- A primeira geração a nascer logo após o Plano Real está chegando à vida adulta com baixo poder aquisitivo. Ou, ao menos, com essa sensação
- Um levantamento feito pela Fipe mostra que o preço dos imóveis em São Paulo dobrou desde 1995, mesmo descontando a inflação do período
- Mas a Gen Z está enfrentando as barreiras, financeiras e culturais, para colocar o sonho da casa própria de pé; veja as dicas dos especialistas
A primeira geração a nascer logo após o Plano Real está chegando à vida adulta com baixo poder aquisitivo. Ou, ao menos, com essa sensação. Nas rodas de conversa da Geração Z – nome dado aos nascidos entre a metade da década de 1990 e 2010 –, predomina um sentimento de que a aquisição de grandes bens está cada vez mais complexa.
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“Na época dos meus pais, trocava-se uma moto por um terreno”, brinca Vinícius Moreira, de 27 anos, morador de Belo Horizonte. “Logo na minha vez de ser adulto, tudo é caríssimo. A moto, o terreno, o imóvel pronto”. A carioca Audryn Karolyne, de 28 anos, vai além: “a sensação que tenho é que nunca vou ter uma casa própria.”
Para especialistas, os dilemas entre a Gen Z e o sonho da casa própria passam por uma questão geracional, fruto de um comportamento mais imediatista, mas também um perfil de consumo imobiliário diferente das gerações anteriores. O fato, porém, é que os preços também jogam contra.
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Um levantamento exclusivo feito pela Fipe a pedido do E-Investidor ilustra esse cenário. A partir de dados do Índice FipeZAP Histórico e do Índice FipeZAP Residencial de Venda, comparamos a variação do preço médio do metro quadrado na cidade de São Paulo, utilizando como referência um apartamento de dois quartos, com cerca de 70 m², no bairro de Pinheiros.
Em junho de 1995 – quando a Gen Z começou –, esse perfil de imóvel custava cerca de R$ 71 mil. Corrigindo o valor pela inflação do período, o preço atual deveria ser de aproximadamente R$ 436 mil. Mas a teoria está bem longe da prática: uma propriedade nessas condições está avaliada em R$ 879 mil em 2024.
A alta no preço do metro quadrado de junho de 1995 a junho de 2024 foi de 1.126,3%. No mesmo período, o Índice de Preços ao Consumidor (IPCA) variou 508,7%. Isso significa que, mesmo descontando a inflação acumulada no período, o valor dos imóveis em SP subiu 101,5% em termos reais.
Alisson Oliveira, coordenador do FipeZAP, diz que a valorização acima da inflação reflete uma combinação de fatores. “Alta demanda por imóveis, oferta restrita de novos terrenos, expansão do crédito imobiliário e o desenvolvimento urbano que valorizou diferentes regiões da cidade. Esses fatores, em conjunto com o aumento real (acima da inflação) da renda das famílias, resultaram em uma valorização significativa dos imóveis ao longo do período”, destaca.
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As cidades cresceram em tamanho e população, há uma escassez de moradia a preços viáveis e as taxas para hipotecas são altas. Para Ricardo Teixeira, coordenador do MBA em gestão financeira da FGV, não se trata apenas de uma “inflação de moradia”, mas de um processo mais complexo. “Os terrenos ficaram mais caros porque ficaram mais bem localizados em relação à cidade. As construções ficaram mais sofisticadas e o material de construção também subiu”, elenca. “Quanto mais demanda, ou a oferta aumenta ou o preço sobe.”
E isso tem se refletido no número de financiamentos do País. O crédito imobiliário representa cerca de 10% do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil, mas está estagnado desde 2015. Não é um problema só da Gen Z, mas do mercado imobiliário como um todo. Em um cenário de juros altos, resgates da caderneta de poupança e ampliação do uso dos recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) para outras finalidades que não a compra de imóvel, o governo tem discutido formas de ampliar a concessão de crédito e impedir que os financiamentos fiquem cada vez mais escassos.
A sensação de dificuldade no início da vida adulta não é exclusividade da Gen Z. “Nunca teve uma geração que chegasse à idade produtiva, de ganhar os primeiros salários, já com a possibilidade de fazer aquisições”, diz Teixeira, da FGV.
Ele reconhece que há algumas mudanças em termos de comportamento no decorrer dos anos. “Hoje, há um incentivo ao consumo muito maior do que existia no passado. Os pais da maioria da Geração Z compraram bem menos do que eles consomem hoje, o que, sem dúvida nenhuma, facilitava a construção de patrimônio”, afirma.
