O olhar do mercado internacional

Thiago de Aragão é diretor de estratégia da Arko Advice e assessora diretamente dezenas de fundos estrangeiros sobre investimentos no Brasil e Argentina. Sociólogo, mestre em Relações Internacionais pela SAIS Johns Hopkins University e Pesquisador Sênior do Center Strategic and International Studies de Washington DC, Thiago vive entre Washington DC, Nova York e Brasilia.
Twitter: @ThiagoGdeAragao

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Thiago de Aragão

Paralisia do Brasil na batalha do 5G é ruim para negócios com China e EUA

Governo brasileiro posterga decisão sobre participação da Huawei no leilão do 5G

A partir de janeiro, americanos estão proibidos de investir em 31 empresas chinesas: guerra comercial aquecida (Foto: Dado Ruvic/ Reuters)

À medida que o tempo passa, a indecisão do governo brasileiro em relação a participação ou não da Huawei no leilão do 5G, previsto para o primeiro trimestre de 2021, ganha contornos mais amplos, complexos e difíceis de lidar. Existem alguns pontos críticos que devem ser avaliados pelo governo brasileiro, envolvendo áreas específicas tais como: Palácio do Planalto (Presidência e GSI), Ministério da Defesa, Ministério da Agricultura, Ministério da Economia, Anatel, Ministério da Comunicações, Ministério da Infraestrutura e Congresso.

A partir dessas áreas, podemos apontar os principais focos de preocupação e reflexão:

  •  Como lidar com as acusações americanas relacionadas à segurança de dados e backdoor no sistema da Huawei?
  • Sanções americanas contra fornecedores podem se ampliar nos próximos meses e ao longo de 2021. Isso geraria uma insegurança em relação ao funcionamento do serviço, caso a Huawei vença a licitação e sanções ocorram após essa vitória? Como a Huawei garantiria ao governo brasileiro o pleno funcionamento do sistema?
  • Como lidar com questões de compliance? Não é claro para órgãos do governo brasileiro quem são os acionistas da empresa, ela não é listada em bolsa e é difícil identificar quem seriam as pessoas que se responsabilizariam caso a empresa cometesse algum tipo de ilegalidade.
  • Pressão crescente dos EUA e de alguns países da União Europeia relacionada à propriedade intelectual.
  • Impacto de uma decisão negativa à Huawei nas relações comerciais com a China e como isso prejudicaria o agribusiness brasileiro? Impacto de uma decisão favorável a Huawei e como isso afetaria a relação com os EUA? Poderia criar barreiras para investimentos privados americanos no setor de telecomunicações?
  • Como lidar com o temor de parte da bancada ruralista no Congresso de que uma decisão contra a Huawei prejudicaria o agronegócio? Isso afetaria a base aliada?
  • Finalmente, até que ponto o governo chinês e o Partido Comunista da China (PCC) influencia as ações e os comportamentos da empresa?

Huawei não revela claramente quanto e em que o governo chinês investe

A Huawei argumenta que a empresa pertence 100% aos funcionários, sem nenhuma participação do governo chinês ou do PCC. O relatório da empresa, auditado pela KPMG, mostra que a empresa recebeu do governo chinês 0,3% do total investido em pesquisa e desenvolvimento.

Em relação a esse demonstrativo, os governos dos EUA e do Reino Unido levantaram uma questão. Argumentam que a auditoria não explica, detalhadamente, quanto foi investido em pesquisa para área de bens de consumo (celulares, computadores etc.) e quanto foi destinado aos serviços, como os que serão oferecidos ao Brasil por meio do leilão.

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A Ericsson e a Nokia, as outras duas concorrentes para o fornecimento da rede de 5G, apresentam relatórios mais específicos quando mencionam pesquisa e desenvolvimento. Apontam exatamente quanto gastaram para desenvolver suas tecnologias de 4G e 5G. A Nokia investiu cerca de 4 bilhões de euros; a Ericsson, um número semelhante. Segundo os britânicos, não dá pra comparar, objetivamente, quanto a Huawei colocou em relação a essas duas empresas. Nesse ponto, o problema principal para eles é a transparência financeira.

