etc. A Índia adotou uma abordagem diferente: criou plataformas abertas (“Open Source Digital Platforms”) do zero e customizadas para o contexto indiano e, em vez de deixar as plataformas nas mãos de poucas empresas “Tech Giants”, construiu esses sistemas como bens públicos.
DPI – “Digital Public Infrastructure”
O Aadhaar exemplifica a noção de que a infraestrutura digital deve ser um bem público. A identidade digital é a base de confiança para todos os serviços que as pessoas usam na internet. Diferente do que acontece hoje, quando Google e Facebook são os maiores provedores de identidade digital. Se essas plataformas sabem não apenas quem você é, mas sua localização, suas preferências, seus comportamentos – elas são donas dos seus dados e comercializam a favor delas, não a seu favor.
A Índia, por outro lado, criou inúmeras infraestruturas digitais públicas, conhecidas como “India Stack”, que permitem ao governo e ao setor privado servir, em tempo real, 1,4 bilhão de pessoas a um custo muito baixo. Exemplos de DPI são o e-KYC, o UPI (“Unified Payment Interface”) e outros.
Além disso, os princípios que guiam o uso da internet por lá são: a infraestrutura digital deve ser um bem público e as pessoas devem ser empoderadas com seus próprios dados. Com tantos dados sendo gerados pelo uso de “smartphones”, “smart cities” e outros dispositivos, a Índia vai ser um país rico em dados antes de ser rico economicamente.
Quando a pessoa se torna dona de seus dados, ela pode usá-los a seu favor. Imagine um pequeno negócio que é dono do histórico de dados de seu fluxo de caixa: ele pode negociar crédito a seu favor porque ele é dono dos dados. Isso é o que o Nandan chama de “data to the people”.
Grandes mudanças
Na minha última viagem à Índia, em março deste ano, participei de um evento do Societal Thinking, uma comunidade de líderes, investidores, pensadores, empreendedores sociais, filantropos e outros – criada por Nandan e Rohini Nilekani, Sanjay Purohit e outros participantes do Aadhaar. Trata-se de uma abordagem para realizar mudanças sociais exponenciais. A mudança social só se torna exponencial quando induz um efeito dominó de inúmeras mudanças rápidas em direção à construção de uma sociedade melhor.
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O encontro aconteceu na sede da Infosys em Bangalore. Passamos a semana com líderes de 15 países e o que nos uniu foi o desejo de uma mudança radical na maneira como os atores sociais da sociedade civil, dos mercados e dos governos interagem entre si. Como? Criando ativos compartilhados e uma infraestrutura inclusiva que sejam abertos, seguros e acessíveis a todos os atores. Desenhando espaços que permitam que todos desenvolvam e implementem soluções que funcionem melhor para todos.
“Como criar impulso para tornar todos melhores em fazer mudanças? Existem várias maneiras. Podemos começar com um sistema de valores. Podemos usar as leis da biologia. Políticas públicas e infraestruturas devem ser construídas para serem compartilhadas. Devemos construir além. No atual modelo de negócios, aprendemos como criar fazendas. Agora precisamos aprender como criar florestas. Criar florestas tropicais – onde todos pertencemos. Devemos trazer as florestas de volta à vida. E onde estamos nós no meio da floresta? Quem deveríamos ser? Deveríamos ser os rios…porque o conhecimento flui. Devemos manter a floresta crescendo, compartilhando conhecimento. Deveríamos aprender com as árvores. As árvores nos dão os frutos, mas nunca perguntam o que você vai fazer com os frutos”, diz Sanjay Purohit, fundador do Societal Thinking. “Escale o que funciona, não aquilo que funciona em escala” (Scale what works vs what works at scale”), afirma.
E ele tem razão. Mudanças sistêmicas levam tempo e, para realizá-las, é necessário ter visão de longo prazo (20 a 30 anos) e procurar oportunidades catalisadoras. Esse tipo de mudança exige compromisso com o serviço à visão, às nossas comunidades e uns aos outros.
No caminho para mudanças sistêmicas, colaboração é vital – trabalhar em conjunto para encontrar respostas aos desafios. É preciso envolver e construir parcerias com e entre comunidades de stakeholders, incluindo especialistas, políticos, investidores e membros da comunidade de todas as origens. O objetivo é encontrar oportunidades catalisadoras, implementar soluções adequadas usando abordagens tradicionais e não tradicionais.
Mudanças sistêmicas também demandam coragem de perseguir e testar ideias sem precedentes – caminhos inexplorados e que, muitas vezes, levam a grandes avanços. O Aadhaar é um dos melhores exemplos de mudança sistêmica que conheço. Atualmente, a mudança continua por meio do Societal Thinking, Co-Develop, Digital Public Infrastructure (G20), Centre for Exponential Change e outras plataformas. Esse grupo de líderes está levando essa abordagem para vários países. Em todas essas plataformas, você encontra o setor público, o privado e o terceiro setor trabalhando juntos – sempre focados na visão de longo prazo.
Para reflexão…
Uma pesquisa realizada pelo DataFavela, em 2023, mostra que se todas as favelas fossem organizadas em um Estado, o seu Produto Interno Bruto (PIB) seria de R$ 200 bilhões, ou seja, o terceiro Estado mais rico do Brasil. No entanto, quando olhamos o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb, de educação) e Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) esses números não são altos. Fiquei me perguntando para onde ia essa diferença.
Você nota que quase todo mundo na favela tem celular. Quando você entende que tipo de conteúdo as pessoas estão consumindo, você entende seu padrão de consumo, seus desejos e sonhos. E aí você entende que como o dado não fica com as pessoas, elas se tornam apenas consumidoras daquilo que as plataformas vendem. E talvez muito do PIB das favelas esteja saindo por aí…
Imaginem se, como na Índia, os brasileiros fossem donos de seus dados e pudessem negociar crédito com qualquer instituição e receber ofertas de serviços porque são “data rich” (ricas em dados). Fica a reflexão!