E isso se reflete no perfil de imóveis que os mais jovens têm buscado. Com o crescimento das cidades, a Gen Z tem priorizado lugares menores. Segundo especialistas em investimentos imobiliários, apartamentos do tipo studio, nome dado a imóveis com menos de 40 m² sem parede interna, estão em plena expansão em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Em geral, esses empreendimentos têm um público prioritário: pessoas que buscam uma moradia ao redor de facilidades, com localização estratégica, com faixa etária entre 20 a 39 anos.
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Só para se ter ideia, dados do Sindicato das Empresas de Compra, Venda, Locação ou Administração de Imóveis Residenciais ou Comerciais de São Paulo (Secovi-SP) revelam que os studios saltaram de 561 unidades a R$ 8.094 por metro quadrado, em 2016, para 2.393 unidades a R$ 14.144 até julho deste ano.
Para Marcelo Tapai, especialista em direito imobiliário e família e sócio do Tapai Advogados, comprar o primeiro imóvel sempre foi uma meta difícil de ser alcançada, um objetivo de longo prazo. O que muda, agora com a Gen Z chegando à vida adulta, é a forma de olhar para esse desafio. “Essa é uma geração que tem um imediatismo maior”, destaca Tapai. “Imóvel sempre foi um bem comprado pela família com uma composição de renda familiar. Os jovens hoje pretendem fazer essa compra de forma individual, e isso certamente dificulta e complica a situação.”
Mas isso não significa que este não seja um plano no radar dos mais novos. O Estadão apurou que essa ideia muitas vezes comum de que os mais jovens não querem acumular patrimônio deixa de lado alguns fatores importantes – incluindo a classe. Um estudo feito pela consultoria Brain Inteligência Estratégica apontou que 68% das pessoas entre 21 a 34 anos preferem comprar um imóvel a morar de aluguel.
E é este sonho que leva muita gente, inclusive a Gen Z, a investir. A 7ª edição do Raio X do Investidor Brasileiro, pesquisa realizada pela Anbima (Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais) em parceria com o Datafolha, divulgada em julho deste ano, mostra que a compra de um imóvel é, há três anos, o principal objetivo por trás das aplicações financeiras dos brasileiros.
O sonho da casa própria é o principal destino apontado para o dinheiro por 37% dos entrevistados nascidos depois da metade da década de 90. “Logo depois da pandemia, percebemos que aumentou a preferência da população em usar os recursos investidos para viagens e lazer. Em 2023, o quadro mudou e a casa própria voltou a crescer na preferência das pessoas. Especialmente entre as mais jovens”, explica Marcelo Billi, superintendente de sustentabilidade, inovação e educação da Anbima.
Difícil, mas não impossível
Apesar do desafio, há muita gente na Gen Z disposta a registrar um bem no próprio nome. Especialmente aqueles jovens mais perto da casa dos 30, completando seus primeiros anos de estabilidade profissional e financeira. As histórias mostram que é possível evitar o aluguel e começar a pagar as parcelas do seu primeiro imóvel.
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Quando Yuri Matheus Gouveia e Jennefer Oliveira, de 29 e 28 anos, decidiram se casar, a casa própria tinha um lugar diferente no entendimento dos dois. A família dele nunca teve uma casa no próprio nome, então ele guardava o desejo da construção de patrimônio como uma segurança no futuro. Para ela, no entanto, os valores do aluguel não faziam sentido. “Não pretendo ficar me mudando o tempo inteiro, então não fazia sentido pagar aquele valor em um aluguel sendo que poderia pagar para comprar uma casa que seria minha”, conta Oliveira.
O casal começou a procura dos imóveis a partir de um preço teto: o valor mensal não poderia ultrapassar mais de 30% da renda dos dois, incluindo o valor do condomínio, no caso de um apartamento. Ela queria morar em São Paulo, ele, no ABC Paulista. Pesquisando, viram que os imóveis na capital não cabiam na faixa de preço estabelecida e ainda eram muito menores do que os que estavam encontrando na região metropolitana. A saída encontrada foi um apartamento de cerca de 64 metros quadrados em Santo André, perto da linha de trem que leva os dois aos trabalhos em SP, sem estar distantes das famílias e das outras atividades da rotina.
O imóvel foi financiado em 30 anos pela tabela SAC. Mas foi a organização financeira dos dois antes do financiamento que permitiu tirar o sonho da casa própria do papel: utilizando o que pouparam juntos e os saldos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), eles tinham 40% do valor do imóvel para dar de entrada.
