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Será o fim do ciclo de otimismo com o dólar?

Redução histórica nas taxas de juros do Fed, políticas de estímulo que aumentam déficit, eleições, pandemia: tudo contribui para a queda da moeda

Será o fim do ciclo de otimismo com o dólar?
Foto: Pixabay
  • Os cavaleiros do apocalipse vaticinam: é o começo do fim. O momento atual lembra outras guinadas semelhantes, ocorridas em 1985 e 2002, quando mudanças súbitas na política monetária viraram a moeda americana de cabeça para baixo e abriram caminho para longos períodos de fragilidade
  • Desde 2014, a moeda norte-americana é a mais supervalorizada entre as principais do mundo, com base nas taxas de câmbio reais – que levam em consideração a balança comercial relativa dos países
  • Acrescente-se à receita as dúvidas em relação à eleição presidencial de novembro e a resposta errática do governo Trump ao coronavírus: pronto, está formado o furacão que pode derrubar o dólar também no ambiente doméstico

(Anchalee Worrachate, Susanne Barton e Katherine Greifeld / Bloomberg) – O tempo escorre na ampulheta do longo ciclo de otimismo em relação ao dólar. Depois de nove anos de solidez, a moeda americana está sendo atacada por todos os lados. Este ano, o Federal Reserve (ou Fed, banco central dos Estados Unidos) seguiu o movimento de instituições irmãs de outros países e retalhou as taxas de juros a níveis historicamente baixos.

Com isso, a vantagem do dólar em relação ao euro e ao iene evaporou. O inchaço na dívida e no déficit corroeu os investimentos estrangeiros nos Estados Unidos, e a régua do comércio exterior indica que está na hora de o dólar entrar em declínio.

Os cavaleiros do apocalipse vaticinam: é o começo do fim. O momento atual lembra outras guinadas semelhantes, ocorridas em 1985 e 2002, quando mudanças súbitas na política monetária viraram a moeda americana de cabeça para baixo e abriram caminho para longos períodos de fragilidade.

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Desta vez, a perspectiva de aridez econômica nos Estados Unidos, comparada aos prognósticos para a Europa, pode precipitar uma nova reviravolta. Não surpreende que as verdinhas tenham despencado para o nível mais baixo dos últimos dois anos, após registrarem o pior mês em uma década. Pela primeira vez em muito tempo, os operadores de câmbio estão em posição de venda.

“O dólar está supervalorizado, e não é de hoje”, diz Jack McIntyre, da Brandywine Global Investment
Management. “Talvez a presente conjuntura sirva como catalisadora de uma tendência de queda para os próximos anos. Já vimos esse filme em momentos em que o valor excessivamente alto da moeda americana forçou a barra. Nessas horas, um choque econômico ou de política monetária é capaz de inverter essa trajetória repentinamente. Parece que isso está acontecendo de novo, graças ao inflado balancete do Fed, a um pico na dívida e à forma com que os Estados Unidos enfrentaram a pandemia”.

É verdade que os pessimistas de carteirinha alertam há anos para o iminente outono do dólar – e há anos erram suas previsões. Inflação, déficits gêmeos, a política frouxa do Fed: nenhum desses temores em relação a uma possível desvalorização do dólar chegou de fato a reduzir sua pujança no mundo real.

A moeda ainda responde por mais de 60% das reservas globais, e é de longe a mais usada para operações internacionais. Além disso, o fim do ciclo de otimismo não necessariamente significa o fim do dólar, conforme aponta Liz Young, da BNY Mellon Investment Management: “Há uma diferença entre retração e desmoronamento completo. Estamos assistindo a uma retração, mas é um certo exagero achar que o dólar vai perder o status de moeda-padrão das reservas mundiais num futuro próximo”.

Mesmo assim, um coro de analistas afirma que desta vez a situação é diferente. Essas vozes, que incluem o Goldman Sachs, afirmam que um ajuste de contas com o dólar era questão de tempo. A contar a partir da última baixa histórica, há 12 anos, a moeda subiu 30%.

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Desde 2014, é a mais supervalorizada entre as principais do mundo, com base nas taxas de câmbio reais – que levam em consideração a balança comercial relativa dos países. Esses dados vêm do Bank of International Settlements, entidade que reúne bancos centrais de diversas nações. Já a análise da OCDE sobre paridade no poder de compra de diferentes moedas mostra que o dólar é 16% mais forte do que o euro.

A trajetória de queda do dinheiro americano se manteve estável ao longo dos últimos cinco meses, e o índice Bloomberg do dólar caiu em seis das últimas sete sessões de operação – agora está cerca de 10% abaixo da alta atingida em março).

