Criptomoedas

Calote da 3AC expõe riscos de alavancagem excessiva no mercado cripto

A Celsius, outra empresa cripto nos holofotes, também está no centro das dúvidas sobre alavancagem no mercado

Calote da 3AC expõe riscos de alavancagem excessiva no mercado cripto
Mercado de criptomoedas vive momentos de instabilidade com o inverno cripto e agora com sombra de calote pela 3AC. (Foto: Reuters/Dado Ruvic)
  • Na segunda-feira (27), a corretora Voyager Digital emitiu um aviso de inadimplência do fundo Three Arrows Capital (3AC) de mais de US$ 670 milhões
  • A derrocada do 3AC começou a ser desenhada há apenas pouco mais de um mês, quando dados elevados de inflação tornaram indiscutível a necessidade de o Federal Reserve (Fed) subir juros em ritmo agressivo
  • Diante das perspectivas por juros mais altos em economias desenvolvidas, o quadro de incertezas deve dificultar uma recuperação sustentada das moedas virtuais

Por André Marinho – O bilionário Zhu Su costumava ser ativo nas redes sociais com visões extremamente otimistas sobre criptomoedas. O empresário era, inclusive, o principal proponente da tese de que um “superciclo” sem precedentes catapultaria o bitcoin a US$ 2,5 milhões. Desde que seu fundo de hedge começou a sucumbir ao tombo recente do mercado, há duas semanas, um silêncio sepulcral tomou conta da página do magnata.

Na segunda-feira (27) , a corretora Voyager Digital emitiu um aviso de inadimplência do fundo Three Arrows Capital (3AC) de mais de US$ 670 milhões. O valor é referente a um empréstimo de US$ 350 milhões cotados na stablecoin USDC e mais 15,250 bitcoins, que valiam cerca de US$ 323 milhões no dia. Na manhã de ontem, uma corte das Ilhas Virgens Britânicas determinou a liquidação do fundo. As repercussões estruturais do calote ainda são incertas, mas o episódio expõe fragilidades estruturais que podem fortalecer o ímpeto por maior regulação.

Em particular, esquemas de alavancagem ainda nebulosos devem entrar na mira de autoridades, embora o contágio do chamado “inverno cripto” para o setor financeiro como um todo ainda seja encarado como um risco pequeno. “Temos visto um ciclo normal do mercado“, avalia o chefe de pesquisa da gestora especializada em cripto Titanium Asset, Ayron Ferreira. “Nos próximos meses, vamos ver a saída dos players alavancados e muito mais regulação estável, principalmente das stablecoins”, acrescenta.

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A derrocada do 3AC começou a ser desenhada há apenas pouco mais de um mês, quando dados elevados de inflação tornaram indiscutível a necessidade de o Federal Reserve (Fed, o banco central americano) subir juros em ritmo agressivo. O cenário provocou uma onda de liquidação de criptoativos que desorganizou o algoritmo que garantia a paridade da stablecoin TerraUSD (UST) com o dólar. A equivalência era garantida por uma complexa equação envolvendo o token Luna, parte da mesma rede.

O colapso das divisas “irmãs” abalou a estrutura financeira do fundo com sede em Cingapura. Segundo o jornal The Wall Street Journal, no início do ano, a empresa havia investido US$ 200 milhões em lunas como parte de um esforço conjunto para ajudar a Luna Foundation Guard, a organização sem fins lucrativos responsável pela UST. “A situação Terra-Luna nos pegou muito desprevenidos”, admitiu Kyle Davies, cofundador da 3AC, em entrevista ao Journal/.

O primeiro sinal claro de que havia algo errado veio em 14 de junho, em uma postagem vaga de Zhu Su no Twitter: “Estamos em processo de comunicação com as partes relevantes e totalmente comprometidos em resolver isso”, escreveu, na postagem mais recente na rede social. Nas horas e dias seguintes à mensagem, a verdadeira extensão dos problemas foi sendo revelada em um “efeito dominó” que se espalhou pelo setor.

Sócio do fundo de venture capital focado em cripto e blockchain Tagus Capital, Ilan Solot explica ao Broadcast que o golpe crucial à 3AC envolveu uma operação comum no mercado. A rede blockchain Ethereum prepara a transição do protocolo conhecido como “proof of work” para um modelo menos intensivo em energia, o “proof of stake”. Por meio dele, para validar uma transação no sistema, o investidor mantém um token bloqueado na rede e, em troca, recebe um rendimento. Antes da atualização ser concretizada, a dinâmica conhecida como “staking” é realizada no ambiente Beacon Chain, que bloqueia um valor mínimo de 32 unidades de ether, o token da Ethereum.

