- Em 2008, ação do governo e flexibilidade do mercado de trabalho americano permitiram reação mais rápida dos EUA
- Agora, europeus fizeram melhor uso do dinheiro público para conter os efeitos da crise
- Pandemia mais extensa pode tornar inviável para a Europa manter o "colchão financeiro" que reduz o efeito da crise nos cidadãos
(Steven Erlanger/The New York Times News Service) – A crise financeira de 2008-09 teve efeitos devastadores. Passado o furacão, os Estados Unidos se recuperaram bem mais rápido do que os europeus, que atravessaram dois vales de recessão. No entanto, muitos economistas estão afirmando que, desta vez, a Europa pode largar na frente.
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No caso de 2008, os americanos se saíram bem porque o governo reagiu rápido – e porque a economia do país é mais flexível e ágil tanto na hora de demitir quanto de recontratar funcionários. O sistema europeu de bem-estar social subsidia as empresas para que elas evitem cortar a folha de pagamento, o que dificulta as demissões e encarece as recontratações.
Entretanto, estamos hoje diante de um novo tipo de colapso: o governo ordenou que a economia parasse, como forma de impedir o avanço de uma pandemia. De uma só vez, oferta e demanda botaram o pé no freio. A diferença na natureza da atual situação cria a possibilidade de que a resposta europeia (foi como se o bloco apertasse a tecla “pause” na economia) seja mais eficiente para encarar esta crise específica.
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“É uma discussão de grande importância”, afirma Jean Pisani-Ferry, economista sênior do centro de estudos Bruegel, com sede na Bélgica, e do Peterson Institute for International Economics, em Washington. “Não estamos atravessando uma recessão normal, e existem inúmeras variáveis desconhecidas – sobretudo se houver uma segunda onda de coronavírus”.
A pandemia transformou a economia mundial em um imenso laboratório
A essa altura, a pandemia já transformou o planeta num gigantesco laboratório de sistemas que competem entre si, cada um com a própria maneira de combater a doença e reduzir os estragos econômicos. Nos últimos meses, o contraste entre a Europa e os Estados Unidos mostrou-se especialmente marcante.
A maioria dos países europeus adotou lockdowns rigorosos, que ajudaram a frear a Covid-19 mas levaram as economias a pique. Já o presidente Donald Trump decidiu priorizar a atividade econômica, mesmo em face do crescimento do número de infectados.
Dívida global em relação ao PIB vai aumentar 19%
Em quase todas as nações do mundo, governos tiveram de intervir, oferecer socorro e ajuda humanitária, impulsionar a recuperação. Com isso, o denominador comum passou a ser a dívida: segundo previsões do Fundo Monetário Internacional, a dívida global relativa ao PIB vai aumentar 19% em 2020.
Mas os contrastes vão além de diferentes sistemas. Eles se aplicam às apostas de cada país sobre o desenrolar da pandemia – fator determinante para decidir por quanto tempo os governos terão de empurrar a economia.
Já é possível observar diferentes resultados para diferentes estratégias – não apenas no número de casos e mortes por Covid-19 (quesito no qual os Estados Unidos são campeões), mas também no tombo da taxa de desemprego – que disparou entre os americanos e permaneceu relativamente estável na Europa.
A princípio, o governo de Donald Trump até ofereceu ajuda financeira para contribuintes individuais e empresas; na prática, porém, ele está deixando a realocação dos postos de trabalho nas mãos do mercado.
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Já os líderes europeus, diante de uma freada artificial e não de uma crise fiscal de moldes tradicionais, optaram por “congelar” a economia dos países, na esperança de que pudessem voltar à ativa mais rápido.
Essa decisão significou apostar fichas numa recuperação relativamente veloz, atrelada a um esforço para manter empregos sempre que possível – graças a subsídios que chegam a 80% do salário e a esquemas de trabalho em meio-período.
Se a pandemia prosseguir, a estratégia europeia tende a ruir
No entanto, se a pandemia prosseguir por muitos meses, ou se o coronavírus voltar com força, é pouco provável que os governos do bloco prolonguem essa ajuda por mais tempo.
Segundo Pisani-Ferry, já estão todos “começando a tirar o corpo fora”. O economista destaca que alguns planos de auxílio foram extremamente generosos. “Mas é preciso chegar a um ponto de equilíbrio, para evitar situações enganosas em que as empresas, por exemplo, dão férias coletivas aos funcionários mesmo quando não há possibilidade de retorno ao trabalho”.
Vários países europeus adotaram o que os alemães chamam de “Kurzarbeit” – solução na qual as companhias se comprometem a não demitir e a dividir a carga de trabalho, enquanto o governo compensa boa parte da receita perdida.
“Até o momento a Europa está se saindo bem, mais ainda quando comparada ao salto no desemprego observado nos Estados Unidos, bem maior do que aqui”, acredita Guntram Wolff, diretor do centro de estudos Bruegel.
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“Se a situação for temporária e pudermos retornar a um sistema semelhante ao que tínhamos antes, o Kurzarbeit é a melhor solução”, diz ele. “Entretanto, se as mudanças forem duradouras e exigirem uma realocação, talvez os Estados Unidos tenham vantagem, por serem mais ágeis”.
Europa usou recursos públicos melhor que os Estados Unidos
No início, os gastos do governo americano foram colossais: US$ 2,7 trilhões entre março e abril, ou cerca de 13% do PIB do país, para ajudar pessoas físicas, jurídicas e estados. O pacote de estímulo foi o maior da história do país, e também muito superior ao oferecido na Europa. A França, por exemplo, injetou o equivalente a 2% de seu PIB, de acordo com Pisani-Ferry.