A Nokia e a Ericsson detalham quanto investem em patentes e quais dessas patentes são essenciais e não essenciais para cada atividade, incluindo o 5G. No relatório de auditoria da Huawei, esse ponto não é especificado. A Huawei indica, por meio de várias informações publicadas ao longo dos anos, que depende muito de patentes terceirizadas de outras empresas chinesas e estrangeiras. Isso explica o alvo americano em aplicar sanções contra fornecedores, pois suas suspeitam recaem mais sobre os fornecedores do que na Huawei em si.

Um outro ponto levantado pelo governo britânico está relacionado aos contratos de 5G da Nokia, Ericsson e Huawei. Tanto a Nokia quanto a Ericsson publicam em seus relatórios para investidores a lista dos clientes de 5G (não pessoas físicas, mas operadoras e empresas de infraestrutura contratantes).

A Huawei possui 40 mil pontos operacionais de 5G na China, mas não publica o nome dos contratantes. A argumentação de alguns especialistas se dá por um fator simples: a Nokia e a Ericsson são listadas em bolsa e compor o relatório para investidores com essas informações é importante. Como a Huawei não é listada, ela não se sente na obrigação de fazer o mesmo.

Huawei é ré em ações de propriedade intelectual

Um ponto controverso, levantado principalmente por especialistas de telecom nos EUA, é relacionado à propriedade intelectual. Existiram no passado disputas e condenações envolvendo a Huawei na área de propriedade intelectual. Em 2003, a Cisco processou a Huawei por conta de cópias de propriedade intelectual em roteadores. A Huawei removeu esses roteadores do seu catálogo e chegou a um acordo com a Cisco. A Motorola teve problemas similares, mas a questão foi solucionada em 2011 sem a necessidade de resolução judicial. Em 2019 houve outro problema relacionado a espionagem industrial entre a Huawei e a T-Mobile da Alemanha.

A Huawei argumenta que não precisa roubar propriedade intelectual, pois sua produção já é forte nessa área. Um especialista americano comentou que é possível que a Huawei não se envolva diretamente em roubo de propriedade intelectual, mas como uma vasta gama de patentes que a empresa usa vem de terceiros, esses terceiros poderiam se engajar nesse processo de obtenção ilegal de propriedade intelectual.

Para a Huawei e vários outros especialistas que defendem a participação da empresa no leilão do Brasil e de outros países, essas acusações partem de um contexto de disputa geopolítica entre EUA e China com o intuito de descredibilizar a empresa e o governo chinês. A desconfiança alimenta a narrativa de um lado e o sentimento de perseguição alimenta a narrativa do outro.

Os equipamentos do 5G produzidos pela Huawei têm suas características definidas por software. Assim é impossível que processos de certificação tradicionais possam garantir que não existam backdoors intencionais. Nesse ambiente, de impossibilidade de ter essa certeza de segurança, a confiança assume papel fundamental. Confiança é algo que se conquista não só ao longo de anos de relacionamento, mas também por meio de transparência. A transparência ativa é condição necessária para garantir o surgimento de confiança. Nesse contexto, a falta de transparência da Huawei em relação à sua governança, acionistas e demonstrativos financeiros não contribui para a construção de uma relação com essa característica entre o governo brasileiro e a gigante chinesa.

Brasil se vê dividido entre os dois principais parceiros comerciais

No fundo, as questões técnicas são secundárias – mas não menos importantes – na decisão que o governo brasileiro terá que tomar sobre manter a empresa na disputa do 5G ou não. A geopolítica é a parte mais visível, pois o Brasil se vê dividido entre seus dois principais parceiros comerciais. A fonte de pressão chinesa em cima do Brasil é o da dependência comercial que o país tem nas áreas de agro e minério. Essa pressão vem funcionando, tendo a bancada ruralista (nem todos, claro) como defensora informal da manutenção da Huawei na disputa para que a possível expansão das exportações para a China não seja prejudicada.

Já os EUA pressionam pelo caminho da afinidade ideológica e dos investimentos privados americanos que sempre foram muito relevantes para o Brasil. Além disso, o desejo supremo do governo brasileiro e de vários setores produtivos em fechar um acordo de livre comércio robusto com os EUA depende cada vez mais da decisão que o governo tomará em relação à Huawei.

Não é fácil decidir quando Trump liga de manhã e Xi Jinping liga de tarde. No entanto, assim como em vários aspectos da vida, a paralisia não soluciona e só aumenta a chance de piorar a situação.

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