Criptomoedas

As criptomoedas estão por todos os lados, menos na caixa registradora

Há poucos indícios de que as moedas digitais estejam no início de algum tipo de conquista em grande escala

As criptomoedas estão por todos os lados, menos na caixa registradora
Atualmente, cerca de 30 mil caixas eletrônicos de Bitcoin estão espalhados em locais dos Estados Unidos como postos de gasolina, lojas de bebidas e salões de beleza. Foto: Envato
  • Embora uma pesquisa recente tenha descoberto que 16% dos americanos usaram criptomoedas de alguma forma, a maioria compra a moeda digital como um investimento especulativo, não como uma forma de pagamento para bens e serviços
  • Mais opções para o uso das moedas digitais em transações do nosso dia a dia poderiam ajudar. Gigantes do setor de pagamentos anunciaram parcerias com empresas de criptomoedas

(Tory Newmyer, The Washington Post) – O bilionário e executivo de tecnologia Michael Saylor chamou o Bitcoin de “influente invenção da raça humana”. O site dele descreve a criptomoeda como “um banco no espaço cibernético” que oferece uma “poupança simples e segura a bilhões de pessoas”. Recentemente, ele afirmou ter 17,732 Bitcoins, o equivalente a cerca de US$ 740 milhões.

Mas uma coisa que Saylor não consegue fazer com Bitcoins é pagar pelo coquetel de camarão de US$ 18 no Tony and Joe’s Seafood Place, restaurante localizado vários andares abaixo de sua cobertura na orla de Georgetown, em Washington. Embora o estabelecimento tenha um caixa eletrônico que pode converter dinheiro em Bitcoin, o restaurante não aceita a criptomoeda.

“Eu aceitaria primeiro o dinheiro do Banco Imobiliário antes de receber criptomoedas”, disse um gerente que se recusou a dar seu nome.

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Atualmente, cerca de 30 mil caixas eletrônicos de Bitcoin estão espalhados em locais dos Estados Unidos como postos de gasolina, lojas de bebidas e salões de beleza; há quatro anos, esse total era de 1.800. Quase metade dos 17 mil caixas da Coinstar, que recebem moedas e devolvem cédulas, agora vendem Bitcoin. E os consumidores têm uma gama crescente de opções para comprar, vender e enviar a moeda digital, incluindo aplicativos de pagamento populares, como o Venmo e o Cash App.

Culturalmente, a criptomoeda está pronta para uma onipresença ainda maior: no mês passado, a arena multiuso Staples Center, em Los Angeles, teve o nome trocado para Crypto.com Arena, depois de um acordo de US$ 700 milhões com a exchange de criptomoedas com sede em Cingapura. O Miami Heat agora joga na FTX Arena, outra arena rebatizada com nome de uma exchange de criptomoedas. E ambas as empresas planejam exibir anúncios durante o Super Bowl do próximo mês, que podem atrair 100 milhões de espectadores.

Mas, apesar de toda essa promoção, há poucos indícios de que as moedas digitais estejam no início de algum tipo de conquista em grande escala. Embora uma pesquisa recente do Centro de Pesquisa Pew tenha descoberto que 16% dos americanos usaram criptomoedas de alguma forma, a maioria compra a moeda digital como um investimento especulativo, não para o propósito originalmente pretendido – como uma forma de pagamento para bens e serviços.

“Isso não está acontecendo”, disse Dan Dolev, analista de tecnologia financeira da Mizuho Securities, sobre a ideia de a criptomoeda estar substituindo o dinheiro vivo. “Eu nem tentaria quantificar essa troca porque ela é muito insignificante. As pessoas estão comprando criptomoedas porque acham que elas vão apenas se valorizar. Ou porque ouviram que é o futuro. Ou porque não sabem o motivo de elas estarem sendo compradas.”

Em relação ao Bitcoin, a primeira criptomoeda e ainda a mais utilizada, apenas um décimo das transações equivale a qualquer atividade “economicamente significativa”, de acordo com um estudo divulgado em outubro pelo Departamento Nacional de Pesquisas Econômicas dos EUA (NBER, na sigla em inglês). E dessa fatia, o estudo concluiu que os traders com o objetivo de comprar na baixa e vender na alta foram responsáveis pela grande maioria das movimentações.

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Para alguns defensores do Bitcoin, não há problemas nisso. Saylor, um dos maiores pregadores da criptomoeda, não quis dar entrevista para esta matéria. Mas em outros lugares, ele já disse que vê o token digital como um ativo semelhante ao ouro, destinado a ser comprado e mantido, não usado como uma alternativa ao dólar.

“Você não quer pagar pelo seu café com seu Bitcoin. Você quer pagar pelo seu café com uma moeda”, disse Saylor à CoinDesk TV em uma entrevista recente. “Na verdade, não acho que faça sentido pagar por coisas com um ativo em valorização. Faz sentido pagar as coisas com uma moeda desvalorizada.”