Mesmo assim, ele afirma: “a resposta europeia foi melhor, mais simples e eficaz quando se analisa o uso dos recursos públicos”.
O motivo é que a Europa tem uma longa tradição com o sistema de bem-estar social. Existem “mecanismos automáticos” de estabilização, que entram em cena para proteger os cidadãos mais pobres e desempregados – sem a necessidade de aprovar legislação extraordinária, como no caso americano.
Enquanto isso, os Estados Unidos decidiram fazer um ataque amplo, e não cirúrgico: grandes somas de dinheiro foram distribuídas rapidamente pelo Tesouro, sem muito critério – e, consequentemente, sem maior eficácia, já que o órgão não tinha qualquer estrutura existente que lhe permitisse agir de forma mais dirigida.
Dinheiro do governo americano não impediu demissões em massa
O principal objetivo foi bombear recursos para que o sistema não parasse por completo e a demanda dos consumidores continuasse viva. O problema é que o Tesouro acabou distribuindo dólares para quem não precisava deles – inclusive para cidadãos mortos. No caso da ajuda para empresas, levava quem pedisse primeiro, num esquema que privilegiou negócios capazes de aguentar o tranco por conta própria.
Mas todo esse dinheiro público, voltado em grande parte para pessoas físicas e não jurídicas, foi incapaz de evitar demissões em massa. Washington está contando com o seguro-desemprego para sustentar a situação, e aumentou o valor do pagamento para US$ 600 semanais. Ocorre que esse socorro está marcado para acabar no fim de julho. Inseguros em relação ao que vem pela frente, é natural que os consumidores hesitem na hora de gastar – o que deve retardar a retomada.
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Um estudo publicado recentemente por Pisani-Ferry, em parceria com Jérémie Cohen-Setton, mostra que o aumento na taxa de desemprego americana foi cerca de cinco vezes maior do que na França. “Considerando as respostas imediatas à crise, a estratégia francesa (e europeia) sem dúvida trouxe mais retorno sobre investimento”.
Mas americanos devem retomar empregos antes dos europeus
Mesmo assim, a prodigalidade da Europa na hora de sustentar o sistema pode desacelerar a recuperação do emprego quando comparada ao modelo americano – mais adaptável, embora menos seguro. Este é o argumento de Megan Greene, economista da Kennedy School de Harvard, que aponta a facilidade da economia dos Estados Unidos tanto para demitir quanto para contratar.
“A flexibilidade do nosso mercado cria mais oportunidades de trabalho, o que costuma se traduzir numa recuperação mais rápida após um período de baixa”, escreveu ela.
Foi assim que o país conseguiu sair mais cedo de recessões tradicionais. Esta, porém, é uma recessão sem precedentes – um congelamento súbito, sem saídas óbvias.
Lucrezia Reichlin, professora de economia da London Business School, explica: “o pacote de estímulo fiscal americano foi bem maior. Mas, como sempre, contou com menos mecanismos automáticos de estabilização econômica. Nos Estados Unidos, os gastos feitos por opção do governo – e não por já estarem previstos na estrutura do sistema– foram bem mais elevados. Daí a atual discussão entre os americanos, sobre quem ganha e quem perde com essa história toda”.
Jacob Funk Kirkegaard, do Peterson Institute for International Economics, lembra que a maioria dos europeus sabe que terá uma renda garantida, e por isso “é mais fácil sustentar uma situação de lockdown”.
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Segundo ele, esse cenário foi particularmente importante “nas oito semanas decisivas entre meados de março e maio”, quando grande parte da Europa reagiu com sucesso para frear o vírus – que continua avançando nos Estados Unidos, em ritmo recorde.
Americanos estavam dispostos a correr um risco que o europeu não precisa enfrentar
O economista continua: “milhares de americanos estão implorando pela reabertura, dizendo que a quarentena vai levar a economia para o buraco e que milhões de pessoas precisam trabalhar para por comida na mesa. Ou seja: nos Estados Unidos, a população estava disposta a correr um risco que os europeus não precisaram enfrentar”.
Nos próximos meses, muita coisa vai depender do desenrolar da pandemia.
É claro que a Europa segue num debate feroz sobre o tamanho e a forma do fundo de recuperação do coronavírus – e sobre como os recursos serão distribuídos. À essa altura, porém, não resta dúvida de que os governos terão de botar a mão no bolso.
Se a Europa tiver a sorte de sustentar um lockdown abrangente, porém curto, o crescimento econômico sem dúvida será impulsionado quando o dinheiro voltar a circular no ano que vem – sobretudo se a retomada for lenta, frágil e prolongada.
O pior já passou na Europa? Talvez, não
Na semana passada, Christine Lagarde, presidente do Banco Central Europeu (que anunciou um vasto programa para garantir novas dívidas públicas), declarou: “Provavelmente o pior já passou”. Mas, considerando tantas incertezas, fez uma ressalva: “eu digo isso com alguma apreensão”.
Já nos Estados Unidos, a desconfiança em relação às medidas tomadas pelo governo são, por si só, um fator determinante. Para Reichlin, “embora se trate de um único país, ele parece estar saindo da crise mais fragmentado do que a Europa”.
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Se o consumidor americano continuar com um pé atrás, se o seguro-desemprego acabar, se as taxas de infecção seguirem aumentando ou se houver uma segunda onda de Covid-19, a recuperação americana pode ter vida curta.
“Passamos a vida acreditando que os Estados Unidos têm uma capacidade praticamente ilimitada de se reerguer”, diz Michel Duclos, ex-embaixador do governo francês, em entrevista à revista The Atlantic. “Pela primeira vez, começo a duvidar disso”.
(Tradução: Beatriz Velloso)