Comportamento

Opinião: A Wall Street que eu conheci não existe mais

O mercado acionário dos Estados Unidos passa por reformulação de modelo de trabalho e de investimentos

Opinião: A Wall Street que eu conheci não existe mais
Wall Street não é mais o pote de ouro que já foi para as massas. Foto: Pixabay
  • Wall Street não é mais o pote de ouro que já foi para as massas
  • A indústria passou por uma mudança semelhante no fim dos anos 90, mas que levou apenas a alterar o jeito de se vestir para ficar em pé de igualdade com as empresas de tecnologia, que permitiam aos funcionários usar camisetas e jogar pebolim no escritório

(Jared Dillian, WP Bloomberg) – Eu me formei na Academia da Guarda Costeira dos Estados Unidos em 1996. Era uma época difícil para se frequentar uma das academias militares americanas e eu passei por todos os tipos de humilhações. Certa vez, fui barbeado com uma baioneta por um dos alunos veteranos.

Em outra, fui obrigado a fazer duas mil flexões em um único dia. E, faltando 101 dias para minha formatura, o quartel foi transformado em uma zona de guerra que foi chamada de “101ª Noite”, com trotes durante 24 horas e castigos físicos que beiravam à agressão. A experiência da minha turma durante a 101ª Noite foi tão grave, que o evento foi imediatamente proibido depois daquela edição.

Entretanto, minhas lembranças desse período da minha vida são muito boas. Foi uma espécie de provação, e estou feliz por ter passado por isso, porque me deu a resistência mental que tenho hoje.

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A Guarda Costeira não é mais assim e ela estava em processo de se transformar em uma academia “mais gentil” perto do fim da minha formação. Ano passado, durante o “Swab Summer”, período de iniciação obrigatório para todos os cadetes, tornou-se proibido gritar. Wall Street passou por uma transformação muito semelhante.

Havia muitos gritos quando estive por lá de 1999 a 2008, mas havia muito capital de banco sendo comprometido e muitos riscos sendo transferidos. Eu provavelmente gritei mais do que qualquer um e recebi muitos gritos. Mas, no fim do dia, ninguém levava nada disso para o lado pessoal. Se alguém gritasse em uma sala de negociações hoje, isso provavelmente impediria o avanço de sua carreira.

Hoje, Citigroup, Bank of America e Citadel Securities estão revertendo políticas e permitindo que as pessoas trabalhem de casa por mais tempo. E isso não é somente por conta do aumento das taxas de infecção de covid-19, mas, também, porque seus funcionários parecem felizes em trabalhar de casa e incomodados em ter que ir para o escritório.

O Morgan Stanley acaba de flexibilizar e ampliar suas políticas de licença parental e está contribuindo mais para o plano de aposentadoria privada conhecido como 401(k) dos funcionários. O Goldman Sachs Group disse que em breve oferecerá licenças ampliadas para cuidados de familiares e luto. Neste ano, o banco suíço UBS enviou um memorando para lembrar aos funcionários que eles têm direito a uma “hora de bem-estar” todos os dias. Tudo isso acontece depois dos esforços para limitar as horas trabalhadas por banqueiros juniores e estagiários.

Essas mudanças são causadas simplesmente pela dinâmica laboral. É claro que os bônus continuam altos para um grupo pequeno, e a média dos salários, incluindo os bônus, chegou a US$ 438,45 em 2020. Mas devido às crescentes regulamentações, Wall Street não é mais o pote de ouro que já foi para as massas.

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Os bancos têm que competir por talentos com as empresas de tecnologia tradicionais, fintechs e startups de criptomoedas, para citar apenas algumas. A indústria passou por uma mudança semelhante no fim dos anos 90, mas que levou apenas a alterar o jeito de se vestir para ficar em pé de igualdade com as empresas de tecnologia, que permitiam aos funcionários usar camisetas e jogar pebolim no escritório.

Na época, eu estava trabalhando no Lehman Brothers Holdings e o CEO Dick Fuld relutava em autorizar o uso de trajes casuais no escritório, ele queria que seus funcionários vestissem ternos. Mas, no fim, cedeu. No entanto, cerca de dois mais tarde, depois que a bolha da Internet implodiu, o Lehman voltou a pedir o uso de ternos e manteve o código de vestimenta formal até o fim da empresa.

Wall Street já não é mais tão estressante quanto antes. O negócio de transferência de risco praticamente desapareceu, pelo menos com ações, e foi substituído pela negociação algorítmica.

O cálculo do Valor em Risco (VAR), nos grandes bancos de Wall Street tem diminuído continuamente. Há, porém, um tipo diferente de estresse em Wall Street agora, e muito dele diz respeito ao medo de se dizer ou fazer a coisa errada, o medo de enviar um e-mail inadequado, o medo de acidentalmente ficar em apuros por compliance e regulamentação desmensurados e a possibilidade de perder seu emprego só por apertar o botão errado. As comunicações eletrônicas não pareciam ser monitoradas quando eu trabalhava no Lehman. Por causa de irregularidades como o escândalo Libor, hoje, todos os e-mails, mensagens instantâneas e telefonemas são monitorados. Há muitas oportunidades para, sem qualquer intenção, cometer um erro que pode lhe custar muito caro.

Isso talvez não pareça um avanço, mas é. E é bom que os bancos estejam se tornando lugares mais acolhedores para se trabalhar, porque Wall Street foi bastante não civilizada algumas vezes. Há muitos representantes durões da geração X que gostam de contar histórias sobre como as coisas eram difíceis antigamente em Wall Street e como são fáceis para os “moleques” agora.

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É verdade que o risco de ser atingido por um telefone arremessado está quase se aproximando de zero e talvez existam mais mordomias, porém o trabalho tornou-se muito mais tedioso. Quando penso em Wall Street hoje, não lamento a perda da cultura de trader machista. Mas lamento, de verdade, a perda da tomada de risco. Essa era a característica emocionante que fazia trabalhar em uma panela de pressão ser divertido, não as mordomias.

*Jared Dillian é o editor e publisher do The Daily Dirtnap, estrategista de investimentos da Mauldin Economics e autor de “Street Freak” e “All the Evil of This World”.

Esta coluna não reflete necessariamente a opinião do conselho editorial ou da Bloomberg LP e seus proprietários. /TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

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