Famílias multiparentais desafiam o modelo tradicional e trazem novos impactos no direito sucessório. | Imagem: Adobe Stock
A família brasileira já não cabe na foto antiga do álbum. Casais homoafetivos, filhos de diferentes uniões, técnicas de reprodução assistida, guarda compartilhada e, mais recentemente, a multiparentalidade. O reconhecimento jurídico de mais de um pai e mais de uma mãe no mesmo registro civil mostram que o modelo tradicional cedeu lugar a arranjos complexos, mas igualmente legítimos.
O Supremo Tribunal Federal já reconheceu a multiparentalidade como realidade jurídica — e os cartórios, com base nisso, realizam averbações nos registros civis. A partir daí, uma pergunta inevitável se impôs: se uma pessoa tem, por exemplo, dois pais e uma mãe no registro, quem herda o quê quando alguém morre?
O que é multiparentalidade
Multiparentalidade é o reconhecimento jurídico de mais de dois vínculos parentais em uma certidão de nascimento. Ou seja, o afeto e a convivência socioafetiva ganham status jurídico, convivendo com os laços biológicos.
Exemplos reais:
Uma criança criada pelo padrasto desde pequena, sem afastamento do pai biológico, pode ter ambos reconhecidos como pais;
Duas mães (biológica e afetiva) dividem o registro materno;
Famílias reconstituídas reconhecem formalmente a dupla paternidade ou maternidade.
O direito sucessório diante da nova realidade
Pelo Código Civil, a ordem da herança coloca os descendentes e ascendentes na linha de frente, concorrendo com o cônjuge ou companheiro. O que muda quando o filho tem três ou quatro ascendentes juridicamente reconhecidos?
A resposta é direta: todos têm os mesmos direitos sucessórios. Se um filho é reconhecido por dois pais e uma mãe, todos entram no cálculo como ascendentes de primeiro grau. O falecimento de um multiparente pode abrir um inventário com múltiplos herdeiros em igualdade de condições.
Ou seja, se Maria tem pai biológico (Pedro) e pai socioafetivo (Carlos), ela será herdeira legítima de ambos. E, inversamente, ambos terão direito à herança de Maria. Não existe divisão entre “pai de verdade” e “pai afetivo” para efeito de sucessão.
Na teoria, tudo parece resolvido, mas há questões desafiadoras:
Como calcular a legítima (parte obrigatória da herança) quando o número de herdeiros necessários aumenta?
Como administrar bens comuns em famílias com histórias e relações complexas?
Como lidar com conflitos entre herdeiros biológicos e socioafetivos, especialmente quando há resistência familiar?
Além disso, testamentos mal elaborados (ou inexistentes) podem gerar disputas longas e dolorosas, porque o direito precisa lidar com um mosaico de afetos que nem sempre cabem em artigos e incisos.
Em termos práticos, a multiparentalidade multiplica também os vínculos patrimoniais, ampliando o círculo de sucessores e aumentando a chance de litígios.
Por que isso importa para você
O reconhecimento da multiparentalidade foi um avanço civilizatório: ele garante a dignidade da criança, respeita sua história afetiva e dá voz a famílias que o direito antigo invisibilizava. No entanto, no campo sucessório, esse mesmo avanço expôs lacunas da legislação.
O Código Civil de 2002 não foi pensado para a hipótese de três ou quatro pais em disputa pela herança. O resultado é que a jurisprudência tem feito o papel de legislador, aplicando por analogia as regras existentes. Isso gera segurança para uns, mas também abre brechas para insegurança jurídica — afinal, herança é tema que costuma mobilizar disputas intensas, até entre famílias “convencionais”.
A multiparentalidade não é só um tema de novela ou de tribunais superiores — é uma realidade cada vez mais presente em famílias comuns. Ignorar seus efeitos pode levar a litígios inesperados no inventário, exclusão afetiva de herdeiros legítimos e insegurança patrimonial para todos os envolvidos.
Efeitos colaterais
Planejamento sucessório mais complexo: testamentos, doações e holdings familiares precisam levar em conta um maior número de herdeiros necessários.
Aumento dos litígios: mais interessados significa maior probabilidade de conflitos.
Impacto tributário: quanto mais herdeiros, mais inventários paralelos e recolhimentos de ITCMD, o que também alimenta a arrecadação dos estados.
O Congresso ainda não enfrentou a multiparentalidade com a seriedade que o tema exige. Não há previsão expressa no Código Civil nem no Código de Processo Civil sobre como operacionalizar a divisão da herança em casos complexos. Enquanto isso, famílias dependem da interpretação de juízes e tribunais, o que pode gerar decisões diferentes para situações idênticas.
Como se proteger: afeto, diálogo e planejamento
Converse abertamente sobre as relações familiares e seus efeitos jurídicos;
Faça planejamento sucessório considerando todos os vínculos afetivos e patrimoniais;
Considere testamento ou doações em vida para evitar litígios;
Busque orientação jurídica especializada para organizar o patrimônio.
Conclusão: família é afeto, mas também é direito
A multiparentalidade veio para ficar, e o direito sucessório precisa acompanhar essa realidade. O tema não se resume a tabelas e cálculos de quinhões: trata-se de garantir que vínculos afetivos reconhecidos pelo Estado tenham correspondência patrimonial justa.
Enquanto o legislador hesita, os tribunais vão costurando soluções. Mas seria ingenuidade ignorar que, na prática, a multiparentalidade não apenas multiplica o amor e os vínculos afetivos, como também multiplica a herança e, muitas vezes, os conflitos.