Saylor faz parte de um grupo conhecido como “baleias” do Bitcoin, investidores riquíssimos que controlam uma quantidade enorme do ativo. Além de suas participações pessoais, a empresa de Saylor, a fabricante de softwares para negócios MicroStrategy, usou suas reservas corporativas para comprar Bitcoin e fez empréstimos para adquirir mais; agora a empresa detém cerca de US$ 5,2 bilhões na moeda digital.

Aliás, os 10 mil principais investidores individuais em Bitcoin possuem aproximadamente um terço de todos os tokens digitais em circulação, revelou a pesquisa do NBER, uma concentração maior de riqueza do que existe com o dólar entre as famílias americanas mais ricas. No segundo trimestre de 2021, as transações acima de US$ 10 milhões representaram mais de 60% da atividade no crescente mercado financeiro descentralizado, a alternativa oferecida pelas criptomoedas aos serviços financeiros tradicionais, de acordo com um relatório da Chainalysis.

Conforme o mercado global de criptomoedas aumentou em valor – triplicando no ano passado de US$ 774 bilhões para US$ 2,2 trilhões, de acordo com a CoinMarketcap –, ele atraiu uma faixa mais ampla da população. Um em cada seis americanos disse ter investido, negociado ou usado de outro jeito as criptomoedas, o que representa um aumento em relação a 2015, quando apenas 1% afirmou ter tido algum contato com a moeda digital, segundo o Pew.

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E o conjunto de investidores atuais está cada vez mais diversificado. Uma pesquisa realizada pela NORC, organização independente de investigação da Universidade de Chicago, descobriu que 44% daqueles que compraram ou negociaram criptomoedas no ano passado não eram brancos, 41% eram mulheres e 35% tinham renda familiar anual inferior a US$ 60 mil. A pesquisa também revelou que, em média, o investidor em criptomoedas tem menos de 40 anos e não tem diploma universitário.

Para algumas empresas consagradas que desejam participar desse mercado, essa talvez seja toda a evidência de que precisam para acreditar no futuro do dinheiro digital.

O CEO da Block, Jack Dorsey, cofundador do Twitter que recentemente pediu demissão da gigante das redes sociais, prevê que o Bitcoin substituirá o dólar e se tornará a “única moeda” do mundo dentro de uma década. (A Square, que oferece serviços financeiros e pagamentos digitais para vendedores de comércio eletrônico, anunciou em dezembro que passaria a se chamar Block.)

A Block está atuando com esse objetivo em mente, permitindo às pessoas comprar e vender a moeda digital por meio de seu serviço de pagamento, o Cash App. A empresa também está em busca de uma série de iniciativas focadas na expansão do sistema descentralizado em que o Bitcoin está baseado, um esforço projetado para “ajudar o Bitcoin a alcançar o grande público”, disse Dorsey a analistas na última reunião de resultados da empresa em novembro.

O “empurrãozinho” está começando de um jeito discreto. As transações de Bitcoin no Cash App cresceram nos últimos dois anos, segundo a empresa.

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Mas as taxas das transações com criptomoedas representaram menos de 4% do lucro bruto da empresa em seu terceiro trimestre. E o volume de transações com Bitcoin na plataforma caiu quase pela metade do primeiro trimestre do ano para o terceiro – uma redução que o analista da Wolfe Research, Darrin Peller, atribuiu aos consumidores estarem se sentindo menos animados depois de gastar ou investir o dinheiro recebido como auxílio pelo governo. O Bitcoin “tem demorado muito a ser adotado pelos consumidores”, disse Peller.

Mais opções para o uso das moedas digitais em transações do nosso dia a dia poderiam ajudar. As gigantes do setor de pagamentos Visa e Mastercard anunciaram parcerias com empresas de criptomoedas, permitindo que bancos e comerciantes ofereçam aos clientes a opção de gastar, investir e receber recompensas em moeda digital.

A Coinbase, uma das maiores exchanges de criptomoedas dos EUA, agora oferece um cartão de débito Visa com recompensas que vincula os usuários às suas contas na plataforma; a Crypto.com também tem um cartão.

Mas o caminho das criptomoedas para tentar ser adotada em massa pelos consumidores dificilmente será uma linha reta. Os grandes varejistas americanos que consideraram aceitar Bitcoin por meio de seus sites em 2014 – entre eles a Dell e a Expedia – mudaram de ideia depois quando ela não chamou a atenção dos clientes. O CEO da Tesla, Elon Musk, outro entusiasta bilionário do Bitcoin, anunciou em 2021 que a montadora de carros elétricos aceitaria a criptomoeda como pagamento. Mas ele voltou atrás menos de dois meses depois, com a justificativa da preocupação com a quantidade de energia usada para minerar o Bitcoin.

