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Colunista

Além da sexual, a adultização financeira também rouba a esperança

A denúncia de Felca à adultização sexual joga luz para outro risco que ameaça a infância e provoca o endividamento juvenil

As recentes denúncias de adultização sexual já mostraram o quanto nossas crianças estão expostas e vulneráveis. (Foto: Adobe Stock)
As recentes denúncias de adultização sexual já mostraram o quanto nossas crianças estão expostas e vulneráveis. (Foto: Adobe Stock)

Cada vez mais cedo, crianças e adolescentes são expostos à lógica do dinheiro como medida de valor pessoal, à pressão para “ganhar” antes da hora e até a responsabilidades que não correspondem à sua fase de desenvolvimento. O resultado é uma geração ansiosa, endividada e vulnerável — um terreno fértil para compulsões, desistências e frustrações.

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Se o vídeo do influenciador Felca expôs a adultização sexual, é hora de ampliar o olhar também para a adultização financeira — menos visível, porém igualmente corrosiva.

A pressão que paralisa

Quando o dinheiro é posto como meta desde a primeira infância ou cobrado com intensidade na adolescência, instala-se um senso de incapacidade diante de objetivos inalcançáveis. O jovem passa a acreditar que nunca será suficiente. Essa cobrança precoce não motiva — esmaga. Pode gerar um efeito rebote devastador: paralisia, desistência da carreira, depressão. Em vez de incentivo, a pressão pelo dinheiro corrói autoestima e esvazia o desejo de construir futuro.

Educação financeira sim, mas no tempo e de forma correta

Falar de dinheiro com crianças e adolescentes é fundamental — desde que se respeitem as fases do desenvolvimento cognitivo e emocional. Piaget já mostrava que a noção de valor monetário e de abstração evolui por etapas, e exigir de uma criança a lógica de um adulto é atropelar esse processo natural.

A boa educação financeira não se resume a cálculos ou acúmulo. Ela se ancora em valores: paciência, saber esperar, partilhar, doar, compreender o valor do trabalho, desenvolver autonomia, experimentar a liberdade de escolhas, reconhecer talentos e aplicá-los em contribuições reais. Mais do que ensinar a multiplicar dinheiro, trata-se de cultivar propósito e consciência, para que o jovem compreenda o dinheiro como ferramenta de interdependência — e não como identidade.

Investimentos sem córtex

Nessa mesma lógica, muitos jovens são incentivados a entrar em investimentos complexos — renda variável, criptomoedas e operações de risco — sem maturidade emocional nem cerebral.

A neurociência mostra que o córtex pré-frontal, responsável por decisão consciente, cálculo de riscos e controle de impulsos, só se completa após os 18 anos de idade.

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Cobrar escolhas financeiras sofisticadas antes disso é o mesmo que entregar as chaves de um carro de corrida para quem ainda não aprendeu a andar de bicicleta.

O jogo perigoso do “sucesso”

As redes sociais e as plataformas digitais vendem a ilusão de que “ganhar dinheiro rápido” é sinônimo de status e liberdade. O problema é que esse “sucesso” é apenas uma miragem. No caso das apostas online, o jovem é levado a acreditar que está conquistando, mas o que encontra é a armadilha da compulsão. Como escrevi em A Tragédia das Apostas, muitos já recorrem a agiotas para financiar perdas — sinal de que o jogo está bem longe de ser brincadeira.

Endividamento juvenil: a dívida antes do diploma

Com cartões adicionais, crédito fácil, compras parceladas e apostas, adolescentes acumulam endividamento juvenil — prejuízo que não é apenas financeiro, mas que compromete trajetórias acadêmicas e de vida. Sem preparo emocional ou cognitivo, estão queimando etapas do amadurecimento e hipotecando o futuro.

O mito do empreendedor precoce

Outro fenômeno é a expectativa de transformar crianças em pequenos empreendedores para “aprender a ganhar dinheiro”. Mas quando o dinheiro vira objetivo único, torna-se um reforçador vazio: não sacia, não preenche — só amplia o vazio. Ensinar de verdade é estimular propósito, autonomia, autoestima e consciência dos talentos. O dinheiro vem como consequência natural da criação de valor — nunca como ponto de partida.

Ainda temos a responsabilidade invertida: filhos que assumem papéis de provedores ou são cobrados como adultos em relação ao dinheiro. Esse fardo mina a segurança emocional, corrói laços familiares e transforma aprendizado em sofrimento.

A falsa educação financeira

Talvez o perigo mais sutil, porém mais poderoso, é a chamada “educação financeira” que corre nas redes: repleta de crenças pessoais, fórmulas mágicas e baboseiras perigosas. O risco é transformar finanças em consumismo financeiro, um vício mascarado por mentiras.

Educação financeira verdadeira não se restringe a planilhas nem performance: é consciência, é aprender que o dinheiro é meio, não fim, é ensinar a contribuir, criar e desenvolver habilidades. Só assim o dinheiro chega como aliado.

Adultizar financeiramente é roubar não só a infância, mas também o futuro. Precisamos proteger uma geração que está se perdendo entre metas inalcançáveis, dívidas e pressões precoces. Isso exige políticas públicas robustas, leis que funcionem de fato e a aplicação integral do Estatuto da Criança e do Adolescente.

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As recentes denúncias de adultização sexual já mostraram o quanto nossas crianças estão expostas e vulneráveis. A questão financeira faz parte do mesmo problema: estamos antecipando etapas, impondo pesos que não cabem na infância. Como cuidar delas? Como garantir que tenham tempo de crescer, preservar sua saúde mental e desenvolver seus talentos sem a angústia do lucro ou da dívida?

A resposta começa em cada lar, no exemplo dos pais e responsáveis, e se fortalece quando a sociedade, como um todo, decide olhar para a criança e adolescente de forma integral — protegendo não apenas sua inocência, mas também sua esperança. Só assim garantiremos que cresçam com dignidade, equilíbrio e propósito.

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