Para tornar o processo mais acessível, a plataforma Lido Finance criou uma solução em que o usuário faz o staking de qualquer volume de ether e, em troca, recebe o derivativo da moeda, o stETH. Ao contrário da Beacon Chain, que deixa o recurso retido até que a transição da Ethereum seja finalizada, a stETH pode ser vendida ou emprestada a outra plataforma. “O que a Lido faz é pegar algo que não é liquido e o torna líquido”, resume Solot.

Glossário DeFi

Proof of Work Mecanismo de consenso no qual, para validar uma transação, é necessário resolver uma equação matemática. O primeiro usuário a solucioná-la atualiza a blockchain e, em troca, recebe determinada quantidade de criptoativos, no processo conhecido como mineração. Demanda enorme consumo de energia. Foi popularizado pelo bitcoin.

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Proof of Stake Criado como uma alternativa ao proof of work, constiui um mecanismo de consenso no qual a validação do bloco é feita de maneira “pseudo-aleatória”. O usuário que faz o chamado staking bloqueia uma quantidade de moedas na rede como participação para executar o conseno. A rede ethereum prepara transição a esse mecanismo.

Stablecoins, criptomoedas lastreadas em ativos estáveis, como uma moeda fiduciária (na maior parte dos casos, o dólar) Staked Ether Token gerado pelo processo de staking na Ethereum. Como o ativo fica bloqueado, a Lido Finance permite que usários troquem qualquer quantidade de ether por stETH, que é líquido. Em teoria, o stETH deve ser pareado ao dólar, mas essa equivalência se perdeu durante o tombo recente do mercado.

Desde março, a stETH começou a ser aceita como garantia em negócios conduzidos na plataforma de empréstimos DeFi AAVE. Nela, investidores passaram a depositar a stETH e a pegar ether emprestado, com a confiança de que os dois ativos seriam, na prática, equivalentes. “Só que, quando houve a perda de paridade da UST com o dólar, o mercado começou a questionar as outras paridades”, lembra Solot. “Quando estou estourou a crise da Terra, a diferença entre stETH e ETH começou a abrir”, acrescenta.

É nesse ponto que entra o fundo Three Arrow Capital, que detinha considerável exposição à stETH. Com dificuldades para cumprir as chamadas de margens, a 3AC pegou empréstimo com a Voyager Digital, subsidiária da corretora Vyoager. O prazo para o pagamento venceu na última segunda-feira, quando a companhia emitiu o aviso de inadimplência.

O caso acendeu alerta para o risco de contágio sistêmico, uma vez que o fundo havia tomado empréstimos com uma série de empresas, entre elas as credoras de cripto BlockFi e Genesis. A plataforma Celsius também tinha considerável posição em stETH e, na esteira da crise, chegou a suspender os saques de clientes. “O pior pode ainda não ter passado”, adverte Ferreira, da Titanium Asset.

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A Celsius, aliás, também está no centro das dúvidas sobre a alavancagem no mercado. A empresa, uma das principais credoras de cripto, cresceu apoiada por uma arrojada estratégia de risco, segundo reportagem do The Wall Street Journal publicada hoje. A companhia costuma se vender como um alternativa segura aos bancos tradicionais, mas emitia uma série de empréstimos com garantias limitadas, de acordo com documentos de investidores.

Diante das perspectivas por juros mais altos em economias desenvolvidas, o quadro de incertezas deve dificultar uma recuperação sustentada das moedas virtuais. Depois de recuar à mínima em 18 meses, a US$ 18 mil, o bitcoin recuperou a marca de US$ 20 mil, onde permanece estagnado há cerca de uma semana. “O bitcoin permanece ancorado em torno do nível de US$ 20 mil e não o romperá até que Wall Street esteja confiante de que uma desaceleração mais ampla da economia não está acontecendo”, prevê o analista Edward Moya, da Oanda.

Apesar disso, as consequências para as áreas mais convencionais do mercado financeiro ainda são encaradas como limitadas, mesmo com o crescente ingresso de investidores institucionais no setor. “O risco para o setor financeiro geral é baixo. Não porque seja um mercado isolado, o que não acredito que seja mais, mas porque ainda é pequeno comparado com os demais”, explica Solot. “Essa crise vai atrasar a adoção de criptomoedas, sobretudo no varejo“, pondera.

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