“Mesmo antes de contrair a dívida do apartamento, já sabíamos quanto queríamos gastar e começamos a guardar. Era uma ‘dívida’ que tínhamos com nós mesmos”, diz Gouveia. “Sempre que o salário caia, já guardávamos aquele valor, com a responsabilidade de não elevar o nosso custo de vida. Hoje, a parcela do financiamento é parecida com aquilo que guardávamos por mês”.
A história de Beatriz Vianna e Leonardo Couto, de 26 e 29 anos, é parecida. Depois da pandemia da covid-19, começaram a amadurecer a ideia de morarem juntos, juntando dinheiro e procurando apartamentos para alugar no Rio de Janeiro.
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A ideia era encontrar um imóvel de dois quartos, na Zona Sul da capital carioca, para ficar mais perto do trabalho. Nas visitas, no entanto, encontravam imóveis muito antigos, com um aluguel que cabia no bolso, mas taxas de condomínio muito elevadas. O “ponto de virada” para pensar em comprar em vez de alugar foi quando visitaram um apartamento que necessitava de reforma – por que gastar esse dinheiro em um bem que nem seria deles, começaram a se questionar.
E tiraram o planejamento financeiro do papel. Anotando todos os gastos e receitas mensais e anuais em uma planilha do excel, há dois anos o casal financiou pela Caixa Econômica um imóvel de cerca de 45 metros quadrados em Porto Maravilha, a região portuária do Rio que tem sido revitalizada nos últimos anos. Para Vianna, além da disciplina financeira, o apoio dos pais também ajudou: “Podemos agora sair da casa dos pais um pouco mais tarde. Se tivéssemos que pagar aluguel, além do financiamento e da taxa de obra, seria complicado.”
A família dos dois sempre teve a “cultura da casa própria” e apoiou o casal na ideia desde o primeiro momento. Foi dos amigos que veio a surpresa. “Foi uma reação muito curiosa. Todo mundo falava ‘caramba, comprar um imóvel? Nunca tinha passado isso pela nossa cabeça’. Não é muito comum para nossa geração, que busca a independência muito cedo e o aluguel é uma saída mais fácil, mas, depois que demos esse passo, alguns amigos próximos, também de vinte e poucos anos, começaram a pensar nessa ideia também”, conta ela.
Como começar a organizar o sonho da casa própria
A ideia de comprar o primeiro imóvel precisa ser bem planejada antes de sair do papel. Isso porque a realização desse sonho vai exigir uma organização financeira de longo prazo; em muitos casos, de décadas. Antes de qualquer coisa, é preciso ter duas coisas em mente, orienta Marcelo Milech, planejador financeiro CFP pela Associação Brasileira de Planejamento Financeiro (Planejar).
“Constitua uma reserva de emergência, que cubra o equivalente a pelo menos 6 meses de despesas regulares, e nunca comprometa mais do que 30% da sua renda disponível com prestações de financiamento. Sem esse passo inicial, não é viável tomar essa decisão sob risco alto de inadimplência e perda de crédito”, explica.
Com uma primeira reserva já parada, é importante procurar imóveis cujo preço – ou parcela – caiba no orçamento, mas com atenção para a localização. É interessante visitar a região desejada em todos os turnos do dia, para saber como são os arredores em questão de mobilidade urbana, barulhos externos, e segurança. Mas também porque isso interfere no preço.
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“A localização exerce um papel essencial na precificação, pois a urbanização do bairro é fundamental, com as chamadas externalidades positivas do imóvel”, diz Hugo Meza, professor do MBA em controladoria e finanças da Universidade Positivo (UP).
A outra parte que exige muita atenção é a do financiamento imobiliário. Como os valores são elevados, é difícil encontrar quem opte ou até quem possa quitar o valor à vista. Por causa disso, muita gente recorre aos bancos e instituições financeiras para conseguir crédito e realizar a compra.
Essa burocracia envolve muitas etapas, que precisam ser acompanhadas de perto, especialmente para quem está tendo contato com o tema pela primeira vez como os mais jovens. “Buscar financiamento do SFH (Sistema Financeiro da habitação) ou em cooperativas de crédito é a alternativa mais adequada disponível no mercado financeiro brasileiro”, orienta Milech.
Mas os custos não são baixos, alerta ele. ” Financiar a longo prazo imóveis com taxas de quase 1% ao mês (que é o praticado hoje em dia), não é barato, sendo mais uma razão para uma decisão cuidadosa.”
Por causa disso, é preciso escolher bem a instituição que está oferecendo o crédito imobiliário, as taxas praticadas, e qual será a correção do índice em um financiamento; ou seja, qual indicador atualizará a parcela e o saldo devedor ao longo do tempo. A modalidade mais comum segue a Taxa Referencial (TR), mas também é possível encontrar financiamentos corrigidos pelo IPCA.