A Meta, empresa controladora do Facebook, deparou-se com seus próprios desafios para suas ambições com as criptomoedas. A gigante das redes sociais almejava se tornar uma poderosa empresa de pagamentos digitais em 2019 e revelou planos para lançar uma criptomoeda que permitiria aos usuários trocar dinheiro sem taxas de transação. Mas a preocupação entre os reguladores federais de que o produto pudesse apresentar riscos para o sistema financeiro prejudicou o projeto até o momento. David Marcus, o executivo responsável pelo produto, deixou a empresa no final do ano passado.

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A Overstock, varejista de móveis on-line, aceita Bitcoin desde 2014. Outras grandes marcas americanas – entre elas AT&T, Home Depot e Regal Cinemas – têm parcerias com empresas de processamento de pagamentos com criptomoedas para oferecer aos clientes essa alternativa. E algumas instituições de caridade de destaque, inclusive a Cruz Vermelha Americana e a National Kidney Foundation, dizem em seus sites que agora aceitam doações em criptomoedas.

As pequenas empresas têm sido mais lentas em seguir o exemplo. Na Reiter’s Books, livraria independente em frente ao Banco Mundial, no centro de Washington, os clientes podem encontrar vários títulos sobre a tecnologia blockchain nas prateleiras e converter dinheiro em Bitcoin no caixa eletrônico da loja. Mas o proprietário do estabelecimento, Robert Nelson, não aceita criptomoedas como forma de pagamento.  E ele diz que, até o momento, nenhum cliente usou a opção de criptomoedas no caixa eletrônico, que pertence e é operado por um fornecedor que lhe paga uma parcela do lucro com as transações. “Tudo isso é desconcertante”, disse Nelson.

Apesar das dúvidas quanto ao valor prático das criptomoedas, seus enormes ganhos como um ativo de investimento se mostraram irresistíveis, até mesmo para alguns investidores normalmente cautelosos com o risco.

Em outubro, o Fundo de Auxílio e Aposentadoria dos Bombeiros de Houston disse que comprou US$ 25 milhões em Bitcoin e Ether, a segunda criptomoeda mais popular. E dois fundos para trabalhadores no maior condado da Virgínia também estão mergulhando de cabeça nas criptomoedas: o Sistema de Aposentadoria dos Policiais do Condado de Fairfax e o Sistema de Aposentadoria dos Funcionários do Condado de Fairfax estão investindo um total de US$ 50 milhões em um fundo da Parataxis Capital, que compra moedas digitais e derivativos de criptomoedas.

Em outros lugares, os principais gestores de ativos na BlackRock, Fidelity e Vanguard estão investindo nas mineradoras de Bitcoin, as importantes redes de computação e grandes consumidoras de energia para validar as transações na rede descentralizada. E embora a Fidelity e a Vanguard não tenham permitido ainda que os trabalhadores que poupam para a aposentadoria invistam seus fundos  em criptomoedas, o setor pode seguir esse caminho: durante o verão, o ForUsAll, um pequeno provedor de fundos de aposentadoria, anunciou uma parceria com a Coinbase que permite aos participantes do plano investir até 5% de seus fundos de aposentadoria em moedas digitais.

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“Minha opinião é que a criptomoeda talvez seja apropriada para alguns investidores de varejo, mas, com certeza, não para todos”, disse Sarah Hammer, diretora sênior do Programa de Investimentos Alternativos da Wharton School, da Universidade da Pensilvânia. “Um princípio fundamental do investimento é que, à medida que você se aproxima da aposentadoria, sua carteira deve ser cada vez menos volátil, para que você possa contar com ela como renda para a aposentadoria. Portanto, convém às pessoas serem cautelosas.”

Um sell-off contínuo das principais criptomoedas deixa isso claro. O Bitcoin caiu quase 40% desde que atingiu um pico histórico de cerca de US$ 69 mil há dois meses. E o Ether teve uma redução de valor semelhante durante esse período. O Bitcoin tem um histórico semelhante de volatilidade. Em 2021, seu preço caiu pela metade de março a julho antes de subir no outono americano.

O próprio setor, repleto de fortunas recém-criadas, está investindo pesado para promover a ideia de que a criptomoeda é uma aposta segura, recorrendo a uma série de celebridades para gravar anúncios de TV incentivando os espectadores a investir nele. Uma delas foi o quarterback do Tampa Bay, Tom Brady, que em setembro disse ao podcast da SiriusXM “Let’s Go” que “adoraria” receber uma parte de seu salário da NFL “em tokens de Bitcoin, Ethereum ou Solana”.

Mas um anúncio da Crypto.com com o ator Matt Damon envia uma mensagem um pouco diferente. Depois de enaltecer uma série de aventureiros ao longo da história como “aqueles que aproveitam o momento e se empenham”, surge atrás de Damon um assustador planeta vermelho no espaço sideral e o ator diz: “A sorte favorece os corajosos”. // TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

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