A falta de clareza no texto lança a indústria num cenário de insegurança jurídica e risco de retração. Caso sua redação não seja reformulada, poderá haver um aumento no custo do crédito para pequenas e médias empresas, principalmente do varejo. Diante do risco elevado, os investidores passarão a exigir retornos maiores, de um segmento que tem o CDI como referência.
A análise é de Eduardo Solamone, diretor de relações com investidores da Sol Agora, empresa especializada em crédito da gestora canadense Brookfield. “A linguagem que foi introduzida nesse decreto editado pelo governo é vaga demais, o que pode levar a interpretações diversas”, diz o executivo. Na visão dele, é possível entender que todas as operações de antecipação de recebíveis, mesmo feitas via FIDC, passem a ser tributadas.
O Decreto nº 12.466, de 22 de maio de 2025, alterou as regras do IOF, unificando alíquotas e alinhando os regimes de pessoas físicas e jurídicas. As mudanças foram incluídas no Decreto nº 6.306/2007, que trata do tributo. O novo decreto entra em vigor em junho. A taxa padrão para operações de crédito entre empresas será de até 3,95% ao ano, mas aquelas optantes do Simples pagarão 1,95% em operações de até R$ 30 mil.
Crédito bancário x crédito estruturado
A antecipação de pagamentos a fornecedores, como antecipação de recebíveis (forfait) e risco sacado, também passa a ser tributada. A forfait acontece quando uma empresa vende seus créditos futuros (como duplicatas ou promissórias) a uma instituição financeira. Na prática, os FIDCs compram esses recebíveis, antecipam caixa para empresas e repassam o risco ao investidor. Por enquanto, não há impacto nas operações dos fundos, até por causa de entraves operacionais. Os administradores de FIDCs não têm estrutura prontas para recolher o imposto, nem respaldo regulatório claro para fazê-lo.
Ainda não está claro como os FIDCs podem ser atingidos pela medida. Luís Garcia, sócio do Tax Group e do MLD Advogados Associados, diz que a falta de clareza no texto abre margem para judicialização. “O ‘risco sacado’ pode ser considerado como operação de venda de títulos e não de crédito. Além disso, o decreto não deixa claro quem deveria pagar o IOF que incidiria sobre essas operações: a instituição que fez a operação ou o beneficiário da venda do título”, comenta.
Segundo Mariana Venegas, advogada tributarista do Barcellos Tucunduva Advogados, pelo entendimento consolidado da Receita Federal, o IOF só incide sobre cessões de direitos creditórios quando a cessionária é uma instituição financeira. “A controvérsia surge porque os FIDCs, regulados pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), não se enquadram nessa definição. Equipará-los a instituições financeiras por norma infralegal, apenas para fins de tributação, extrapola os limites legais do poder regulamentar”, afirma.
Outro ponto levantado por Garcia é o desvio de finalidade na aplicação do tributo que tem natureza regulatória e não arrecadatória. “Isso traz insegurança jurídica, inibe investimentos e pode levar à queda futura de arrecadação, fazendo do remédio, um veneno para a economia.”
As empresas tomadoras de crédito, em especial as pequenas e médias, são as que mais recorrem a esse tipo de operação para obter capital de giro e o aumento do IOF representa um impacto de curto prazo, prejudicando setores que já têm margens muito apertadas, como o varejo. As operações de antecipação de recebíveis têm, em geral, prazo de crédito curto, de até 12 meses.
Custo equivale a uma alta de 0,5 ponto na Selic
“É um custo alto demais, equivalente a um aumento de até 0,5 ponto percentual na Selic”, alerta Solamone, citando estudos do setor financeiro consolidados pela Febraban (Federação Brasileira dos Bancos). Ele diz que a indefinição é ruim para a indústria dos FIDCs, justamente num momento de expansão dessa classe de ativos, impulsionado pelo maior interesse do investidor pessoa física.
Segundo dados de março da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima), os FIDCs se consolidaram como alternativa tanto para alocação de recursos quanto para o financiamento da economia real. A classe captou R$ 113,5 bilhões em 2024, segunda maior captação entre os fundos, atrás apenas da renda fixa. O tipo Agro, Indústria e Comércio respondeu por R$ 45,8 bilhões (40,4%). Entre 2019 e 2024, o patrimônio líquido cresceu, em média, 30% ao ano.
O decreto mostra, ainda, a contradição do governo Lula, que quer incentivar a economia por meio do crédito, mas atinge em cheio o varejo ao encarecer a antecipação de recebíveis. Na prática, o maior custo da operação com o imposto pode afastá-lo das melhores empresas e deixá-lo apenas para aquelas com pior saúde financeira, que não têm muita escolha de captação. “Como tem muito mais risco relacionado à operação, o prêmio exigido pelo investidor será ainda maior”, diz o executivo.
Setor se mobiliza para mudar texto
Entidades do setor buscam apoio no Congresso para alterar a redação da medida, mas também pressionam o Executivo, por meio da Receita Federal, para deixar o texto mais claro em relação aos fundos. “A esperança é que uma instrução normativa pacifique o entendimento de que os FIDCs seguem isentos do novo IOF”, afirma Solamone, da Sol Agora.
A Associação Nacional dos Participantes em Fundos de Investimento em Direitos Creditórios Multicedentes e Multissacados (Anfidc) se posiciona contra a mudança. Em nota, a entidade afirmou que é historicamente contrária a medidas que elevem o custo do crédito para pessoas jurídicas, especialmente quando afetam pequenas e médias empresas, principais usuárias dos FIDCs como ferramenta de capital de giro.
Alexandre Coutinho, sócio responsável pelas operações de crédito do Pátria Investimentos, afirma que acompanha as discussões, mas vê o tema mais como ‘ruído’ do que como risco concreto para os fundos da casa. Segundo ele, a equipe jurídica monitora os desdobramentos, mas não há qualquer articulação em curso por parte do Pátria, justamente porque a mudança não altera o funcionamento dos seus fundos.
“A estrutura dos nossos FIDCs já considerava a ineficiência da CCB (Cédula de Crédito Bancário) frente à cobrança de IOF. Desde a criação da nota comercial, que é um instrumento tão flexível quanto a CCB, passamos a adotá-la nas operações. Essa migração já vinha ocorrendo e agora só deve acelerar”, diz.
Já a Sol Agora, que atua em crédito para energia solar, estrutura toda sua operação por meio de FIDCs. Com dois produtos principais, um voltado a pessoas físicas e outro para antecipação de recebíveis de pequenas e médias empresas, a companhia já movimenta cerca de R$ 120 milhões nesse segundo braço, diretamente afetado pela nova medida. “O setor de energia solar é altamente dependente de crédito. Atacar os instrumentos que sustentam esse financiamento é comprometer a expansão de um mercado estratégico para o País”, diz Solamone.