O sistema de amortização das parcelas também importa. O Brasil trabalha com dois modelos principais: o Sistema de Amortização Constante (SAC), que permite que o valor da amortização seja constante, enquanto os juros vão diminuindo junto com as parcelas; e a Tabela Price, em que as parcelas são fixas. Nessa modalidade, os juros vão caindo ao longo do tempo, mas a parcela de amortização aumenta.
“Pensando no longo prazo, o sistema SAC é mais interessante porque o fluxo de amortizações é constante, e, ao final, o montante pago será menor que na Tabela Price”, destaca o especialista da Planejar.
Sobrou um dinheiro a mais neste mês? Antecipar parcelas pode ser uma boa opção para quitar a dívida mais rápido, mas é preciso ponderar esta decisão. A amortização antecipada vale a pena desde que as taxas de juros líquidas de impostos das aplicações financeiras, como títulos do Tesouro Direto, sejam inferiores às taxas (custo efetivo total) contratadas no financiamento imobiliário. Na prática, se seu dinheiro rende mais em um investimento de baixo risco, deixe ele aplicado; se a rentabilidade for menor, faz sentido quitar alguma parcela.
“Outro fator de atenção é sempre estar ligado em possíveis quedas nas taxas de longo prazo dos financiamentos, que pode propiciar uma portabilidade ou renegociação da taxa junto ao agente financeiro”, orienta Milech.
Mas o financiamento tradicional não é a única opção. O Minha Casa, Minha Vida, programa de habitação do Governo Federal pode ser uma alternativa para encontrar imóveis menores a preços mais baixos. Podem se inscrever famílias com renda mensal bruta até R$ 8 mil em áreas urbanas, ou de renda anual bruta até R$ 96 mil em áreas rurais. E apenas aquelas pessoas que não tiverem nenhum outro imóvel registrado em seu nome. Seguindo um critério de renda, o governo subsidia ou financia parte do valor do imóvel; facilitando o caminho da casa própria para jovens de classe mais baixa.
“Em geral, as taxas de financiamento praticadas para imóveis incluídos no MCMV são menores, e ainda contam com um subsídio parcial do Tesouro no financiamento”, destaca Milech, da Planejar. “Mas os cuidados devem ser absolutamente os mesmos dos que no financiamento de um imóvel que não seja do programa.”
Uma outra possibilidade para fugir de um financiamento imobiliário é optar por um consórcio. A modalidade funciona assim: um grupo de pessoas paga mensalmente parcelas de determinado valor, para um objetivo financeiro comum a todos. Todo mês alguém é sorteado com uma carta de crédito para a aquisição daquele bem, enquanto as outras podem antecipar a compra concorrendo com lances maiores.
A questão aqui é que não dá para prever quando a compra do imóvel vai sair do papel. “Pode ser uma alternativa de ‘poupança forçada’, porém os custos de administração dos consórcios podem atrapalhar muito”, diz Marcelo Milech. “Há o benefício de ser contemplado por sorteio ou por lance, o que é uma vantagem, porque o consorciado pode comprar o bem (ou receber a carta de crédito), bem antes do prazo final do consórcio.”
Quanto custa financiar um imóvel?
Para ilustrar a quantia que precisaria ser desembolsada, o planejador financeiro Marcelo Milech simulou as taxas e parcelas para algumas condições de financiamentos. Foram levados em considerações três cenários: no primeiro, um imóvel de R$ 250 mil, com uma entrada de R$ 50 mil e o restante financiado pela tabela SAC em 35 anos. As outras duas simulações consideram um imóvel de R$ 500 mil, com uma entrada de R$ 100 mil e os outros R$ 400 mil financiados em 30 e 35 anos.
O planejador levou em conta um Custo Efetivo Total (CET), que inclui a taxa de juros cobrada sobre o crédito e outros encargos, de 10% ou 12% ao ano. “São os dois extremos do que pode ter no mercado atualmente. Não vejo nada abaixo de 10% a.a, e nunca recomendaria fechar um financiamento por mais que 12% aa”, destaca.
Tendo isso em vista, ele levantou ainda qual deveria ser a renda média – da pessoa, casal ou família responsável pela dívida – para que as parcelas não comprometam mais do que 25% da receita mensal, como é indicado por especialistas. Veja os valores:
Os custos não são poucos, mas com organização e planejamento financeiro é possível começar a pagar por um imóvel ainda nos primeiros anos da vida adulta.