A história sugere que, uma vez disparada a bala do enfraquecimento, o poder do dólar pode se esfacelar rapidamente.

O primeiro grande ciclo de otimismo se deu entre 1980 e 1985, quando as verdinhas praticamente dobraram de valor. Entretanto, quando os países ricos assinaram o chamado Acordo de Plaza para forçar a desvalorização da moeda americana e ajudar os Estados Unidos a sair da recessão, o dólar logo perdeu a vantagem e mergulhou ainda mais fundo.

O segundo ciclo começou por volta de 1995 e durou sete anos, terminando em meio a boatos de que o então presidente George W. Bush desejava enfraquecer a moeda para impulsionar as exportações e a produção americanas. Nos dois anos seguintes, o dólar foi ladeira abaixo, caindo 33%.

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“Os ciclos são longos, persistentes, e no momento estamos no cume da valorização”, avalia Guillermo Felices, diretor de pesquisa e estratégia do BNP Paribas Asset Management, que prevê um recuo de vários anos. “Em última análise, a política monetária será determinante. O Fed continua sendo o banco central mais agressivo e pró-ativo em termos de estímulo, e provavelmente vai seguir assim”.

Em meio às tentativas de inúmeras instituições mundiais de reduzir os impactos econômicos da pandemia, o Federal Reserve se comprometeu a manter a taxa de juros próxima a zero pelos próximos anos. O banco central americano, porém, teve suas mãos atadas pelo fracasso do país em conter o vírus, sobretudo quando comparado a países europeus e asiáticos mais bem-sucedidos no combate à covid-19.

Essa derrota pesa sobre as perspectivas de crescimento econômico nos Estados Unidos e pressiona para baixo o retorno dos títulos de longo prazo do tesouro americano – hoje mais próximo dos papéis de outros países, gerando uma expectativa em torno de novas medidas de estímulo, com potencial para aumentar ainda mais o déficit. Para complicar, há um sinal ainda mais temerário para o dólar: no momento, o retorno real dos títulos, ajustado à inflação, está negativo, tendo atingido baixas inéditas em julho.

Pesos-pesados de Wall Street, como Jeffrey Gundlach (CEO da DoubleLine Capital) e Ray Dalio (bilionário fundador da Bridgewater Associates), estão atentos a essa movimentação. No início do ano, Gundlach declarou que sua maior certeza em relação ao mercado é o enfraquecimento do dólar, na esteira do aumento nos déficits da balança comercial e do governo dos Estados Unidos – somados à consequente redução nos investimentos estrangeiros. Já Dalio vislumbra a possibilidade de que a tensão entre autoridades americanas e chinesas conduza a uma guerra monetária, capaz de causar um baque na cotação.

Acrescente-se à receita as dúvidas em relação à eleição presidencial de novembro e a resposta errática do governo Trump ao coronavírus: pronto, está formado o furacão que pode derrubar o dólar também no ambiente doméstico.

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Com efeito, investidores especulativos entraram em posição de venda em junho pela primeira vez em dois anos. O mercado de opções registra um aumento na demanda por apostas contra o dólar, com cálculos de uma reversão no risco de um ano apontados pelo índice Bloomberg Dollar Spot – numa inquestionável trajetória de pessimismo.

O euro está sendo negociado com ágio, com previsão de se manter assim por um ano – fenômeno raro,
registrado apenas duas vezes antes: durante a reviravolta de março e na crise financeira.

Enquanto isso, a queda no retorno dos títulos do tesouro americano corroeu o custo do hedge cambial, criando mais um vento desfavorável ao dólar.

Até o início do ano, esse custo estava nas alturas – resultado das taxas americanas de curto prazo, à época bem acima de outros países. Naquele cenário, contar com essa proteção contra as flutuações do dólar deixou de ser lucrativo para muitos investidores estrangeiros. Como consequência, algumas seguradoras e gestoras decidiram comprar ativos americanos sem hedge, adquirindo dólares junto com o pacote.

Mas esses gastos com proteção sumiram depois que o Fed ceifou a taxa de juros para quase zero. Agora, investidores estrangeiros podem comprar ativos em dólar e se proteger em suas moedas de origem, a um custo bem menor – eliminando qualquer possibilidade de beneficiar as verdinhas.

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“A questão do hedge está sendo subestimada”, alerta Tim Graf, diretor de estratégia macro no State Street Global Markets. “Ela pode impulsionar a queda do dólar a longo prazo. Sabemos que os estrangeiros têm uma montanha de ativos e títulos americanos, só que agora é possível protegê-los a um custo extremamente baixo”.

(Tradução: Beatriz Velloso)

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